BRANCUSI PHOTOGRAPHE
O escultor romeno Constantin Brancusi (1876-1957) um dos artistas mais célebres dos últimos dois séculos, decidiu que suas esculturas seriam fotografadas e divulgadas por ele mesmo. "Ele julgava que eram as únicas imagens capazes de traduzir o intercâmbio emocional entre o artista e sua criação", escreve a americana Elizabeth A. Brown, especialista em Arte Contemporânea e História da Fotografia, curadora do University Art Museum, UC Santa Barbara ,Estados Unidos, no livro Brancusi Photographe ( Éditions Assouline, 1995).
A publicação, passados quase 30 anos, ainda reveste-se de importância no entendimento do trabalho de Brancusi cuja produção se resume em apenas 215 obras, sendo que 40 delas seminais desapareceram ou foram destruídas e as conhecemos apenas por fotografias. Entretanto apesar de poucas esculturas produzidas nos seus 81 anos de vida, escreve Sanda Miller*, escritora romena radicada na Inglaterra e pesquisadora na Southampton Solent University, autora do livro Constantin Brancusi: A survey of his work ( Oxford University Press, 1995) e do mais recente Constantin Brancusi Critical Lives (Reaktion Books, 2010).
O escultor foi mais pródigo com suas fotografias. Seu legado foram 560 negativos na maioria produzidos em placas de vidro de grande formato e cerca de 1500 prints também importantes, porque são oriundas de negativos que não existem mais. Todo material estava no seu atelier junto com as câmeras, objetivas e produtos químicos para fotografia por ocasião de sua morte.
Para Elizabeth Brown, os livros de história de arte nos apresentam Brancusi como um artista meio recluso, uma espécie de ermitão místico, dotado de uma consciência sobrenatural. Em parte uma ideia suscitada pelas suas obscuras origens romenas. O escultor vivia sozinho em seu ateliê parisiense, que apesar de estar instalado no coração de Montparnasse, um bairro histórico, cujos bristôs eram frequentados por escritores e artistas famosos como o americano Ernest Hemingway (1899-1961) e o malaguenho Pablo Picasso (1881-1973), parecia estar fora do tempo e da realidade, conforme vemos em suas fotografias, seja pelos seus autorretratos, pelas esculturas tratadas individualmente, ou as imagens mais panorâmicas que nos sugerem um lugar único e impregnado da arte, onde até mesmos os móveis haviam sido criados por ele mesmo.
Uma das primeiras fotografias realizadas por Brancusi, segundo a historiadora, representa um elemento basilar em sua obra. A criação de sua primeira escultura vertical, a representação de um homem em tamanho natural, inspirado diretamente pela célebre escultura de Antínoo (111-130) descoberta em Vila Adriana, atualmente nos Museus Capitolinos em Roma, parceiro amoroso e companheiro do imperador romano Adriano (76-138).
Para Sanda Miller, as fotografias de Brancusi transcendem o nível do registro e transbordam para o domínio da arte, embora seja difícil avaliar se seu interesse era principalmente capturar as qualidades estéticas de sua escultura ou se ele preocupava-se também com a realização de fotografias “artísticas”. Só há pouco, muitas imagens de Brancusi começaram a ser reconhecidas indo além do mero registro e sim como um elemento importante dentro de sua obra. Desde os anos 1970, uma série de exposições na Europa e nos Estados Unidos tornaram esses registros mais conhecidos e, por consequência, itens preciosos para colecionadores.
As imagens de Brancusi estão envoltas em certo mistério. Estima-se que ele começou fotografar ao mesmo tempo que iniciou suas esculturas, supostamente para fins de uma registro pessoal. Existem fotografias, já um pouco prejudicadas, de esculturas executadas enquanto ele estudava na Academia de Belas Artes de Bucareste entre 1898 e 1902 – esculturas que há muito desapareceram sem deixar vestígios. Portanto tais imagens representam o único registro delas, ainda que a qualidade e o estado de conservação das fotografias estejam longe de ser excepcionais.
Muitos artistas contemporâneos de Brancusi recorreram a câmera fotográfica seja pelo registro de suas obras, seja pelo auxílio para suas pinturas, caso do francês Edgar Degas (1834-1917) que fotografava suas famosas bailarinas, ou seu conterrâneo Pierre Bonnard (1869-1947) para seus lindos nus. [ Leia aqui review https://blogdojuanesteves.tumblr.com/post/630168233860857856/pierre-bonnard-e-a-fotografia ]. Entretanto, a ideia da imagem capturada através da luz para a concepção da arte , já havia surgido, dizem os historiadores, com o uso da câmara obscura, um aparato ótico que facilitava os desenhos. Descrito na Grécia antiga pelo filósofo Aristóteles ( 384 a.C-322 a.C), já estaria em uso prático desde 1558 quando foi divulgada pelo artista italiano Giovanni Battista della Porta (ca.1542-1597).
Algumas das fotografias do escultor mostram também que certos procedimentos seus seriam aprofundados posteriormente em suas obras. Como a obra "A musa adormecida" uma de suas mais conhecidas e importantes, uma cabeça em bronze de 1910, originalmente esculpida em mármore, cujo modelo foi a baronesa Renée-Irana Frachon. A peça faz parte dos acervos do Metropolitan (MET) de Nova York, da coleção do Centre Pompidou e do Art Institute of Chicago. Na fotografia surgem zonas escuras que rodeiam a boca, os olhos e a cabeça, provavelmente oriundas de inclusões calcáreas no mármore ou manchas de carvão. Para Elizabeth Brown, essa pigmentação nas imagens parecem entalhar a pedra e as manchas permitem vislumbrar a irreversível evolução da escultura.
A autora ainda especula que é o acaso que integra a fotografia no processo criativo de Brancusi, mas o que é certo, diz ela, é que pouco a pouco, suas imagens influenciaram suas obras até o ponto dele modificar suas esculturas, tanto no sentido próprio como no figurado, às vezes suas fotografias modificaram-se em função das necessidades do mercado. Era preciso ter as reproduções para mostrar uma nova peça a potenciais compradores.
Quando chegou a Paris em 1904, Brancusi tendia à abstração e ao experimentalismo, no entanto, continuou a produzir suas cabeças e bustos mais figurativos, geralmente destinados a compradores compatriotas. Para facilitar esse contato, o artista chegou a fazer cartões postais com suas fotografias. Um dos compradores que tornaram-se permanentes, e que estimularam o artista a fotografar, por meio de suas correspondências, foi o colecionador americano John Quinn (1870-1924), advogado em Nova York, conhecido por sua posição contra a censura e por ser patrono dos pós-impressionistas e dos escritores modernistas, dos quais também colecionava manuscritos. Nos anos 1920 era considerado o maior colecionador de pinturas modernas européias e fez parte da famosa Armorial Show de 1913, a primeira exibição de arte moderna americana e européia nos Estados Unidos. O advogado comprou seu primeiro Brancusi na 291 Gallery, do genial fotógrafo e dealer americano Alfred Stieglitz (1864-1945) originalmente conhecida como Little Galleries of the Photo-Secession, que funcionou de 1905 a 1917 na 291 Fifth Avenue, em Nova York, um dos marcos da imagem fotográfica em confluência com arte.
Ainda que as fotografias tenham imortalizado a imagem do artista, Elizabeth Brown acredita que seu propósito era influenciar o modo que um certo público artístico julgava sua obra e sua vida. De fato, suas composições trazem uma impressão de sinceridade e devoção, uma competência e concentração artística carismática que implicam em sua arte e, por analogia, reconhecem sua autoridade. É visível a organização do atelier de modo a salientar a dimensão de certas esculturas, além de que a imagem fotográfica era seu meio de expressão bidimensional preferido, a qual explorava suas possibilidades de expressão e forma.
Já as imagens publicadas em vida por Brancusi, constituem obras gráficas complexas, que ajudavam o artista a manipular seus planos de luz e sombra como um ensaio para suas construções espaciais. São diferentes pontos de vista de algumas esculturas e como elas relacionam-se entre si. Ainda assim, lembra Brown, as fotografias determinam novas linguagens pictóricas da época, como o Cubismo e o Construtivismo, ao criarem histórias interessantes quando as enxergamos em seu conjunto. " Sua fotografia estreita a maneira de interpretarmos as suas intenções e o modo que ele queria que elas fossem interpretadas.”
É certo que, ao contrário do que muitos pensam, fotografar uma obra de arte, principalmente uma escultura, é um processo dificílimo, ainda que o autor colabore com o fotógrafo, pois significa interpretá-la acima de tudo em consonância. Lembramos das imagens de escultura de Picasso, registradas com maestria pelo grande Brassaï (1889-1984) pseudônimo do fotógrafo e escritor húngaro Gyula Halász, são um exemplo dessa relação, que só traz resultado pleno a partir da proximidade entre artista e fotógrafo ( aqui no caso de Brancusi, um exemplo extremo) como observamos no livro Conversations avec Picasso ( Éditions Gallimard, 1964), publicado no Brasil em 2000 pela Cosac e Naify, uma obra acima de tudo envolvente, literariamente e em sua imagética. Um exemplo brasileiro que podemos associar é o belo livro Desenho da Utopia (Editora Olhares, 2016), do fotógrafo paulista Ruy Teixeira em parceria com o colecionador e historiador Jaime Vargas, representando e ambientando o mobiliário e a arte no país. [ leia aqui review https://blogdojuanesteves.tumblr.com/post/142471027231/desenho-da-utopia-ruy-teixeira-jayme-vargas ].
Os cartões postais de Brancusi eram assinados e datados com sua própria caligrafia e na época de sua estréia em Paris, exibidos tanto no Salão Oficial quanto no então famoso Salon d'Automne. Os postais conhecidos, exceto um, foram enviados ao seu amigo e patrono romeno, Victor N. Popp (1885-1955), que com o tempo comprou a maioria das suas esculturas. Juntamente com John Quinn, tornou-se também um dos grandes colecionadores do artista.
Sanda Miller argumenta que embora nenhum valor estético possa ser atribuído às fotografias de Brancusi de 1906 e 1907, (que por puro acidente histórico tornaram-se registros únicos e, portanto, valiosos das esculturas que o artista fez durante esse período), à época de sua correspondência com John Quinn o situação já era diferente. É razoável supor que a essa altura Brancusi já era um fotógrafo experiente, embora não treinado profissionalmente. Provavelmente consciente disso como um defeito, ele aparentemente decidiu corrigi-lo.
As primeiras informações documentadas sobre o desejo do escultor em melhorar suas habilidades fotográficas vieram do artista americano Man Ray (1890-1976), que mais tarde tornaria-se seu amigo. "Ele visitou Brancusi em 1921 para fazer seu retrato para seu arquivo de celebridades. Ele relembrou a visita vividamente: "Vim para Brancusi com a ideia de fazer um retrato dele para adicionar aos meus arquivos. Quando abordei o assunto, ele franziu a testa; ele disse que não gostava de ser fotografado. O que lhe interessava era ver algumas boas fotografias de seu trabalho: até então, as poucas reproduções que vira foram uma decepção. Então ele me mostrou a impressão que Stieglitz havia enviado para ele, quando sua exposição estava sendo realizada em Nova York. Era de uma de suas esculturas de mármore, perfeita em iluminação e textura: era uma bela fotografia, disse ele, mas não representava seu trabalho."
Man Ray acabou por ajudá-lo a adquirir o material necessário no dia seguinte à sua visita, comprando uma câmera e um tripé. O grande artista surrealista, também sugeriu um laboratorista para revelar e imprimir suas fotografias. Entretanto Brancusi afirmou que ele mesmo gostaria de fazer esta parte. Então ele construiu um quarto escuro em um canto do estúdio, sozinho como tudo que fazia no seu estúdio.
Um dos mais interessantes detalhes da fotografia produzida pelo artista são seus autorretratos, onde ele aproveita-se de praticamente todos elementos de seu estúdio. Suas poses, compara Elizabeth Brown, são semelhantes as celebridades que surgiram nas revistas de arquitetura. Curiosamente, revelam uma afinidade com a câmera, aproximando-se da própria preocupação com que reproduzia suas esculturas. A princípio segue o mesmo jogo de luz, empregando uma escala como a das peças, bem como a arrumação do atelier. Uma produção mais limitada, é claro, do que seu acervo. Mas, ainda assim importante pois mostram o artista trabalhando, definindo uma certa postura heróica de suas esculturas, segundo a historiadora, como na espetacular Coluna sem fim onde ele aparece com uma grande serra contra um enorme bloco de madeira.
Em alguns dos autorretratos percebemos também, uma sofisticada iluminação onde ele contrapõe o branco do mármore, colocando-se na área mais sombreada, e até mesmo cenas mais prosaicas, como instalar uma chaminé no atelier. Em algumas, transgride as "normas" fotográficas, moldando sua cabeça a certas esculturas, dando continuidade ao seu corpo, integrando-se à peça, uma prática desprezada pelos fotógrafos mais profissionais na época. Para Brown, as imagens são casuais e manipuladoras ao mesmo tempo, delirantes e "terrivelmente" sérias. Em contrapartida, realizou imagens mais relaxadas, fumando, em atitudes mais desenvoltas, "a imagem do boêmio sedutor" apresentando-se como um ser marginal radiante, como em um romance de Hemingway, analisa a pesquisadora.
Em resumo, Brancusi mostrava que sua arte não se limitava às abstrações. No entanto, amigos seus como o célebre fotógrafo e curador luxemburguês Edward Steichen (1879-1973 ) que pertence ao cânone do século XX, escreveu em um catálogo do amigo, para sua exposição na Brummer Gallery, em 1926, embora não creditado pelo escultor, que "a sua obra adquire sua significação dentro da abstração mais radical. Deste modo, revela-se plenamente em sua redução." Mas, para Elizabeth Brown, suas fotografias tendem ao contrário, a humanizar suas esculturas, fazendo surgir suas particularidades, suas simetrias, suas expressões: "ainda que estivesse profundamente fascinado pelo potencial da simplificação radical, ele sempre interessou-se pelas possibilidades expressivas de suas obras." Para o escultor a fotografia tinha a mesma medida de um desenho. Ser útil, mas secundária, embora a câmera fotográfica manteve-se como o instrumento mais interessante e ligeiro com o qual o artista explorou a sua própria força criativa.
Imagens © Constantin Brancusi Texto© Juan Esteves
*Sanda Miller também escreveu o livro Ana Maria Pacheco: Dark Night of Soul ( Ben Uri Gallery & Museum, 2001 )com fotografias do bestseller inglês John Hedgecoe (1932-2010) sobre a escultora e gravadora goiana radicada em Londres, artista associada na National Gallery de Londres, professora em universidades na Inglaterra e na Escócia, com exposições em renomados museus no Reino Unido, onde vive desde 1973.
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