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#descalças urbanas
fragmentosdebelem · 4 years
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Doca do Reduto, c. 1900 ~ Marc Ferrez / Instituto Moreira Salles
A Doca do Reduto no início do século XX, apesar não ter o requinte da avenida da República, já contava com calçamento, trilhos de bonde, iluminação pública e meio fio. Para se evitar o acúmulo de imundícies, a municipalidade procedia “medidas tendentes a evitar que a peste negra invada esta cidade, tenho em vista mandar, com urgência, proceder ao saneamento das docas do Reducto e Ver-o-Peso”.
Não só a doca tinha medidas mais modestas que a Doca do Ver-o-Peso, mas as casas comerciais instaladas ali também são mais acanhadas e frugais, que as localizadas no entorno do que viria ser o boulevard Castilhos França.
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De fato, a Doca do Reduto estava na periferia do centro de Belém.
Sem vapores e gaiolas, o pequeno comércio era tocado ali nas montarias e igarités, nos pregões de rua das vendedoras descalças, pelos moleques de leva e traz, pelos carregadores, carroceiros. Também estavam por lá as vendas a retalho de libaneses e portugueses, “onde a farinha e o peixe sempre foram objecto de animadas transacções”. 
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No canto esquerdo, hoje r. General Magalhães, havia um imóvel subdividido em diferentes comércios. Em sua fachada lê-se: Hotel Fraternidade, Agulha de Marear e Officina ourivesaria-relojoaria, da qual não se consegue distinguir o nome.
No número 24 estava A Agulha de Marear (uma bússola náutica), era mais uma das casas de comissões e consignações, que compravam e vendiam mercadorias. Em um anúncio de  28 de setembro de 1889,  há uma pista de que os donos seriam lusitanos:
"CAIXEIRO. Precisa-se de um, de 12 a 15 anos, na Agulha de Marear, Reducto; prefere-se português e que tenha alguma prática”.
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O Hotel Fraternidade aparece em ao menos três menções constrangedoras no noticiário da cidade:
“Procurou-nos hontem o Sr. Francisco Garcia Mobilia, proprietario do Hotel Fraternidade, à doca do Reduto e apresentou-nos uma conta no valor de 1:628$650, proveniente de comedorias fornecidas a inferiores e soldados do CORPO de INFANTARIA do Estado, desde outubro de 1891 até 3 de abril 1892.
Tem sido os meios inuteis empregados por aquelle laborioso estrangeiro afim de obter o pagamento das suas dividas comprovadas por elles que mostrou-nos;
O commandante do CORPO DE INFANTARIA não deve ser indifferente a este facto que muito desabona os creditos do seu batalhão.
Nem nos digam que s.s. nada tem que ver com estes factos que se dão fora do quartel; a disciplina militar é por demais severa e não tem condescendencias com os que não sabem honrar a farda que vestem.
Seria pois um acto digno de louvor providenciar para que o proprientario do Hotel Fraternidade seja embolsado da elevada somma que está ameaçado de perder”.
O Democrata, 11 de janeiro de 1893
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Já com um novo proprietário, novo infortúnio:
“Pelo 1º prefeito, foi multado o indivíduo Romão Martinho, proprietario do Hotel Fraternidade por infracção do art. 193 do Cod. de Posturas municipaes”.
Diário de Notícias, 3 de Maio de 1896
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Três anos depois mais um calote:
“Foi hontem preso o individuo Manoel Antonio de Mell que, servindo-se à vontade de comedorias no hotel Fraternidade do Reducto, não quiz satisfazer os 15:000 reis de que era devedor”
A República de 10 de Outubro de 1899
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Nesta foto tomada alguns anos após a de Marc Ferrez, há modificações na margem direita da doca. O imóvel que abrigava a o Hotel Fraternidade e a Agulha de Marear foi parcialmente demolido, dando lugar a uma rua e um sobrado, onde embaixo funcionava a Casa Moraes (?). Ao fundo é possível ver mais um hotel, o Paraense.
No relatório de 1902 apresentado por Antonio Lemos, é comentada essa modificação urbana:
“No bairro do Reducto pretendo continuar os melhoramentos já por alli iniciados com o calçamento da travessa Piedade. Tenho, com effeito, em vista abrir definitivamente a passagem que communica a referida travessa com a doca do Reducto, pelo lado posterior do estabelecimento da firma Caniceiro, fazendo para isso as pequenas expropriações que se tornam mister, com o fim de manter, não só a largura da passagem, de accordo com os alinhamentos dos prédios situados no canto occidental da referida doca, como também o alinhamento da travessa, que tem um prédio fora d'este, junto das ruinas de uma casa que fora incendiada”. 
A passagem que comunica a doca com a travessa Piedade é a alameda Piedade, a qual passa exatamente atrás das antigas Oficinas de carpintaria e serraria de Manoel Caniceiro da Costa.
A intenção de Lemos é a melhoria do bairro, mas resta uma suspeita se essa abertura de via não atenderia mais a empresa, do que ao conjunto do moradores. Como até hoje ocorre, ripas de madeira são desembarcadas nos portos da cidade para comércio nas estâncias. A nova via faria a matéria prima chegar pelos fundos da empresa, depois de descarregada na doca. A foto abaixo mostra a frente da empresa, situada na rua Gaspar Vianna.
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Menos de uma década depois dessas fotos, o movimento comercial na Doca do Reduto se reduziria com a construção do Porto de Belém, bloqueando o acesso do rio a este local, anos mais tarde a doca seria canalizada. As embarcações passariam atracar somente da Doca de Souza Franco no Reduto, onde seria construído um mercado, reproduzindo o antigo fluxo da doca da 28 de Setembro. Talvez esse tenha sido o primeiro passo para o esvaziamento do bairro, que em mais algumas décadas perderia suas fábricas.
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angelanatel · 4 years
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"O ouvidor da Comarca de Paranaguá, Antonio Barbosa de Matos Coutinho, em 23 de janeiro de 1775, lançou um edital na Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba, para avisar que seriam inquiridas testemunhas sobre alquimistas, benzedeiras, feiticeiras e pessoas com pacto com o diabo, dentre outros crimes. . . . Detalhe: nessa época, as investigações e julgamentos cabiam às Câmaras Municipais, que responderam pelo Poder Judiciário até a Independência do Brasil, em 1822. . . Curitiba teve 560 processos, sendo 60 contra mulheres. Dois deles foram por feitiçaria, em pleno auge do Iluminismo. . . . Os registros apontam que as duas mulheres acusadas de feitiçaria eram indígenas, da nação carijó, e estavam descalças no dia do julgamento. . . . A lenda urbana surgiu no final do século 19 e início do século 20, quando já circulavam jornais em Curitiba. A imprensa anunciava já sobre supostos casos de bruxaria. . . . Vamos ao exemplo do Diário da Tarde. Havia uma página entitulada Vitrina do Diabo. Uma das personagens das notícias é Anna Formiga. Segundo pesquisa publicada em 1991, do historiador Johni Langer, ela era famosa por suas supostas ligações com o demônio. . . Luciana do Rocio Mallon, autora do livro Lendas Curitibanas, publicou uma história na internet sobre Anna Formiga, apelidada de "bruxa de Curitiba". O texto afirma que ela se chamava Ane O'Neil e fugiu da Escócia para escapar da acusação de matar crianças em rituais macabros. Em Curitiba, oferecia serviços de curandeira e lia a sorte das pessoas. . . Ainda segundo o Diário da Tarde, a Bruxa de Curitiba havia lançado um feitiço contra o homem, cuja esposa adoeceu. A polícia tomou conhecimento do fato. . . E aí, já sabia dessa história? O que achou?" #Repost @folclorando • • • • • • . . . PESQUISA/CRÉDITOS: ■ https://www.bemparana.com.br/noticia/curitiba-ja-fez-caca-as-bruxas-durante-o-seculo-18#.XjDXiFNv8wA ■ MALLON, Luciana do Rocio. Lendas Curitibanas. . . . #bruxaria #bruxa #curitiba #lenda #lendasurbanas #folclore #folclorebrasileiro #folclorando #stephenking (at Curitiba, Brazil) https://www.instagram.com/p/B74tSsuAUml/?igshid=jl5v374n8yzi
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africa-refugiados · 5 years
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"Esta é a estrada que atravessamos sempre que precisamos de água e aqui vemos a sujeira do ambiente."
 A Nigéria é, hoje em dia, a maior economia da África e um país dividido em dois. O Sul é cristão, ocidentalizado em suas áreas urbanas e com recursos naturais e industriais. O Norte é muçulmano, a lei vigente é a sharia, a lei islâmica, solo desértico sem recursos e taxas de pobreza, analfabetismo e desemprego à altura das regiões mais pobres da África. Um dos Estados mais castigados é Borno. E foi em Borno que nasceu o Boko Haram, que pode ser traduzido como “A educação ocidental é pecado”.
Foi no ano de 2002 em Maiduguri, sua capital, uma cidade de um milhão de habitantes de ruas sem asfalto, crianças descalças mendigando e mercados abarrotados ao lado de desmanches improvisados onde se amontoam caminhões e carros abandonados. Maiduguri é cinza e negra, coberta de areia e pó.
Fonte: El País
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mynameismigl · 7 years
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TANGER, DESTE LADO NÃO SE ESCONDE QUEM SE É
Do meu último reduto europeu, a cidade espanhola de tarifa , entrava expectante num ferryboat da Frs lines com destino à minha primeira experiência em África,. Tanger, as portas escancaradas de Marrocos, com os olhos fixos em nós, os europeus.
Em 45 minutos atravessava o mar mediterrâneo e na minha mochila trazia apenas uma garrafa de água gelada e muito espaço para carregar as cores, os cheiros e o misticismo deste país. Com alguma sorte,talvez também a possibilidade de encontrar ali recantos autênticos, crus e sem filtros para turistas. Claro que, quando vais em excursão, num “One day tour” não podes esperar muito,, ou melhor, no máximo quase nada. Felizmente enganei-me pois tanger está mesmo ali à nossa frente, autêntica , de cara deslavada, descalça na rua e sorrindo orgulhosamente de braços abertos para nos receber.
Entramos nas ruas em direção ao Kasbah, a fortaleza da cidade, orientados pelo guia local, Rasheed um expert nestas andanças, hábil comunicador e um poliglota, que nunca saiu de Marrocos. Um Clássico. Aqui, nesta zona do casco antigo, rompiam as paredes brancas, rematadas grosseiramente com cores azuis e amarelas, intercaladas por portas de madeira, adornadas com metais e cores vibrantes. Vislumbrava-se aquilo que eu procurava trazer na minha mochila. À Medida que percorríamos o labirinto de Tanger, as portas iam-se mostrando diferentes umas das outras e saltavam à vista vasos coloridos repousando nas janelas indiscretas, repletos de flores e plantas, cujos perfumes emolduravam a rua, entranhando-se no ar quente que nos atravessava como uma lança.
Rasheed pouco falava, talvez soubesse que a esta hora, Tânger dispensava tradutor.
Deambulamos por ali mais alguns minutos e cruzávamo-nos agora com mais frequência com as gentes locais. Estes, Indiferentes, olhavam para nós sem grande importância, claro, éramos apenas mais uns estrangeiros que espreitavam curiosos para dentro das suas casas escancaradas e rapidamente se davam conta que ali a história era outra, Tanger não se assemelha à maioria das nossas cidades, Tanger é mais pobre, suja e mais confusa mas tanger também se sabe fazer bela à sua maneira Lá no alto, na zona privilegiada, há um rei que a quer mudar rapidamente, usando para isso uma massiva construção de habitações sociais. Mas cá em baixo, a cidade parece não ter grande pressa em mudar os seus hábitos. Tanger é Tanger, crua, sagaz, fervilhante, antiga e malandra, tanger está na rua e não esconde quem é .
Recordo uma parede pintada com palavras árabes em cor verde. Pensei que fossem graffittis, ou outro tipo de arte urbana, mas não eram, rasheed não falou sobre isso, mas soube depois que se tratavam de mensagens radicais islâmicas que se propagam em silêncio pela cidade quando a noite cai. Caiu-me a ficha, tanger é também dura e sombria, um farol para os desventurados, capaz de transformar jovens inocentes em mártires sem nada a perder.
Chegávamos depois à Medina onde as ruas respiram o frenesim das lojas e bazares. Enquanto passava por mim um tuareg com um macaco ao ombro, Rasheed fazia sinal ao grupo e foi glorioso no seu discurso. Avisou-nos que nesta zona de compras seríamos assolados por inúmeros vendedores que tudo fariam para nos impingir algo, por isso, não devíamos vacilar, o truque era escolher bem e regatear o preço sem perdão. Depois, apontou para as “duas melhores” lojas da cidade, e seguimo-lo sem sabermos que o nosso guia nos levava primeiro para a loja da sua mãe, depois para a loja da sua sogra, e por fim para o doce regozijo da sua própria comissão. É o sentido tangeríano a vir ao de cima, rasheed como todos os vendedores de rua que nos apanhavam nas redes finas da Medina, era um verdadeiro mestre da sua arte. Após uma hora de compras, regateios e outras tantas tentativas de venda, o grupo reunia-se de novo em volta de rasheed para terminar a jornada. Até à entrada no bus fomos perseguidos pelos vendedores da Medina que em último lance trocavam o “isto custa 100 dihrams” pelo “quanto me dás por isto? Toma leva, dá o que tens!”
Tanger ficava para trás, Rasheed sorria orgulhoso e eu trazia a mochila recheada. Deixava apenas o espaço para regressar um dia.
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revistazunai · 5 years
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Periscópio 2: A outra voz: o outro caminho para a poesia
Paulo Ferraz
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A régua com a qual medimos o Brasil tem pouco mais de 430 quilômetros, ligando normalmente um ponto na zona oeste paulistana a outro na zona sul carioca, e é com ela que  esquadrinhamos  os cerca  de  8.500.000 quilômetros  quadrados  do território nacional. Como toda régua, ela tende a criar representações condizentes à sua escala, daí  não  raras as  vezes  na universidade e  nos  meios de  comunicação chamarmos  de Brasil o que deveríamos chamar simplesmente de São Paulo e Rio de Janeiro, uma metonímia  das mais  injustas  que poderíamos  empregar  em desfavor  da  diversidade intelectual e cultural de um país-continente. E quase sempre quando se trata de poesia brasileira, em um artigo panorâmico ou em uma antologia, é ao conjunto de poetas que vivem nesses dois estados a que nos referimos, e dá-lhe poesia de temática urbana, do cotidiano amesquinhado e embrutecido no qual vivemos e que tenta unir num mesmo ambiente  o  cosmopolita e  suburbano.  Excelente poesia,  lúcida,  reflexiva, crítica  e inventiva  se fez  em  torno do  circunstancial  e do  imanente,  Pauliceia  Desvairada, Libertinagem, Rosa do Povo, Paranoia, Poesia pois é poesia, entre outros tantos que compõem  uma “tradição”  moderna  que  baliza  essa poética  secular.  Mas  é  a única? Claro que não, e A outra voz de Antônio Moura, seu quinto livro de poemas, desde o título  já aponta  para  a riqueza  da  poesia brasileira  para  além da  geografia  e  dos esquemas didáticos de classificação de poemas e poetas.
Talvez  sejamos  mesmo um  país  de condenados  à  vanguarda, cuja  pena  pressupõe impingir  ao poema  a  face útil  da  palavra, guiada  por  uma instrumentalidade  tanto estética quanto política, tamanha a nossa miséria artística e material. Mas essa não é uma  pena que  se  cumpre em  um  único regime,  afinal  são muitas  as  expressões da modernidade  –  acaso haveria  alguém  que sustentasse  que  T. S.  Eliot,  Ezra Pound, Rainer Maria Rilke, Stefan George, Gottfried Benn, Paul Valéry, Paul Claudel, Saint- John Perse, Paul Celan, Garcia Lorca, Lezama Lima, Octavio Paz, Yves Bonnefoy ou Michel Deguy não são modernos? – e inúmeras as possibilidades de transformar a arte e o homem, incluindo os meandros da reflexão, da fantasia e da transcendência. Por mais que sigamos desconfiados da superficialidade de muita poesia dita profunda, como nos alertavam, com razão, na década de 1930 Mário de Andrade e, logo depois, João Cabral de Melo Neto. Obras como Claro Enigma, Invenção de Orfeu, Tempo Espanhol, O homem e sua hora, As Galáxias, Alba são alguns dos exemplos em que, sem abrir mão da matéria bruta extraída do solo nacional, atingimos os mais elevados níveis de uma poesia feita pensamento. 
Nós, leitores de poesia moderna, nos habituamos a considerar a realidade pela ótica do poema, um objeto que tanto diz do sujeito quanto do objeto. Acontece, porém, que no processo de constituição do poema o símbolo vem sendo substituído pelo retrato, como se cada vez mais a experiência vital fosse transposta com pouca ou nenhuma mediação para  a realidade  intrínseca  do artifício.  De  algum modo,  a  sensibilidade física  ou emocional está hoje mesclada à sensibilidade estética, o que talvez explique um certo pendor  contemporâneo para  a  reprodução em detrimento  da  imitação, além de  uma presença cada vez maior do discurso, do argumento e da reflexão com funções poéticas, e não exclusivamente a construção de imagens e dos mecanismos de representação. Por certo  que  todo bom  poema  tem o  condão  de elidir  o  particular no  geral,  sendo prescindível o emprego de categorias como alto ou baixo, sublime ou vil, pois todo poeta busca em alguma medida a transcendência, a introspecção do real e abstração, mesmo quando não as aspira. Antônio Moura uma vez mais demonstra seguir a lição daqueles poetas que sem abdicar o eu-empírico souberam perscrutar o universo que cada ser carrega em si, um mundo que mais que composto de acontecimentos é feito de linguagem, a qual na maior parte das vezes parece muda para os que não se libertam de todo da consciência.
Aos que  postulam  o tempo  presente  como matéria-prima  da  poesia, Moura não tergiversa,  ao contrário,  enfrenta-o,  revelando em  seus  poemas os detalhes  de  uma guerra invisível que nos cerca, que está em toda parte e em parte nenhuma, às vezes, sem que  ninguém  perceba, passa,  com  suas armas  de  alta tecnologia,  por  entre crianças que brincam descalças numa abandonada praça de periferia (“The invisible war”). Uma guerra travada por artefatos e ideias forjadas na oficina do fascismo que fabrica frias algemas (“Poema para ler ao andar com cuidado”), movida seguramente com o dinheiro impresso/ nos estúdios do diabo (“Arte poética”), em nome de uma política  reptiliana,  pouco mais  que  um circo  de  patifes e  canalhas  que haverá  de corromper não só os homens, mas o espaço e a própria história, sem limites, a ruína que restará se resume às imagens do céu devastado e do mar massacrado (“Política”).
Quiçá fossem possíveis mais cores, mais luzes e mais horizontes nas paisagens que percorremos em seus poemas, mas aí não estaríamos nesse mundo crepuscular em que nossos  pés  estão  plantados, pois  não  há como olhar  com indulgência  para  um país navio-negreiro (“Joaquim Nabuco”), não há como transigir sequer com uma promessa de futuro, enquanto não rompermos com o silêncio que cobre/ os corpos mortos dos nossos  vizinhos índios, pretos,  pobres,/  almas vagando  pelos  cômodos cômodos  de nossas casas (“Tanto quanto”), corpos como o de um nativo/ abatido/ a tiros/ pelo dólar-fazendeiro   (“Amazônia”). Eis    alguns   aspectos    desse    mundo-fera    que alimentamos cotidianamente com os sentimentos mais mesquinhos que cada um de nós cultiva sob a capa de hipocrisia.
O  homem  é um  ser-oximoro,  moldado para  a  vida em  grupo,  mas munido de  um egoísmo tamanho que o impede de se realizar plenamente no outro, ao invés disso, se realiza apenas contra outro, em desfavor deste, pelo gozo solitário dos prazeres e dos vícios, atrás dos muros, atrás dos murros, dos erros/ do lado de fora, dos urros do lado de dentro,/ reina, só, no centro, o cetro do medo – rei/ da pobreza, da dor, da raiva, do encolhimento//   do   corpo   e   do   espírito,   ambos   prisioneiros/   de   um   mesmo encarceramento – pois a alma/ do homem que mantém outros homens detentos/ é a cela  do Homem  que  se mantém  preso  por dentro  (“Pavilhões”). Diante de  tantos infortúnios que nos são apresentados, fica mais nítida a verdadeira aparência do que chamamos  civilização, um  sofisticado  disfarce da  barbárie,  da mesma maneira  que aprendemos com o Angelus Novus de Benjamin/Klee que o progresso oculta as ruínas e catástrofes da história.
Se  dependesse apenas  de  nós, seres  minúsculos  diante  de todos  os movimentos/ da gigantesca sinfonia inumana (“Marajó”), e do que (des)construímos, haveria pouco a celebrar, contudo a natureza ainda tem sua voz, a mesma que se ouvia antes de ser sufocada por nossa razão, quando era ela quem nos moldava, quando cientes de nossa pequenez aceitávamos nossa condição e aprendíamos que sabedoria era tirar de nós aquilo que ela nos propiciava. Naquele então, apurávamos os sentidos e o coração para captar e compreender seus mistérios. Essa natureza atravessa todo o livro de Antônio Moura, e desde o primeiro momento o que ele nos convida a fazer é nos calar e ouvir outra voz, pois há sempre/ uma voz em tudo – um coaxo,// um sibilo, um crocitar, um zumbido/,  um gorjeio,  um  zurrar, um  rumor//  de água,  um  silvo, um  vento,  um/ farfalhar// um balido/ um trino, um latido/, um cicio, um grunhido, um grasnado// (...), cuja expressão não está restrita aos limites da fala, pois tudo – flora, fauna, minerais, as intempéries,  o tempo  –  tem algo  a  nos dizer,  pois  os sons  que  produzem são manifestações da voz do espírito que a tudo anima (“Ouve o mundo”).
Aqui talvez  se  possa supor  a  existência em  sua  poética de  uma  lição aprendida  na geografia amazônica, cujas águas descem serpenteando desde os Andes, rasgando a terra e arrastando lama, lodo, plantas, bichos aos quais vai sepultando em suas margens, onde o cadáver, a carcaça e toda matéria orgânica já putrefata fertiliza o solo, o húmus sem o qual não haveria a rainforest. Este talvez seja um dos exemplos mais pungentes da potência da natureza e uma mostra cabal de que destruir é só uma das etapas da criação. É preciso destruir continuamente o corpo do poema, desde a língua, que tende a caducar em nossa mente, à tradição literária, que tende a se perenizar como fórmula. Daí  a necessidade  de  no íntimo  de  cada indivíduo  existir  um solo  fértil  como  o amazônico,  onde  se encontra  a  alma/  que se  amalgama  à  lama  (“Do fundo  do coração”), caso contrário, o cenário equivalente seria o do deserto da razão.
A concepção  da  natureza como  um  lugar ameno,  um  refúgio idílico,  um  convite à epifania ou à pura contemplação (e nem se fale da paisagem-produto a ser consumida, tal e qual vendem as agências de turismo), mesmo na antiguidade já era um prenúncio de sua sujeição à nossa mentalidade urbana, já que basicamente o homem desde que se assentou é um ser tanto coletivo quanto excluído da totalidade. Porém, a despeito dessa mentalidade,  vivemos em  permanente  desconforto, já  que  nossa criação  é  sempre imperfeita em face da incômoda sombra do éden perdido, pois a beleza sempre estará um passo à frente de tudo/ o que tentamos dizer (“Tristan Tzara”). Daí que essa natureza bucólica  ou  pastoril é  tão  humana quanto  a  cidade, com  a  particularidade  de ser  a imagem invertida desta.
A natureza dócil e submissa existe como compensação, como se fosse uma ampulheta que ao deixarmos o perímetro das ruas e avenidas invertesse o sentido da energia vital que perdemos em nossa rotina, ou seja, não existe em si, mas como objeto de fruição. Não é essa a natureza que encontramos ao longo das secções que compõem o livro, “O jardim da ilusão”, “Personae”, “Arqueologia barroca” e “A outra voz” em cada uma delas a experiência que os poemas nos oferecem é quase sempre a de estar diante de uma força que por falta de uma palavra melhor poderíamos chamar de divina, na medida em  que  se  mostra indiferente  aos  nossos  anseios e  acima,  sobretudo, de  nossa capacidade de lhe dar sequer um nome, pois não é nossa imagem e semelhança, nem existe para nos servir, mas  para seus próprios desígnios. Os poemas  de Moura são, todavia, a demonstração de que entregar-se à natureza tem o condão de nos revelar algo de nós mesmos e de nos religar à totalidade. Esse elo necessariamente é tecido com a linguagem, que precisa ser cardada, urdida e novamente fiada.
Embrenhar-se na  linguagem  humana equivale  a  se aventurar  também  num mundo desconhecido, pois tudo o que dela sabemos é justamente essa expressão instrumental a que chamamos razão, da qual dependemos para a vida prática que erigimos, mas que pouco nos pode oferecer quando procuramos perscrutar nossos mistérios. Ao entrar em contato  com essa  zona oculta em  nós,  a trama  lógica  da razão  vai  se desfazendo, dilacerando o pensamento e a memória, a ponto de sumir na bruma da inconsciência, como Moura aparenta nos alertar ao dizer só o sopro do esquecimento/ faz suportável o este pensamento (“O sopro do esquecimento). O místico, o filósofo e o poeta são aqueles cuja vida é dedicar-se a ir o mais fundo possível de nós sem se perder e regressar com algo novo, algo que nos ilumine e nos dê a esperança de seguir buscando o que há de maravilhoso em nós mesmos. Antônio Moura deixa evidente que essa é a sua tarefa ao empregar a alegoria da cigarra que se interna sob a terra, por largo tempo vivendo uma  solidão  subterrânea,  enquanto se  prepara  para  um dia,  por  um único  e/  vivo instante,  ascender em  luz  por meio  de  seu canto  (“A  cigarra”). Ao  deixar  suas profundezas, a voz que ouvimos é uma e muitas ao mesmo tempo, pois reverbera as vozes dos que ali estiveram em semi-sepulcro, nominalmente encontramos as máscaras de  Georg Trakl,  Tristan  Tzara, Gérard  de  Nerval, Jane  Austen,  Emily Dickinson, Wisława Szymborska, Joaquim Nabuco, mas indiretamente se ouve o eco de um César Vallejo, um Boris Pasternak, um John Keats, além do absolutamente moderno Arthur Rimbaud, agora passageiro de um bateau ivre pelo Amazonas, a quem reencontra com a voz apagada pela boca da eternidade que se abre abissal (“África”). 
Talvez nenhum outro poeta antes ou depois de Rimbaud tenha ido tão longe à procura da poesia como a manifestação de uma outra voz. Sua descida ao inferno de algum modo representa essa solidão subterrânea, quando experimentou o desregramento de todos os sentidos. Todavia, chegar ao desconhecido não basta, é preciso trazer algo de lá e não sucumbir ao risco do silêncio. Aqui é impossível não mesclar a imagem de Rimbaud  à figura  de  Orfeu, capaz  de  encantar todo  o  hades, mas  imprudente  o suficiente para  perder  sua Eurídice  uma  segunda vez  e  se deixar  esquartejar  pelas bacantes. Quantos não se veem na situação limítrofe no qual têm pela frente o sonho abissínio de abandonar tudo? Para aqueles que dizem não, resta a possibilidade de a poesia que emerge desse outro lugar de nós mesmos ter a força capaz de destruir a realidade como a conhecemos. Há muitas formas de acabar o mundo e criar outro, e uma delas seguramente é pela poesia: É assim que acaba o mundo – / no instante em que a poesia/ se alastra sobre o papel e toca/ fogo no alfabeto que escreveu/ as tábuas da lei contra o absoluto./ É assim, é assim que acaba o mundo (“É assim que acaba o mundo”).
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amandaamelo · 4 years
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Por bem, decidiram então pelo fim. Depois de ininterruptos cinco anos. O primeiro foi de tremedeira nas pernas. No segundo, atingiram o nirvana sexual. Com o terceiro veio junto o apartamento. No quarto, desejo mútuo por terceiros. Finalmente, o quinto mostrou que haviam se tornado dois. Definitivamente, duas novas perspectivas de vida.
Ela não pediu que ele ficasse. Ele chorou porque sempre foi o pilar sentimental do casal, e só por isso. Ela ficou com o apartamento. Ele com o labrador, com nome de ex-craque do Internacional. A última coisa que ele fez foi catar seus discos da Legião Urbana. Ela deu uma última olhada em volta. Ele entregou a chave. Ela deixou escapar que nunca vai esquecê-lo, de alguma forma. Ambos relembraram o plano de provar pra todo mundo que dava para coabitar romanticamente. A porta se fechou dando fim ao que não tinha fim.
Ela decidiu rever tudo. Jurou que seria eternamente fiel à liberdade. Agora, madruga suas noites em discotecas, na companhia de estranhos e envolta em novos braços peludos. Aos sábados, dorme até meio dia para esquecer a antiga rotina de acordar cedo, fazer jogging no Parcão e almoçar os bifes maravilhosos da mãe dele. Não assiste mais novela, passou a usar mais vestido, começou a ouvir Bossa Nova e cogita tatuar o pé.
Ele planejou uma revolução. Decidiu conhecer alguém novo, ligou para uma garota de programa. Hoje, não fica um dia sem compartilhar o violão com velhos amigos no Bar dos Podres. Invariavelmente, passa os domingos de chuva na cama, na companhia do Falcão, uma garrafa de Merlot e A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Perdeu seis quilos no último mês, deixa roupas penduradas, trocou de emprego e cogita passar o feriadão em Ilha Bela. E suas vidas continuam, sob nova direção.
(02)
Outro mês se foi, e eles não tem notícias e nem previsão de reprise. Ele é grato a si mesmo pela implosão das grades. Ela sente um mundo possibilidades inflando ao seu redor. Ele pede aos amigos que digam a ela que até está bem, levando, obrigado. Ela não oculta uma certa tristeza no olhar na frente deles. Ele espera que ela esteja feliz e bem acompanhada, com alguém decente, que tenha ao menos o carinho que ela merece. Ela torce secretamente para que tão cedo ele não encontre uma garota “melhor”.
Querendo ou não, ele pensa nela de quando em quando. Toda noite, se aproxima do velho apartamento com o labrador Falcão, e questiona as luzes apagadas já na tarde-noite. Fica imaginando se aquela dor crônica no pescoço curou, se tem comido beterraba e controlado direitinho a tireoide, conforme prometeu que faria. Agora, desconfia que as novas garotas da sua vida serão meros passatempos. Sente falta de ouvir aquela voz meio gasguita. Chega a pegar o telefone. Não telefona.
Bem ou mal, ela sente sua ausência. Toda noite, evita estar em casa lembrando que o espaço do apartamento triplicou por um milhão. Sente falta de camisetas espalhadas aleatoriamente. Fica lembrando ele cozinhando espaguete al pesto, ou quando ele sentava na janela dedilhando “Tears In Heaven”, ou assistia o colorado comportadinho, roendo as unhas sem parar, os pés no sofá. Hoje, coleciona casos com cafajestes fajutos. Sente falta dos sermões que levava por andar descalça no chão frio. Verifica o funcionamento do telefone: tu-tu-tu.
Presos pela liberdade, prosseguem cada um na sua, conectados por um fio invisível que não conduz eletricidade. Um fio de saudade dissonante e a certeza de que, amor como aquele deles, não acontece no tocar de uma varinha de condão.
(03)
Resistiram sóbrios e sozinhos toda data comemorativa que pudesse aflorar qualquer restinho de contrição pela separação. Natal, réveillon, Valentine’s nos States, dia nacional dos namorados, sei lá, Halloween também – podia ser uma data sem nada a comemorar. Aliás, não perdiam uma festa a caráter naqueles Halloweens idiotas. Ela sentia vergonha da vestida diabinha, ele debochava dizendo que combinava, até.
A ausência um do outro já não incomodava como água oxigenada no joelho de feridas abertas. Embora os dois soubessem que o buraco estava lá, num cantinho vazio do coração e no confiscado dilatar de pupilas de cada um. Mesmo após treze meses.
Ainda assim, ela guinou 150 graus na profissão. Formou-se nutricionista e abriu seu consultório com a ajuda do pai. Ele, que ia improvisar uma banda para tocar na festa, nem compareceu à colação de grau. Ele terminou seu processo de reconstrução da autoestima indo até São Paulo assistir ao Radiohead. Ela ficou sabendo. Ambos mudaram e fizeram coisas que nunca imaginaram que fariam – coisas de solteiro, até porque nunca se imaginaram solteiros. Porém, as raras notícias já nem doíam tanto.
(04)
Hoje, ele resolveu iniciar processo seletivo para um novo relacionamento. Sexta-feira sim, e outra também, prepara jantares informais com meninas aspirantes à namorada. Belas garotas em versões loira, morena, castanho-claro, e até de cabelo pintado numa cor que ele se esforça para discernir. Muito embora com personalidades pouco aprazíveis ou simplesmente inconciliáveis. Não consegue descobrir a tal coisa que o desagrada. Ela vem à memória.
Agora, ela sente vontade de encerrar o balancete afetivo interno. Não sabe exato por onde começar, decerto a ânsia de inaugurar algo novo na direção do amor. Começa abrindo uma geladeira semi-abundante e termina logo ali, folheando páginas de um jornal de ontem. Questiona se não percebe os sinais ou se sua luz anda refletindo sombras demais. Aberta a sugestões, recusa o convite de um homem aparentemente mais maduro e educado do que seu ex. Ele ainda é parâmetro.
Separados, cada um em sua casa, simultaneamente os dois compartilham a impressão de não ver tão cedo uma placa informando para que lado se encontra um recomeço afetivo. Enquanto isso, o mundo não para de girar, sem gosto de morango mordido.
(05)
A gente nota que respirar vale a pena quando surpresas que estavam à espreita se revelam em esquinas, ou acontecimentos responsáveis por uma breve disritmia cardíaca saltam aos olhos como o farol de um pesqueiro na escuridão do mar.
Dois anos desde o traumático término, toda rima romântica, até as mais clichês, voltam a fazer sentido. Contrastando com as mais inferiores minúcias de um velho amor que há pouco andava em círculos, e que agora percorre uma longa estrada em linha reta – dessas que transformam todo velho amor em recordações de sorriso breve e silencioso.
Ela passou quatro meses tentando escapar do rapaz que agora chama carinhosamente de “môr”. Um cara mais jovem, que luta pela lei. Compensa sua pouca habilidade em manusear sentimentos com um espírito engraçado e positivista. Não consegue mirar nada além de uma taça meio cheia. Ela sente-se feliz e incompleta como toda mulher beirando os trinta. Seus lábios voltaram a se abrir involutariamente. Mas não pensa dividir tarefas domésticas novamente. Espelha-se em Rita Lee e Roberto de Carvalho.
Ele se pegou matutando uma frase do Huxley dias atrás. Algo afirmando valer a pena enfrentar a tristeza para reconhecer a felicidade. Aplicou a teoria em sua nova paixão que, diga-se, ainda não consegue chamar de “amor” ou coisa assim. Quando muito uma paixão. Arrebatadora, claro. Gamou na nova garota por acidente, como ele mesmo diz, em tom gracejador. Está pensando em casamento, mas acha que não devia. Se deita todas as noites com as mãos na nuca, com a intuição de estar bebendo o vinho da sua juventude. Seu braço arrepia toda vez que pensa na química sexual com a nova parceira.
(06)
Preciso contar a vocês que se viram, jantando em uma sexta-feira de céu estrelado na churrascaria Barranco. Ele e a namorada, ela e o namorado dela. Ambos chegaram a 200 mil batimentos por minuto ao trançar os olhos teimosos em olhar, mas nenhum dos dois lamentou, de alguma forma, estar sentado na mesa errada.Ela ainda lembra dele quando alguém chupa seu dedão do pé. Ele se recorda dela toda vez que beberica um drinque com abacaxi e leite condensado. Os dois sabem que é perda de tempo tentar esquecer. Que sentir saudade não significa que melhoraram como pessoa, que agora magistralmente seus temperamentos são compatíveis e o correto seria viver aquilo tudo de novo, do êxtase à dor.
Significa apenas que foi bom, que foi inesquecível. E que qualquer amor que força as cordas vocais a produzirem um "eu te amo" não tem fim, mesmo acabando sempre do mesmo jeito, dividido por dois.
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meninonublado · 5 years
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“Por bem, decidiram então pelo fim. Depois de ininterruptos cinco anos. O primeiro foi de tremedeira nas pernas. No segundo, atingiram o nirvana sexual. Com o terceiro veio junto o apartamento. No quarto, desejo mútuo por terceiros. Finalmente, o quinto mostrou que haviam se tornado dois. Definitivamente, duas novas perspectivas de vida. Ela não pediu que ele ficasse. Ele chorou porque sempre foi o pilar sentimental do casal, e só por isso. Ela ficou com o apartamento. Ele com o labrador, com nome de ex-craque do Internacional. A última coisa que ele fez foi catar seus discos da Legião Urbana. Ela deu uma última olhada em volta. Ele entregou a chave. Ela deixou escapar que nunca vai esquecê-lo, de alguma forma. Ambos relembraram o plano de provar pra todo mundo que dava para coabitar romanticamente. A porta se fechou dando fim ao que não tinha fim. Ela decidiu rever tudo. Jurou que seria eternamente fiel à liberdade. Agora, madruga suas noites em discotecas, na companhia de estranhos e envolta em novos braços peludos. Aos sábados, dorme até meio dia para esquecer a antiga rotina de acordar cedo, fazer jogging no Parcão e almoçar os bifes maravilhosos da mãe dele. Não assiste mais novela, passou a usar mais vestido, começou a ouvir Bossa Nova e cogita tatuar o pé. Ele planejou uma revolução. Decidiu conhecer alguém novo, ligou para uma garota de programa. Hoje, não fica um dia sem compartilhar o violão com velhos amigos no Bar dos Podres. Invariavelmente, passa os domingos de chuva na cama, na companhia do Falcão, uma garrafa de Merlot e A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Perdeu seis quilos no último mês, deixa roupas penduradas, trocou de emprego e cogita passar o feriadão em Ilha Bela. E suas vidas continuam, sob nova direção. Outro mês se foi, e eles não tem notícias e nem previsão de reprise. Ele é grato a si mesmo pela implosão das grades. Ela sente um mundo de possibilidades inflando ao seu redor. Ele pede aos amigos que digam a ela que até está bem, levando, obrigado. Ela não oculta uma certa tristeza no olhar na frente deles. Ele espera que ela esteja feliz e bem acompanhada, com alguém decente, que tenha ao menos o carinho que ela merece. Ela torce secretamente para que tão cedo ele não encontre uma garota “melhor”. Querendo ou não, ele pensa nela de quando em quando. Toda noite, se aproxima do velho apartamento com o labrador Falcão, e questiona as luzes apagadas já na tarde-noite. Fica imaginando se aquela dor crônica no pescoço curou, se tem comido beterraba e controlado direitinho a tireoide, conforme prometeu que faria. Agora, desconfia que as novas garotas da sua vida serão meros passatempos. Sente falta de ouvir aquela voz meio gasguita. Chega a pegar o telefone. Não telefona. Bem ou mal, ela sente sua ausência. Toda noite, evita estar em casa lembrando que o espaço do apartamento triplicou por um milhão. Sente falta de camisetas espalhadas aleatoriamente. Fica lembrando ele cozinhando espaguete al pesto, ou quando ele sentava na janela dedilhando “Tears In Heaven”, ou assistia o colorado comportadinho, roendo as unhas sem parar, os pés no sofá. Hoje, coleciona casos com cafajestes fajutos. Sente falta dos sermões que levava por andar descalça no chão frio. Verifica o funcionamento do telefone: tu-tu-tu. Presos pela liberdade, prosseguem cada um na sua, conectados por um fio invisível que não conduz mais eletricidade. Um fio de saudade dissonante e a certeza de que, amor como aquele deles, não acontece no tocar de uma varinha de condão.”
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latinada · 5 years
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a praia
eu gosto de estar descalça e sentir meus pés na areia enquanto escuto ensaio sobre ela do cícero. por algum motivo as músicas brasileiras curam minha saudade,levam embora o torpor de se estar sozinha. eu caminho contra o vento e me sinto completa, deito sob o sol durante horas e respiro como se eu nunca houvesse sentido o oxigênio entrando em meus pulmões. me sinto livre. aqui,nessa paisagem pacata,as pessoas ao meu redor não falam de deus e se abraçam cantando legião urbana. eles são felizes. possuem tatuagens com significados não tão importantes assim,sorriem mais do que deveriam. eu os observo e imagino quais seriam seus nomes,escuto suas risadas estridentes até antes da cinco da manhã.
então tenho que ir embora.
outubro,2018
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trissos · 6 years
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Por bem, decidiram então pelo fim. Depois de ininterruptos cinco anos. O primeiro foi de tremedeira nas pernas. No segundo, atingiram o nirvana sexual. Com o terceiro veio junto o apartamento. No quarto, desejo mútuo por terceiros. Finalmente, o quinto mostrou que haviam se tornado dois. Definitivamente, duas novas perspectivas de vida. Ela não pediu que ele ficasse. Ele chorou porque sempre foi o pilar sentimental do casal, e só por isso. Ela ficou com o apartamento. Ele com o labrador, com nome de ex-craque do Internacional. A última coisa que ele fez foi catar seus discos da Legião Urbana. Ela deu uma última olhada em volta. Ele entregou a chave. Ela deixou escapar que nunca vai esquecê-lo, de alguma forma. Ambos relembraram o plano de provar pra todo mundo que dava para coabitar romanticamente. A porta se fechou dando fim ao que não tinha fim. Ela decidiu rever tudo. Jurou que seria eternamente fiel à liberdade. Agora, madruga suas noites em discotecas, na companhia de estranhos e envolta em novos braços peludos. Aos sábados, dorme até meio dia para esquecer a antiga rotina de acordar cedo, fazer jogging no Parcão e almoçar os bifes maravilhosos da mãe dele. Não assiste mais novela, passou a usar mais vestido, começou a ouvir Bossa Nova e cogita tatuar o pé. Ele planejou uma revolução. Decidiu conhecer alguém novo, ligou para uma garota de programa. Hoje, não fica um dia sem compartilhar o violão com velhos amigos no Bar dos Podres. Invariavelmente, passa os domingos de chuva na cama, na companhia do Falcão, uma garrafa de Merlot e A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Perdeu seis quilos no último mês, deixa roupas penduradas, trocou de emprego e cogita passar o feriadão em Ilha Bela. E suas vidas continuam, sob nova direção. Outro mês se foi, e eles não tem notícias e nem previsão de reprise. Ele é grato a si mesmo pela implosão das grades. Ela sente um mundo de possibilidades inflando ao seu redor. Ele pede aos amigos que digam a ela que até está bem, levando, obrigado. Ela não oculta uma certa tristeza no olhar na frente deles. Ele espera que ela esteja feliz e bem acompanhada, com alguém decente, que tenha ao menos o carinho que ela merece. Ela torce secretamente para que tão cedo ele não encontre uma garota “melhor”. Querendo ou não, ele pensa nela de quando em quando. Toda noite, se aproxima do velho apartamento com o labrador Falcão, e questiona as luzes apagadas já na tarde-noite. Fica imaginando se aquela dor crônica no pescoço curou, se tem comido beterraba e controlado direitinho a tireoide, conforme prometeu que faria. Agora, desconfia que as novas garotas da sua vida serão meros passatempos. Sente falta de ouvir aquela voz meio gasguita. Chega a pegar o telefone. Não telefona. Bem ou mal, ela sente sua ausência. Toda noite, evita estar em casa lembrando que o espaço do apartamento triplicou por um milhão. Sente falta de camisetas espalhadas aleatoriamente. Fica lembrando ele cozinhando espaguete al pesto, ou quando ele sentava na janela dedilhando “Tears In Heaven”, ou assistia o colorado comportadinho, roendo as unhas sem parar, os pés no sofá. Hoje, coleciona casos com cafajestes fajutos. Sente falta dos sermões que levava por andar descalça no chão frio. Verifica o funcionamento do telefone: tu-tu-tu. Presos pela liberdade, prosseguem cada um na sua, conectados por um fio invisível que não conduz mais eletricidade. Um fio de saudade dissonante e a certeza de que, amor como aquele deles, não acontece no tocar de uma varinha de condão.
Gabito Nunes
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allanmaykson · 6 years
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CONSTELAÇÃO NÃO VEIO Allan Maykson Procuro constelação da minha janela Buscando poesia para esta noite Meus olhos piscam aos ciscos de poeira As costas recostam na cama sem cabeceira A memória me acossa entreveira Me engana, me descalça, me desnuda. Minha alma muda também é alma ferida É alma refém de uma vida À espera numa esperança absurda. A constelação a luz urbana oculta E se quero estrelas eu me escondo Nos escombros da beleza do nada Onde ainda é estrada Onde as entradas não são sinalizadas Onde a chuva não deixa chegar Onde a lama não deixa calçar Onde nasce o que era pra tomar e não adoentar... Ah, eu queria constelação para poetizar Poetizar só agora pelo que há Não pelo que sempre há de me faltar... 10 de abril de 2018 Imagem: http://seekershub.org/ans-blog/2016/05/16/14012/ #poeta #poetabrasileiro #escritor #compositor #criatividade #poesia #arte #expressão #arteterapia #ator #cantor #versos #artistacapixaba #poema #artescênicas #artescênicasuvv #teatro #poet #composição #improviso #violão (em Vila Velha, Brazil)
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mithrandre · 7 years
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De fato, bandido bom é bandido morto.
[Eu tenho medo desse assunto e escrevi com cuidado. Estou aberto (quase desesperado) a mudar de opinião, só peço que se mantenham as ideias claras e o tom amigável]
Toda vez que um ser humano é marginalizado, brutalizado, ferido, linchado, violentado, enfim, privado de sua condição humana, é uma perda irreparável e extremamente custosa pra sociedade toda. Perdemos ideias, memórias, sonhos, potencial de trabalho e de transformação das realidades social e material. Deveríamos ter bem claro na mente que a violência não é apenas cruel, ela é cara. O custo são todas as coisas anteriormente mencionadas, que tem preço incalculável. Isso não é muito difícil de aceitar.
Um pouco mais sutil é o fato de que, no ato da violência, não apenas a vítima perde sua condição humana, mas também o perpetrador: ambos perderão sua sensibilidade e habilidade de trabalho (um pelo trauma, o outro pelo vício). Ambos talvez entrem numa escalada que os deixará numa situação social muito mais vulnerável (um pelo agravamento, o outro pela reincidência). Ambos, por fim, terminarão imprestáveis (um pelo martírio, o outro pela marginalidade). O que parece difícil de aceitar no Brasil, e eu culpo a nossa cultura punitivista por isso, é que na violência não só uma, mas três partes saem perdendo: vitimado, vitimador e sociedade, nós.
O punitivismo é a crença de que a violência tem causadores: sem bandido não haveria bandidagem e fim da história. Muito natural, segundo essa crença, é que se separem todas as maçãs podres - no ostracismo, na cadeia, na morte - e não se fale mais no assunto; Isso tudo parece bastante intuitivo, não fossem as situações contraditórias: O Brasil tem a 4ª maior população carcerária do mundo, mas não tem a 4ª menor violência. Dessa população, quase 3/4 não aprenderá com o (em teoria) santo remédio da cadeia, e será condenada por algum crime novamente. Essas situações são contra-intuitivas porque a tese que a explica não é abrangente o bastante.
Não se nasce bandido, torna-se. É possível que exista correlação entre alguns genes e a psicopatia, mas a verdade é que o Projeto Genoma não achou até hoje um único gene responsável pelo fenótipo da bandidagem. Não há um único átomo de bandido no ser humano que comete monstruosidades, ele continua sendo apenas um ser humano - um que cometeu monstruosidades.
Como, então, alguém se torna bandido? Dadas temperatura e pressão críticas, qualquer um vira bandido: é só abrir o jornal pra ver a quantidade de pai de família que matou a esposa, amigo ou filho a tiros, porque "explodiu". Alguma situação apertou muito precisamente um ponto extremamente sensível daquela pessoa, quase uma acupuntura. [É um erro muito comum e muito mais grave (ainda que não seja o que eu estou tratando aqui) culpar a vítima por ter apertado aquele botão, porque essas causas e condições são muito específicas, quase aleatórias. É como culpar todos os espinhos do chão de uma floresta por terem machucado o pé de uma pessoa que andava por ela descalça. Muito mais fácil é conhecer as próprias sensibilidades, a si mesmo: usar a porra da galocha pra andar por aí]
Muito mais eficiente, então, seria pesquisar quais temperaturas e pressões são essas que costumam causar situações críticas. Amplamente documentado: o abismo de oportunidades entre uma população e outra, a escolaridade, a renda, o emprego, são todos parâmetros que podem ser usados e que tem alguma correlação com a violência urbana [Aliás, apenas um tipo específico de violência, ainda que também o nosso trânsito seja dos mais violentos, o nosso ambiente de trabalho, os nossos relacionamentos. Todas esses âmbitos são propensos a violência, ainda que não chamemos esses causadores de 'bandidos'. Esse fenômeno linguístico concorre para o fato de que o perfil do presidiário brasileiro é jovem, baixa renda e negro, e é para esse indivíduo que usamos a alcunha eufemística 'bandido'].  Se o bandido, que, relembro não tem um único átomo de bandido, não se defrontasse com essa cama de pregos todo dia, com alguma margem de erro sua vida seria outra. A situação nos grandes centros urbanos brasileiros, nas favelas, nos trânsitos, enfim, nas nossas mentes, é brutal - tanto brutalizada quanto brutalizadora.
Ao contrário do que o punitivismo pensaria, a violência não é pessoal, mas estrutural e conjuntural. É por isso que prender (ou mesmo matar) indivíduos violentos não resolve: nossa sociedade sempre produzirá pessoas que são potencialmente violentas a não ser que mudemos alguns quadros, e as prisões e sentenças capitais só acentuam a escalada bárbara que se tentava combater (o que, como já disse, é de fato muito contra-intuitivo, mas é o que acontece).
Mas o que fazemos com o bandido, então? Ainda que pelas premissas erradas, quem grita que bandido bom é bandido morto está, lá no fundo, certo. Precisamos realmente matar bandidos, mas precisamos fazer isso de forma inteligente.
Pensem bem: um ser humano, um corpo e uma mente humanas, são um conjunto de fatores biológicos com bilhões de anos de idade. Do ponto de vista genético, todas as pessoas que pisam nessa Terra são praticamente idênticas (um alienígena não veria grandes diferenças entre nós, assim como nós não vemos grandes diferenças entre uma formiga e outra). O que não é dizer que somos exatamente idênticos: ainda que muito similares, cada um de nós é de fato único e tem, no seu olho e na sua carne, algo a dizer, mesmo que isso seja apenas a sua própria história de vida. Na verdade, a ciência, a filosofia, a arte, a engenharia, a política, até mesmo a nossa língua, e todo o nosso modo de vida, nada mais são que a coleção infinita de contribuições, umas maiores outras menores (todas únicas), de todo mundo que já existiu, sem exceção. [Eu iria mais longe e diria que se a gente respira hoje é porque um bando de bactéria sintetizou oxigênio bilhões de anos atrás, então o mérito da existência não é só dos seres humanos, mas de todos os seres também sem exceções. Isso fica pra uma outra hora]. Então sim, o bandido precisa ser morto, mas conservemos essa riqueza muito mais basal e profunda que é a existência humana. Não porque isso é o "politicamente correto", porque alguém disse que tem que ser assim, mas porque é mais inteligente mesmo: ouvindo o que essa pessoa tem a dizer, talvez encontremos um excelente cronista, ou alguém que dirige muito bem, ou alguém que fará muitas obras, alguém que cozinha com os temperos certos, alguém que tem mão boa pra plantar, alguém vai amar muito seus filhos, ou que vai trazer o Nobel pro Brasil. Ou que fará menes de primeiríssima qualidade. As possibilidades são tantas quanto as nossas diferenças.
Como, então, matamos bandidos? Não sou especialista, mas tudo que venha entre a efetiva prisão (pra proteger a pessoa de cometer mais crimes e ferir a si mesma e aos outros) e a completa reabilitação (quando temos, de fato, não um novo cadáver ou membro do crime organizado, mas um bandido morto e um ser humano vivo em folha, pronto pra contribuir como quer que seja na história do mundo) constituiem a morte do bandido. Pelo que li, são medidas educacionais, psicomotivadoras, de assistência social ou até mesmo financeira, a nível desde individual até de políticas públicas, que tem por objetivo extinguir as causas e condições que geram a bandidagem. Muito tempo atrás, o nome disso era Justiça.
É aqui que eu penso em Apanhador Só. Afinal, também não há no rapaz aquele um único átomo de canalhice, que é tão estrutural e conjuntural como a violência que eu acabei de descrever. É, inclusive, um caso particular de violência com todas as letras. Já justifiquei que, para quaisquer que sejam os casos, é mais inteligente exigir Justiça do que confiar no punitivismo e exigir vingança. Claro, o nosso judiciário não está preparado para casos assim, se o conceito de violência marital existe não tem 20 anos; Então as mulheres tem o direito de tentar criar o conceito do que é justo pra esse caso (lembrando, a Justiça é aquilo que busca matar o bandido de verdade, as causas e condições dele. A vingança mata o bandido de mentira, mata o ser).
O que tem me incomodado é pensar sobre se a repercussão do caso tem sido, de fato, justa. Pensar que o cara da banda vai deixar de ser abusador porque a banda deixou de existir talvez seja raso. Claro, a única alternativa que hoje as mulheres em conjunto tem de fazer alguma frente a uma indústria misógina é no seu fundamental papel de consumidoras, mas é bom salientar que isso é longe de suficiente.
[Antes de seguir, relembro: estamos tentando ir além da concepção punitivista, então eu não 'me esqueci' convenientemente da esposa violentada pra 'passar pano' pro macho artista. Eu estou, ao contrário, tentando ver ambos como agentes, produtos e vítimas numa estrutura, identificar seus elementos constitutivos, e meu objetivo último nessa linha de raciocínio é tentar pensar medidas de fato hábeis para que esses elementos não voltem a se configurar nunca mais. Também salientar que a exposição desses casos por parte das mulheres, ao invés do tradicional silêncio, é saudável propelente de discussões como essa]
Por que eu não acho que seja suficiente? Porque na sociedade que a gente vive, é pouquíssimo provável que exista um artista, ou político, ou irmão, ou namorado, ou algum homem que não seja, sob algum aspecto, escroto. O lema do "não deve, não teme" não vale porque todo o homem sempre, pela maneira que foi socializado, deve ter algo a temer. Isso é positivo, é a correção de uma divida histórica que dez milênios de patriarcado nos legaram. Viver com medo de ser escroto é o seu preço.
Contraintuitivamente, porém, o medo de ir pra cadeia (ou de ser ostracizado) não é o verdadeiro motor do cumprimento das leis. O cidadão autenticamente correto o é não porque teme um Estado Autoritário, ou um Deus Vingativo, ou uma horda enraivecida, mas porque entende o espírito das leis, vê nelas o seu conteúdo positivo, e as segue porque compreende que o funcionamento delas é o melhor para si e para os outros. Ele não meramente acata, mas se identifica, e desse modo não é apenas vigilante das leis, temeroso das consequências de um dia quebrá-las ("como um cão adestrado", como eu já vi em caixas de comentários retrógradas por aí), mas eticamente incapaz de quebrá-las, porque as entendeu, as é. O medo cede espaço a atenção e ao cuidado.
Esse entendimento só pode surgir num ambiente propício a troca de experiências e de realidades, ao diálogo e a empatia. Ele gera relações saudáveis onde quer que se instaure, sem esforço algum. O Tribunal é a conquista institucional histórica que representa o esforço em construir esse espaço de análise crítica e justa. Em vez de ocupá-lo, abandoná-lo em prol de justiçamento virtual, onde se decidem arbitrariamente os litígios, me parece um retrocesso perigoso, e não me parece garantir que o bandido sairá morto.
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herrbarbuse-blog · 7 years
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Bom dia. É hora da história: A ENCANTADA DO ENCANTADO (versão atual da lenda urbana A loura e o Taxista) Na calada da noite um taxista sonolento de nome João Manuel pilotava seu carro de aluguel. Deparou-se com a figura misteriosa de uma loura chamando seu táxi, nas imediações da Boca-da-mata. Ele parou e pensou: “será uma longa corrida ou uma nova namorada”. Muito séria, a loura com uma voz profunda e rouca lhe pediu: "leve-me ao cemitério da Penha". João Manuel estranhou o pedido e meio aturdido obedeceu. Aproveitando a solidão das ruas, pisava frouxo no acelerador do veículo para não passar dos 40 por hora. Nessa velocidade pensava em como se aproveitar da situação, ou melhor, como cantar a louraça. A mulher, chorosa, disse: “corra moço, corra senão não terei mais tempo”. Condoído ele aperta o pé e chega aos 80 Km por hora. Durante o trajeto ela permanecia calada. Ele tentou entabular conversa, mas só gastava a saliva. Ela chorava miúdo e ele, preocupado, observava. Notara sua palidez e temeu se apaixonar. Pensou até em protegê-la pelo resto de sua vidinha de chofer de praça. Chegando ao Cemitério da Penha, diante dos imponentes portões de Bronze, ela pede para ele esperar. Descalça ela desce do táxi corre e para diante dos portões trancados. Afinal era quase meia-noite. João Manuel segue seus passos com o olhar. Ela começa a dançar uma dança esdrúxula com rodopios e pequenos saltos. O aturdido taxista vai ao seu encontro e segura suas mãos. Os dois bailam por eternos minutos. Agora ela sorri e João Manuel sente-se um deus. Me leve ao Encantado, rua fulano de tal, casa 34 - de repente ela lhe ordena. - A senhora, ou senhorita mora no Encantado? O poeta Cruz e Sousa morou lá. - Conheço não. Minha mãe se orgulha de ter frequentado a casa da Araci de Almeida. Agora essa tal de Cruz só conheço de cemitério e das beiras das estradas. Rárárárárá – ela lhe responde com forte gargalhada. - Sei. Araci de Almeida foi grande cantora e jurada do Sílvio Santos, é mais fácil lembrar dela do que dele: Cruz e Souza. Começa a declamar uns versos. “O Horror dos Vivos Ao menos junto dos mortos pode a gente Crer e esperar n'alguma suavidade: Crer no doce consolo da saudade E esperar do descanso eternamente. Junto aos mortos, por certo, a fé ardente Não perde a sua viva claridade; Cantam as aves do céu na intimidade Do coração o mais indiferente. Os mortos dão-nos paz imensa à vida, Não a lembrança vaga, indefinida Dos seus feitos gentis, nobres, altivos. Nas lutas vãs do tenebroso mundo Os mortos são ainda o bem profundo Que nos faz esquecer o horror dos vivos.” - Que lindo, o senhor também é poeta? - Não, esses são versos do Cruz e Sousa, seu quase vizinho, se já não tivesse morrido. Quase não se contendo de emoção, o taxista leva sua leve e gelada passageira ao endereço solicitado. Lá chegando ela desce do carro e empurra um pequeno portão de ferro que cede com algum barulho dando-lhe passagem. A loira segue por um terreno estreito que termina em uma varanda de casa de subúrbio, modesta e antiga com muros baixos, da altura de uma pernada. Como a loira não voltava para pagar a corrida, e sem se importar com o avançar da madrugada, João Manuel anda até a porta do casebre e, de punho fechado, bate com os nós dos dedos na madeira enegrecida da porta causando um barulho seco e contínuo: pá, pá, pá. Uma senhora despenteada e sem dentaduras de setenta anos, mais ou menos, com bafo almiscarado e “mingau de fantasma” desenhando a linha do lábio inferior, abre a porta assustada. “Minha senhora, me desculpe o incômodo, sou taxista e trouxe uma loirinha para cá, mas é que há meia hora atrás ela aqui entrou e ainda não me pagou a corrida. O taxímetro continua a correr e está ficando muito caro.” - falou quase se lastimando. A senhora pediu para ele desligasse o taxímetro e depois entrasse na casa. Desconfiado, ele assim o fez. Dentro, forte cheiro de mofo atordoa seus sentidos. Em cima de uma estante ele vê o retrato da bela loira. Estava colado em uma barata moldura prateada. “É ela, ela que aqui entrou e nada falou e nada pagou.” A mãe chorando lhe respondeu: “não pode ser, minha filha já morreu. Há quarenta anos ela dançava em frente ao portão de bronze do cemitério da Penha e um caminhão desgovernado a atropelou.” Um calafrio arrepia a nuca de João Manuel. “Desejei uma alma penada?” se perguntou, quase desfalecendo. O cheiro de mofo começa a sufocá-lo e tremendo, rapidamente foge daquela casa, sem se despedir e sem receber a corrida. Suava frio, tão frio quanto a mão da moça com quem tinha recentemente dançado uma valsa, em frente aos portões de bronze do cemitério da Lapa, do Catumbi, da Penha. Já não mais lembrava o nome do lugar, só via os túmulos saltarem em sua memória junto aos versos do poeta simbolista Cruz e Souza. Todavia, lembrou-se das histórias de mulheres que desapareciam na madrugada, como almas penadas, que outros taxistas contavam. Dessa vez aconteceu com ele. Assim que o taxista partiu, queimando pneus sobre o fraco asfalto de subúrbio, a loura sai do seu quarto e entra na sala. “Mãe – chama as gargalhadas. Mais um pato me traz pra casa de graça.” E a mãe sorrindo balança a cabeça como quem diz que ela não tem jeito mesmo e vai a cozinha tomar sua dose de cachaça. Antes de ir dormir, porém, reacende a vela apagada sob a foto da filha “fantasma”. - Carlos Vieira
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Ravenna — Rapunzel — Eugene/Salão
A mulher manteve o sorriso malicioso enquanto pensava numa vingança justa contra John Ratcliffe. Tinha que ser algo memorável, para que o mal caráter viesse a pensar duas vezes antes e importunar as pessoas de bem. Claro que ela sabe que Eugene não é nenhum santo, mas também sabe que ele nunca teria feito algo para merecer tamanha hostilidade por parte do magnata. Manteve-se em silêncio, elencando mentalmente várias possibilidades plausíveis. Dar em cima e depois despacha-lo seria um golpe momentâneo e facilmente superado. Inventar algum boato contra um empresário renomado tão logo cairia no esquecimento. Fazer alguma maldade com o cabelo da esposa, se é que ele tem uma, iria contra os princípios profissionais de Ravenna. Então, o que fazer ? O mais eficaz seria danificar algo material, e sendo ele um homem, provavelmente possui apreço por algum veículo. — Você sabe qual o carro dele ? Ou moto ? — Perguntou, e vendo Eugene menear em concordância, já sabia como atingir o magnata desprezível. — Podemos deixar frases de incentivos na lataria. Aposto que isso será digno de nota. O que você acha ? — Sugeriu. O comediante acatou o plano, fez suas próprias considerações e depois de tudo combinado passaram a caminhar pelo festival enquanto os olhos buscavam pelo veículo de John. Eugene apontou um belo Mustang a frente. A pintura negra lustrosa ofuscava a todos que paravam para admirar o veículo. Sim, aquela vingança seria inesquecível, seja para os executores, seja para a "vítima". — Uma pena que você seja de alguém tão babaca. — Murmurou assim que se posicionou ao lado do veículo, passando a mão pela lataria do capô enquanto uma pitada de pena a assolava. Sentimento este que logo a abandonou, pois assim que o companheiro de travessuras avisou que ninguém mais devotava atenção ao carro, a adrenalina do momento a dominou. — Mãos a obra. — Disse, primeiro observando o homem iniciar sua arte com a ajuda de um abridor de garrafas/latas. Ravenna não tinha consigo nada pontudo, então deixaria sua marca usando o batom vermelho que sempre carregava consigo. Eugene se encarregava de riscar a lataria, ela em paralelo agregava cor aos vidros do veículo. "Babaca" "Covarde" "Ogro" "Cuzão", dentre outras palavras ofensivas foram escritas pela mulher, que mantinha um sorriso travesso estampando-lhe as feições a cada letra carmesim que rabiscava. O casal chegou a rir vez ou outra enquanto admiravam o resultado da vingança. O sentimento ruim ainda os dominava graças à maldição de Scarlett, mas o flagrante ocorrido os injetou bom senso quase que instantaneamente. Era John, junto a outros três homens mal encarados, que gritava e apontava na direção de Eugene e Ravenna. — Lascou! — Exclamou, aceitando de bom grado a proposta do comediante quanto a saírem correndo dali antes que fossem pegos. Sem frescura, Walker tirou os saltos e correu descalça pelas ruas de Storybrooke, tendo o Fitzherbert ao seu lado. Se enfiaram em becos e ruas desconexas em prol de despistar o empresário e seus lacaios hostis, e assim que se viram fora do campo visual dos homens, se esconderam atrás de uma lixeira urbana para retomarem o ar. — Precisamos nos esconder. Meu salão é aqui perto, podemos ir para lá. — Sugeriu, falando um pouco entrecortada enquanto normalizava a respiração. Eugene concordou com a proposta, já que não tinham muitas outras para avaliar, então assim que viram a rua livre dos perseguidores, partiram em disparada para o Empire. Esgueiraram-se sempre que ouviam passos suspeitos, e depois de alguns minutos de fuga, estavam frente a frente à fachada envidraçada. Sem demora, a acastanhada retirou a chave da bolsa de mão, abriu a porta e cedeu passagem ao rapaz. Trancou-a em seguida, arrastando Eugene pela mão para detrás do balcão da recepção. A fachada sendo translúcida, precisaram se esconder atrás de algo para não serem vistos pelos capangas de John, caso eles passassem por lá. Agora que sentiam-se seguros, permitiram-se rir um pouco mais enquanto a adrenalina se dissipava. — Que aventura. — Disse, um tanto extasiada enquanto encarava o rapaz profundamente. Tinha um sorriso radiante estampado na face, e estava feliz por estar ali com ele apesar do perigo que correram. Era como se aventura sempre tivesse feito parte de seu ser, e vivenciar tal emoção a fazia sentir perto da pessoa que um dia fora. E mesmo que fosse tolice pensar desta maneira, parecia que o Fitzherbert sempre fizera parte de sua vida. Por falar nele, como estavam  encolhidos enquanto se escondiam, os rostos estavam bem próximos. Próximos até demais. Um ligeiro calafrio subiu pela espinha da cabeleireira enquanto esta mantinha o olhar preso aos dele, como se estivesse hipnotizada. Dizem que adrenalina aumenta a libido, e com base na forma que ambos se encaravam no momento, poderiam afirmar que a teoria tem fundamento. Os lábios da mulher se entreabriram assim que viu os olhos azuis de Eugene encará-los desejoso, e provavelmente se beijariam, caso não tivessem se assustado com o barulho de vidro se partindo. O susto fez com que ambos agissem involuntariamente enquanto se revelavam do esconderijo para encarar o causador da destruição da vitrine. Este que era John Ratcliffe e seus três subordinados. Ravenna então encarou o parceiro, os olhos demonstrando um sentimento que até então ela não tinha compartilhado com ele: medo.
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