Tumgik
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Os contadores de histórias
    Desde antes de eu nascer, bem antes, já era proibido inventar histórias. Me lembro de, muito pequena, estar sentada aos pés de minha avó mexendo com minhas pequenas mãozinhas em seu vestido estampado. Ela encarava o vazio, com seus olhos azuis e opacos da cegueira, e eu implorava: “Vovó, conta uma história?” Ela sempre suspirava e mexia nas minhas tranças. Depois num tom amargurado dizia que poderia me contar todas as histórias de quando era uma garotinha como eu, as histórias de sua avó e ainda as histórias da avó da avó dela, mas não podia inventar uma história para me contar.
    “Por que não, vó?”
    Porque histórias inventadas eram histórias de mentira, e era proibido mentir.
    Eu sabia, mas pedia mesmo assim.
    Sei que houve uma época em que histórias inventadas eram contadas desde o berço. Sei que eram chamadas de contos de fadas e sei que eram sobre magia, animais fantásticos, pessoas que voavam e falavam com pássaros, crianças que entravam na floresta e passavam pelas aventuras mais incríveis. Também sei que várias pessoas viviam de inventar histórias, muitas e muitas delas, e as escreviam em livros que eram vendidos no mundo todo. Hoje só temos livros biográficos, didáticos ou científicos. Podemos aprender coisas com os livros, mas isso é tudo. A ficção foi proibida.
    Minha bisavó era escritora, muito tempo atrás. Minha família mantém um exemplar de cada livro dela. Alguns deveriam ser parte de uma coleção vendida sempre junta, mas o perigo da proibição nos fez preservar qualquer um que fosse possível, independente da edição, cor da capa ou tipo de papel. O que importava eram as letras guardadas lá dentro. Todos em casa falam sobre ela, por isso eu sei. Ela escrevia contos de fantasia e os publicava para que todas as pessoas do mundo lessem. Chegou a ficar famosa. Seu nome era citado em diversos trabalhos acadêmicos e usado como referência no mundo da literatura. Ela vivia de inventar histórias e contava todas elas para sua filha. A filha dela era minha avó, que hoje é velha e cega e não pode me contar essas mesmas histórias. Ela tem medo, eu sei, de que eu conte para minhas amigas e que as histórias corram até alguém denunciar. É proibido.
    Eu sempre soube desses livros, mas nunca fui autorizada a lê-los. Não ainda. Só poderei abri-los quando completar quinze anos. É essa a regra. Sou a primeira que nasce na família depois da proibição da ficção, é preciso ter cautela. Minha avó e minha mãe podiam carregar os livros consigo pela rua sem medo, mas eu não posso nem ouvir histórias antes de dormir como dizem que se fazia antigamente com crianças pequenas; histórias de ninar.
    Desde a proibição da ficção, muitos cinemas fecharam. Tem um abandonado bem na frente da minha escola. Minha mãe diz que no início não era proibido inventar histórias através da sétima arte, mas quando a literatura passou a ser controlada muitos escritores e poetas trocaram suas canetas por câmeras. Isso rendeu um boom de filmes que escondiam críticas à censura. O governo deu-se conta então de que absolutamente todo e qualquer tipo de ficção, não apenas a literária, era perigosa. Prenderam muitos escritores-roteiristas-diretores nessa época. Não tiveram o mesmo problema com os teatros; quando a lei entrou em vigor, a primeira coisa que fizeram foi fechar a maioria deles. Hoje só se pode dramatizar eventos históricos. Você não acreditaria na quantidade de peças sobre o Antigo Egito que já assisti.
    Meu avô se matou nessa época. Não cheguei a conhecê-lo, minha mãe era menina ainda. Ele era dramaturgo e professor de teatro. Minha avó diz que ele não suportou a ideia de jamais encenar O Sonho de Uma Noite de Verão com seus alunos novamente.
    Todo o passado que jamais vi flutua em volta de mim e nada posso fazer a não ser esperar para ler, em segredo, as histórias que realmente queria estar aprendendo.
    Completo quinze anos amanhã. Terei acesso aos livros de minha bisavó e lerei cada letrinha de cada um deles, absorvendo todas aquelas histórias para sempre.
    O que será feito de mim depois?
    Vou me matar, como meu avô, num luto irrefreável pela morte da imaginação?
    Vou me trancar na cegueira e na tristeza, como minha avó, chorando sempre porque não posso contar as histórias que guardo dentro de mim?
    Vou tentar seguir a vida como minha mãe, tentando manter de pé essa família mutilada e mal vista aos olhos da lei, com um longo histórico de crimes?
    Gostaria de ser como minha bisavó.
    Gostaria de ser escritora.
    Qual é a pior coisa que pode acontecer, afinal, se eu despretensiosamente encostar minha caneta no papel?
Talita Emrich, dezembro de 2018
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Projeto de Lei
    O contato com crianças é perigosíssimo. Sua estrutura pequena e frágil e sua fisionomia precisamente desenvolvida para ser agradável ao olhar (olhos grandes, rosto pequeno e proporcional) despertam em adultos um instinto primitivo e incontrolável de proteção e empatia. Pessoas perfeitamente conscientes colocam-se em posições de risco ou até dão a própria vida para proteger crianças que nem mesmo são suas descendentes diretas. Membros contribuintes da sociedade se vêem tentados a trabalhar menos para passar mais tempo em casa, perto dessas pequenas criaturas. Intermináveis brigas judiciais se desenrolam na justiça para decidir quem tem posse sobre uma destas, ao fim de todo casamento, entupindo os fóruns e atrasando o trabalho dos juízes. Homens e mulheres, hipnotizados pela fascinação causada pelos recém-nascidos, põem no mundo já superlotado mais e mais deles sem o mínimo planejamento ou controle, só pelo prazer de segurá-los no colo.
    É também extremamente difícil garantir o bem estar, a segurança e a saúde de seres tão frágeis enquanto sua criação estiver delegada a civis sem a devida formação para tal fim. Cada detalhe do desenvolvimento infantil é crucial e qualquer falha pode resultar em um futuro cidadão de mau caráter, má formação ou até mesmo num delinquente. A carência de determinados nutrientes na primeira infância jamais poderá ser reposta na idade adulta e daí surgem cidadãos com Q.I reduzido e malnutridos, o que prejudica sua produtividade no mercado de trabalho. Deve-se sistematizar e oficializar o trabalho com os infantes o quanto antes para evitar toda e qualquer margem de erro.
    Minha proposta é que uma atitude seja tomada. Uma nação que prioriza a produção e otimização dos serviços não pode permitir que os primeiros anos de vida de seus habitantes causem tamanho tumulto. É urgente que tomemos providências. Prometo não descansar enquanto a questão das crianças não for resolvida da maneira mais útil e prática para toda a nossa sociedade.
           -Governante Geral nº 96.
Talita Emrich, outubro de 2018
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Metilfenidato
Os psiquiatras pediatras psicopatas diagnosticaram tantos casos de hiperatividade infantil que o governo liberou a distribuição gratuita de Ritalina.
As escolas desde então não têm tido problemas em suas linhas de montagem. Todos os robôs funcionam perfeitamente, muito bem comportados, focados e disciplinados.
Os desenhos da pré-escola, porém, têm sido ligeiramente afetados.
Em vez de campos floridos e girassóis, essas crianças só desenham quadrados.
Talita Emrich, novembro de 2018
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Ao batom vermelho
Se posso usar mas não quero,
se quero usar mas não posso,
se for vaidade ou vadiagem,
se for pouco ou demais…
Como foi que complicamos tanto um pouco de tinta no bastão?
Talita Emrich, 8/11/2018
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parque das ruínas
Você já visitou um prédio abandonado? Uma casa caindo aos pedaços? Uma igreja sem teto?
Não digo aquele “abandonado” de estar vazio apenas. Digo o abandono que prejudica a estrutura, faz cair a tinta das paredes, expõe os tijolos, quebra os vidros. O tipo de abandono que destrói tanto as construções quanto os corações.
Visitei um dia o que sobrou de um palacete. Nada restava da adega além das paredes de pedra. Do primeiro piso, só sobreviveram os tijolos e buracos das janelas. As maçanetas de ouro das portas foram saqueadas. Das portas em si nada havia; foram totalmente consumidas por cupins. O chão entre os andares sumira, fazendo do prédio inteiro nada mais que uma casca vazia.
Da rica viúva que ali vivia, nem sinal. Morreu sem filhos e doou o prédio a uma instituição que jamais tomou posse do lugar. A decrépita construção pouco se parecia com o que contavam as histórias; diziam que ali organizava-se saraus, recitais, apresentações de canto, piano e violino, peças teatrais e grandes festas. Nada sobrou. Só a melancolia do abandono.
Mas pelas paredes vi esperança.
Havia vida.
Samambaias brotavam dentre os tijolos. Trepadeiras subiam pelas paredes até o teto sem teto. Flores miudinhas nasciam, selvagens, nos buracos das janelas. Atrás delas, vinham passarinhos e insetos procurando um lugar para morar.
Ali, onde o homem nada mais podia fazer, as plantas haviam se encarregado de operar uma pesada obra de reestruturação.
A gente toma o espaço da natureza pra construir nossos prédios, mas quando finalmente os abandonamos ela vem tomar de volta o seu lugar.
Talita Emrich, novembro de 2018.
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Eu nunca colei, sabia?
Repeti na escola por causa disso.
Nunca achei correto ser avaliada com um número, mas isso não me dava passe livre pra enganar os professores. Se eu não sabia, não sabia. Ficava em branco. Boa parte da turma colava, tirava nota alta, passava. Eu não. Ficava.
Claro que havia quem tirasse notas altas estudando; mas eu, às vezes, nem estudando conseguia. O problema na verdade eram três matérias específicas. No resto eu ia sempre bem. Não tinha problemas de comportamento; talvez falasse demais na aula, mas geralmente era porque não conseguia manter o interesse naquilo que não entendia - e acreditava que nunca entenderia, mesmo.
A partir do nono ano, eu só era aprovada pelo conselho de classe. Nem nas provas finais, a última chance, eu compensava. As notas naquelas três matérias não passavam muito de zero, meio, um ponto. Mesmo com recuperação, mesmo com professora particular, mesmo com aula de reforço. Zero.
No primeiro ano passei na prova final de matemática, mas fui pro conselho de classe em física e química.
No segundo ano repeti.
E repeti não só em matemática, física e química, mas também em português: uma das minhas matérias favoritas. Afinal, lá pela metade do ano eu já percebia que seria reprovada. Se o único objetivo da escola era ser aprovada, pra quê continuar se esforçando à toa? Nem apareci pra fazer as provas finais.
Lembro de ver, ao longo daquele ano, os colegas colarem de diferentes maneiras. Eu me recusava a colar; sabia que todos faziam por desespero e que os professores provavelmente imaginavam que alguém o faria, sabia que entre os alunos aquilo era considerado normal, mas mesmo assim não achava certo. Era injusto enganar aquele sistema ainda que o próprio sistema fosse injusto.
Eu já nem acreditava mais na minha capacidade de aprendizado, pelo menos naquelas três matérias. Não tinha expectativa de ganhar nada além de um zero. Se tirasse 3, considerava uma nota até alta. Enquanto isso, nas outras matérias, ficava arrasada se não conseguisse um 8 - mas geralmente conseguia.
Refiz o segundo ano junto com o pré-vestibular em 2015, que teoricamente seria apenas para o terceiro ano.
Foquei muito mais nas aulas preparatórias que as do horário escolar; meu objetivo já não era mais passar de ano, e sim entrar na faculdade.
Fiz o ENEM para pegar o diploma do Ensino Médio.
Bati a pontuação necessária. Algumas semanas depois, descobri que tinha passado para uma federal.
Passei pra faculdade sem fazer o terceiro ano.
Hoje ainda não sei dividir números com vírgula, calcular porcentagens, estimar ângulos, fazer notações científicas nem equações de segundo grau. Também não sei distribuir elétrons, fazer ligações químicas nem listar três dos gases nobres. Nem calcular quanto tempo leva um objeto de massa X para chegar ao chão desconsiderando a resistência do ar.
Mas sei escrever crônicas. Poemas. Sei revisar um texto e colocar as vírgulas e parágrafos conforme o necessário. Sei explicar como usar a concordância verbal e sei por que existe uma tendência a dizer prástico em vez de plástico. Sei redigir um artigo acadêmico e sei formatar um texto de acordo com as normas da ABNT.
Mais importante ainda: estou aprendendo a ensinar todas essas coisas e muitas mais.
Se você estiver sofrendo por causa da escola, meu conselho é: calma. Isso é só uma pequena parte da sua vida, o prólogo, a introdução. É bom absorver o máximo de conhecimento possível porque tudo pode vir a ser útil mais tarde, mas não acredite nem por um segundo que você é intelectualmente incapaz. Você pode aprender qualquer coisa desde que tenha a motivação, o professor e a estratégia adequados. Caso não tenha, tudo bem; faça o seu melhor por enquanto.
Ao longo da vida você descobrirá seus talentos.
Nem todos eles cabem em uma sala de aula.
Talita Emrich, 2018
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um diálogo entreouvido no pátio do campus
-Cara… Acho que aquele guarda chuva ali é meu.
-Aquele ali? Em cima do banco?
-Isso. Eu esqueci um igualzinho a esse aqui na faculdade. Assim tipo bengala, todo preto, cabo tortinho de madeira…
-E daí? Tem mil guarda chuvas pretos nesse mundo!
-Mas é idêntico!
-Ele tá perto de umas bolsas, olha lá. Deve ser de alguém.
-Mas pensa comigo. Imagina que a pessoa achou meu guarda chuva esquecido, digamos, naquele banco, uns dois meses atrás, quando eu perdi. Usou por um tempão, depois bateu a culpa. Começou a imaginar o dono andando sozinho e triste na chuva, pegando pneumonia. Aí agora teve um lampejo de consciência e resolveu colocar ali de volta pra pessoa poder recuperar. É uma boa ação. Ética, amor ao próximo, essas coisas. De vez em quando isso acontece, que nem aquelas notícias tipo “taxista encontra pacote com 3 mil euros no banco de trás e devolve o dinheiro”.
-Meu anjo, a gente tá numa faculdade pública do Rio de Janeiro. Não existe ética. Ninguém devolve um guarda chuva no meio da época de tempestades de verão. É uma regra. Ninguém devolve nem lápis nesse lugar, imagina guarda chuva.
-Eu tenho esperança na humanidade, tá ok?
-Eu tenho esperança no seu bom senso. E se você meter a mão no guarda chuva e o dono aparecer gritando “LADRÃO, PEGA O LADRÃO DE GUARDA CHUVA”??? Já pensou ir parar na delegacia porque tentou furtar acidentalmente um troço de quinze reais?
-Se for o meu, eu vou estar só recuperando meu bem que foi ilegalmente subtraído.
-Pra todos os efeitos, vai estar ilegalmente subtraindo o bem dos outros. Esquece o raio do guarda chuva!
-Eu vou lá olhar.
-Larga isso aí, garoto!
-To só olhando, poxa! Olha, ali tem uma marquinha igual tinha no meu. Teve uma vez que derrubei ele e arranhei bem no cabo. Esse metalzinho torto não sei, pode ter entortado depois… será? Acho que vou abrir pra dar uma olhada.
-Ai, quer saber? Pega. Mexe aí. Segura o guarda chuva, fecha os olhinhos, respira fundo, sente a energia dele. Vê se o seu coraçãozinho diz que é o seu.
-Hm…
    Deu-se uma longa pausa, ambos os rapazes em pé no meio do pátio, um muito compenetrado segurando o guarda chuva que nem o Harry Potter com aquela vassoura Nimbus 2000 do primeiro filme e o outro com a expressão mais paciente do mundo.
-Olha, acho que não é meu não.
-Então bota isso logo de volta no banco! É cada maluquice que você me apronta!
    Chateado, o ex possível dono do guarda chuva o colocou de volta no mesmo lugar e os dois meninos foram embora para a aula - sem guarda chuva.
    Poucos minutos depois uma menina apareceu, catou as bolsas do chão, pegou o bendito guarda chuva e seguiu seu caminho sem jamais imaginar o inquérito a que o objeto fora submetido.
Talita Emrich, 6/12/2018
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sobre escritores e o escrever
Escritores não funcionam como máquinas. O trabalho mental pode ser, muitas vezes, mais exaustivo que o físico. Não podemos nos sentar na frente do computador em turnos de doze horas como num plantão médico, fazendo serões até o conto, poema, capítulo, ensaio, roteiro estar completo. É preciso fazer pausas para andar lá fora, fazer carinho no cachorro, preparar o almoço, esticar a coluna. Lidar com cobranças e prazos muito curtos pode comprometer a qualidade da obra, seja ela um prédio ou um livro. Se esperamos meses e até anos para a conclusão das construções de casas, por que não podemos fazer o mesmo por um livro?
Além disso há a questão do sustento. Quantos escritores conseguem realmente viver do que escrevem? Poucos. Em outros tempos os maiores escritores foram nobres, abastados ou ao menos apadrinhados; de alguma maneira, podiam relaxar em casa e dedicar-se exclusivamente às suas obras sem temer pela falta de pão. Hoje precisamos agir. É preciso sustentar-se e talvez a mais alguém; é preciso pagar pelas roupas, moradia, comida, contas, equipamentos, cursos, livros. Muitos livros! Que escritor em sã consciência deixa de ler?
E aí entra o principal dilema de todo artista, não só do que escreve; a prostituição intelectual. Estamos produzindo nossa arte pela arte ou pelo nosso sustento? Se precisamos nos sustentar, o leitor precisa gostar do que lê. Será válido modificar obras para agradar ao público? Elas perdem seu valor artístico se assim fizermos? Pode considerar-se artista aquele que se vende por necessidade?
Mas e quem não se vender?
Morre de fome?
Talita Emrich, 4/2018
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Autobiografia ocular
    Começou a usar óculos aos dez anos.
    Já era então uma criança mais calma que a maioria da turma, apesar de não compreender muito bem por que ser calminha era algo tão valorizado e elogiado pelos adultos.
    “Ela é tão quietinha”, dizia uma professora, encantada.
    “Nem faz bagunça”, completava a diretora.
    “Quase não me dá trabalho”, confirmava a mãe, orgulhosa.
    Descobriu então que era essa a receita para se livrar de problemas. Ser quieta era o segredo para ser elogiada e querida pelos adultos.
    Mas não pelas crianças.
    Ninguém queria ser amigo dela. A menina de óculos, quietinha, queridinha da professora não podia ser confiável. Com certeza era uma puxa-saco. Dedo-duro. Metida. Já que não tinha com quem conversar na sala e nem planejar estripulias, seguiu sendo considerada quietinha.
    Quando passeava por aí com a mãe e encontrava algum conhecido, os adultos se punham a comentar como ela parecia inteligente. Nada tinha feito para merecer isso, além de desenvolver involuntariamente um problema de visão que precisava de uns vidros numa armação rosa da Hello Kitty para ser corrigido.
    Na sexta série, começou finalmente a fazer amigos. Os óculos agora eram pretos, um pouco maiores, o que podia passar talvez como algo que seguia a moda. Ainda assim, era presumido que fosse algum tipo de intelectual. Morria de vergonha de confessar dúvidas nas matérias; parecia que tirar notas altas era o mínimo esperado dela.
    Com quinze anos descobriu que óculos estavam fora de cogitação se quisesse usar maquiagem. Não importava quanta tinta passasse nos olhos, assim que colocasse a armação tudo desaparecia; os outros só viam seus óculos, e não seus belos cílios abarrotados de rímel. Se saísse sem os óculos, porém, não veria nada. Os rapazes de sua idade, tanto em festas quanto no dia a dia, pareciam ter dificuldade de enxergá-la como uma garota disponível para beijar. Afinal, é claro, ela era tão quietinha. Podiam concluir só de olhar pra ela. Todo o seu jeito de se mexer e falar era o de alguém que sempre fora quietinha. Os óculos em seu rosto diziam que era quietinha. Ela não sabia se comportar de outro modo senão aquele que a ensinaram.
    E meninas quietinhas não beijam. Nem bebem. Nem fazem arruaça. Não sobem no colo de garotos. Não vomitam aos pés de uma árvore no meio de uma praça nem dão amassos contra um muro numa rua sem saída. Não usam batom vermelho. Não dançam funk. Não saem correndo do bar para procurar a amiga que chegou mais tarde. Não flertam. Não tiram fotos mostrando o corpo. Não usam shorts curtos nem deixam as unhas crescerem.
    Elas “não” um monte de coisas.
    Então ela também não.
    Aos trancos e barrancos conseguiu convencer os pais, aos dezoito anos, a comprarem lentes de contato para ela.
    Sua rotina virou de cabeça pra baixo.
    Pela primeira vez em anos e anos, viu o próprio rosto no espelho. Viu-se perfeitamente, só seu rosto, sem nada tapando um pedaço dele.
    Descobriu que era bonita. Descobriu que se andasse por aí usando as lentes, a maneira que as pessoas a tratavam era diferente. Ninguém supunha que ela fosse quieta, nem intelectual, nem que gostasse de ler - embora realmente gostasse. Todos elogiavam quando se maquiava. Sentia-se confortável para experimentar tipos diferentes de roupas. O tipo de garoto que se aproximava era diferente (e de garota também).
    Começou a passar o rodo nas festas, aprendeu a beber, dançava sem vergonha, mudou de amigos. Descobriu-se finalmente como quem sempre fora; não a menina quietinha que haviam moldado nela a partir dos óculos, mas a garota extrovertida que esteve escondida todo aquele tempo atrás dos vidros.
    Mas algo a incomodava. Parecia absurdo que a simples presença ou ausência de um pedaço de plástico cobrindo seus olhos alterasse tanto o seu comportamento e o de pessoas ao redor. Não conseguia entender por que pensavam coisas tão diferentes sobre ela baseando-se unicamente na aparência. Também não queria deixar os óculos em casa só para se sentir aceita. Aquele era apenas um objeto que a ajudava a enxergar melhor. Não deveria estar tão carregado em estigmas e conceitos.
    Passou o resto da vida decidindo, toda santa manhã, enquanto encarava-se no espelho do banheiro, se devia usar óculos ou lentes naquele dia.
Talita Emrich, 6/2018
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   Alguém pixou a fórmula de bháskara no muro da escola. Do lado de dentro. Bem de frente pras janelas do nono ano.
   Só podia ser cola. Que outro objetivo uma criatura humanóide de catorze anos teria em rabiscar uma fórmula? E num muro, ainda por cima?
   -Quem foi?
   O interrogatório foi repetido em cada sala em busca de um culpado, sem sucesso. Um engraçadinho arriscou o palpite de que deviam era dar ponto extra pro autor da obra, já que tinha gravado a fórmula para poder escrevê-la.
   Levou um senhor esporro.
   Tentaram pintar o muro, mas não tinha verba. As provas se aproximavam. Não havia outras salas disponíveis. O que fazer? Permitiriam que turmas inteiras colassem descaradamente?
   Pouco a pouco, mais fórmulas começaram a aparecer, seguindo o autor anônimo daquela ideia genial. Química, física, biologia. Começaram então os resumos de história e os termos de análise sintática.
   O muro, antes branco, estava agora cheio de inscrições coloridas de várias matérias. Uma boa olhada e o currículo inteiro do programa escolar podia ser encontrado ali.
   As notas foram subindo ensandecidamente, a ponto de chamar a atenção das autoridades em educação na cidade. Visitaram de surpresa a escola. Em pânico, a diretora mandou fechar as janelas.
   Não adiantou; os visitantes ilustres não somente viram o muro, como elogiaram aquele trabalho artístico de incentivo ao estudo. Tiraram fotos, publicaram uma matéria no jornal da cidade, aumentaram o salário dos professores, enviaram mais verbas, deram um prêmio para a diretora.
   Não se falou mais naquilo.
   O muro está pixado até hoje.
Talita Emrich, 2016
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Corredor da morte
  Sou a pessoa mais jovem já condenada à morte na minha cidade.
  Esse não era o meu sonho de infância. Não é exatamente o ápice do sucesso, embora realmente te torne alguém bem famoso; as execuções são raras hoje em dia. Durante toda a minha vida (não que ela tenha durado muito tempo) só aconteceram umas duas ou três. O nome dos condenados sempre é mencionado o tempo todo ao longo da próxima década e a família costuma receber uma boa indenização.
  Essas são minhas últimas horas de vida e não consigo nem chorar pela minha própria morte.
  Acho que ainda não acredito totalmente. Mesmo depois do julgamento, da condenação, da confissão com o padre, do meu pedido pra minha última refeição. Depois disso tudo, ainda não acredito que vou morrer. Boa parte de mim ainda acha (ainda quer achar) que tudo não passa de um grande mal entendido e que logo, logo alguém vai vir me avisar que posso ir pra casa.
  Pra casa. Não pra forca.
  Na verdade não sei se ainda usam uma forca. Sei lá. Não quero pensar nisso. Existe algum jeito civilizado de matar alguém? "Boa tarde! Por gentileza, queira colaborar com este procedimento de rotina. Sente-se naquela cadeira elétrica e morra, por favor. Seremos eternamente gratos."
  Tenho um quarto só pra mim pelas próximas horas e não tenho ideia do que fazer. A única coisa que deixaram na gaveta da minha cômoda para me entreter é uma bíblia, e eu nem sou cristã. Se você sabe que vai morrer, pra que fazer qualquer coisa que seja? Tudo o que a gente faz nessa vida é pra não morrer.
  Você estuda desde a infância só pra alcançar um diploma que tê dê mais chances de arrumar um emprego e evita que você morra de fome.
  Você toma banho pra que a falta de higiene não te cause alguma doença que te mate.
  Você come pra não morrer.
  Bebe água pra não morrer.
  Se aquece pra não morrer.
  E claro, você tem filhos pra alimentar sua ilusão de que uma parte sua vai permanecer aqui depois da sua morte.
  Nenhuma parte minha vai continuar aqui depois da minha morte. Estou indo embora jovem demais. Não houve tempo de ter uma meia dúzia de pivetes.
  Pensando bem, foi melhor assim. Deve ser traumatizante demais assistir uma mãe ou pai ser condenado à morte. Isso mexe com a cabeça de uma criança. Mexe com a cabeça de qualquer um. Talvez meus filhos crescessem e de tornassem criminosos como eu.
  Não interessa mais qual crime eu cometi. Eu já não posso mudar nada. Não tenho controle algum dessa situação toda. Também não posso me revoltar; isso também não muda nada. Só me resta morrer.
  Se eu pudesse voltar no tempo, provavelmente faria tudo diferente. Desde o começo. Desde que acordei naquele dia. Naquele ano. Desde que nasci. Antes disso, até.
  Mas não posso.
  Olha, bateram na porta.
  Tá na hora.
  E olha só. Não era mesmo um mal entendido. Eu vou morrer de verdade. Estou aqui pensando, me mexendo, respirando, andando por esse corredor e daqui a quinze minutos não vou existir mais. Agora eu sou eu, mas daqui a quinze minutos vou virar um cadáver. Vão me enterrar numa vala comum, sem identificação.
  Um cadáver não pode cometer nenhum crime, é por isso que decidiram me transformar em um.
  Não, ainda não acredito. Ainda há chances. Alguém ainda pode mudar de ideia. A pessoa responsável por me dar a injeção, baixar a alavanca, puxar a corda, brandir a espada, dar o tiro ou seja lá o que for ainda pode pensar melhor. "Espera, por que tô fazendo isso mesmo?".
  Acho que o pior é estar usando algemas. Não é justo. Podiam ter me soltado pelo menos pra esse momento.
  O último momento.
  Então vai ser uma injeção letal. Assim é melhor, imagino. Não dói. É só dormir. Nunca morri antes, mas já dormi.
  Não queria estar chorando, mas estou.
Talita Emrich, 4/2018
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A última que morre
   Passou na TV em primeira mão a notícia da morte da Esperança. Sangue verde esparramado. O desenho do corpo no chão, com giz. A polícia removendo o cadáver esverdeado da vítima, já coberto com um plástico. Câmeras para todo lado, pessoas curiosas assistindo à cena.
   Pelo que diziam as testemunhas, fora tudo muito rápido. Caíra no chão no meio da rua, rapidamente, a garganta fechada e travada, sangrando pela boca. Só tivera tempo de estender as mãos para cima e soltar um grito ainda esperançoso.
   Os investigadores, depois de minuciosas análises, descobriram que se tratava de um crime planejado cuidadosamente por um longo tempo.
   A Esperança fora envenenada, lentamente, durante anos e anos, por uma dupla de criminosos que agia de caso pensado.
   Foram presos os culpados; o Medo e a Desconfiança.
   Guardaram de volta o corpo na caixa de Pandora. 
   A Esperança é a única que fica.
Talita Emrich, 2017
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"Olha, não é por nada não. Sou de Deus e tudo o mais, mas uma coisa que todo caminhoneiro sabe é que de noite, na estrada, o que mais aparece é visagem."
 Se esforçava para espantar o sono. Detestava viajar durante a madrugada, mas não queria parar para dormir numa cidade desconhecida. Era mais garantido esperar até Eunápolis, onde conhecia algumas pousadas seguras e baratas. Por mais alguns quilômetros, tudo o que lhe esperava era aquilo: a estrada, a escuridão e os faróis dos outros carros. À esquerda e à direita da BR 101, tudo o que se via era mato, mato a perder de vista. Enquanto ainda havia luz do dia, de vez em quando passava por umas vacas. Vira até algumas atravessando a pista ou deitadas confortavelmente no meio da avenida, nem um pouco preocupadas com os carros que vinham em alta velocidade, obrigados a frear e desviar.
 Agora já não se via nem o mato, nem as vacas, nem nada. Mal e mal apareciam os arbustos e árvores mais próximos à rua, iluminados pelos faróis. Postes não havia nem dois a cada quilômetro, e se havia eram de luz tão fraca que nem serviam de muita coisa.
 Seu único e maior medo era cochilar ao volante. Não acreditava nos perigos da estrada. Toda vez que viajava diziam a mesma coisa: "É um perigo alguém ficar sozinho assim na estrada!"; "E os golpes que podem te dar nas pousadas?"; "E se o carro quebra?"; "Mas é cada notícia de acidente que se ouve!!!"...
 Não dava ouvidos. Pra morrer, bastava viver. Uma desgraça podia acontecer até em casa, se fosse pra ser. Se entrasse no carro pensando em cada coisa que podia dar errado, a viagem seria com certeza um desastre.
 De vez em quando os olhos pesavam. Era difícil se manter acordado quando não havia com quem conversar. Nem o rádio pegava naquele fim de mundo.
 Quando se tem sono, nossa visão nos prega peças. Especialmente no escuro. Em alguns momentos não sabia se estava cochilando ou se ainda vigiava a estrada.
 Deu uma piscada demorada.
 Quando voltou a abrir os olhos, viu um homem no meio da rua.
 Se tivesse tido tempo de prestar atenção às roupas do rapaz, provavelmente acharia que era algum maluco; mas ali, de madrugada, sozinho, gargalhando alto e parado na frente de um carro em alta velocidade, a última coisa em que alguém repararia seriam aquela capa e a cartola.
 O motorista não teve tempo de reparar nesses detalhes porque seu único reflexo foi, obviamente, tentar não atropelar aquele homem. Desviou para a direita desesperado, rezando pra que nenhum carro estivesse vindo atrás.
 Não vinha.
 Por sorte não enfiou o carro em algum poste ou árvore. Parou todo torto no acostamento, o coração acelerado.
 Checou o retrovisor.
 O homem tinha sumido.
 Deixou-se ficar uns bons quarenta minutos, cochilou e seguiu viagem.
 Alguns quilômetros à frente, surpreendentemente, deu de cara com um engarrafamento. Questionou o caminhoneiro do lado sobre o motivo para uma retenção àquela hora no meio do nada.
 -Alguém cochilou no volante, meu amigo. É o que tão falando ali na frente. Morreu na hora. Se tivesse outro carro do lado já era, tinha arrastado mais um pra cova.
 Mais tarde fez as contas.
 Provavelmente estaria no lugar do motorista morto se tivesse seguido viagem com o sono que estava.
 "Alguém cochilou no volante".
 Provavelmente alguém que não tivera a sorte de ser acordado, no susto, por um homem de capa e cartola que gargalhava no meio da rua de madrugada.
Talita Emrich, 1/2018
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Responsável
-Bom dia, madames! Quais são os nomes de vocês?
-Eu sou a Sofia. Ela é a Clara!
-Ok. Quantos anos vocês tem, Sofia?
-Eu tenho 9, ela tem 2!
-Muito beeeem, agora a pergunta mais difícil: qual é o nome da sua mamãe?
-A minha mãe é a Marcela, mas a minha mãe é avó dela.
 Um pequeno momento de confusão mental.
-Ah, você é tia dela?
-Sim, ué. Minha irmã que é mãe dela!- Claro, era tão óbvio.
-Ok, mas ela não pode entrar aqui sem a mãe dela ou a sua avó. Espera, sua mãe. A avó dela. Ou a sua irmã... ou..?
-O que, tia?
-Ela tem que entrar com um responsável aqui no parquinho.
-Mas eu sou responsável!
-Tenho certeza que você é bem responsável, mas você não é a responsável dela.
-Sou sim. Eu sou tia dela!
-É tia dela, mas é criança.
-Mas eu sou tia!!! E eu sou responsável! Eu brinco com ela, troco a fralda, dou banho, boto roupa, arrumo o cabelo!
-Mas fato de você ser tia não te faz ser adulta!
-Você é adulta, tia?
 Longo silêncio.
-Sou. Mas não era esse tipo de tia que eu tava falando...
-Você tem sobrinha?
-Não.
-Então eu sou mais tia que você.
-Mas...
 O resto da fila que se formava ia ficando impaciente, responsáveis e irresponsáveis.
-Olha, eu não posso deixar ela entrar. Você pode entrar e brincar sozinha aqui, ela não. Traz a mãe de vocês aqui.
-A minha ou a dela?
Talita Emrich, 2016
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Círculo Faérico
   Conhecia histórias sobre fadas desde que era uma criança.
   Lera sobre a pequena fadinha que acompanhava Peter Pan, minúscula e vingativa. Lera sobre as fadas boas e más da história da Bela Adormecida, algumas generosas e outras más, mas todas coloridas. Lera sobre a fada madrinha da Cinderela, bela, do tamanho de uma mulher adulta, bondosa e protetora. Havia também Glinda, a fada de O Mágico de Oz, uma figura materna e sábia. A Fada Azul, que transformara Pinóquio de boneco em menino e seus favoritos, todo o séquito de fadas d'O Sonho de Uma Noite de Verão, que confundiam casais de humanos no meio da floresta.
   A avó gostava de contar-lhe histórias sobre as fadas, mas a mãe sempre reprovava. Não era boa coisa ficar alimentando aquelas fantasias na cabeça da criança, dizia. Sonhar era bom, mas era preciso prestar atenção na realidade. Não seria uma criança para sempre.
   Mesmo assim, a velha senhora continuava contando. Havia histórias sobre fadas boas e más, bondosas e vingativas. Algumas salvavam crianças perdidas e as levavam de volta para casa, outras tomavam princesas sob sua proteção. Algumas concediam desejos a camponeses pobres ou conferiam a seus filhos o dom de falar a língua dos pássaros, e a suas filhas o de fazer flores nascerem quando cantassem. Davam presentes magníficos às crianças de boa índole, ou a moças, ou a rapazes, dependendo da história: Pratos que se enchiam de qualquer comida desejada, pentes que faziam saltar pérolas dos cabelos, teares que transformavam palha em ouro, capas que tornavam invisível quem as usasse.
   Outros contos não eram tão positivos. De olhos arregalados, ouvia a avó falar de fadas que amaldiçoavam moças malcriadas, fazendo com que sapos e lagartos saíssem de suas bocas quando falassem. Algumas delas podiam fazer nevar no meio do verão, quando muito irritadas. Murchavam flores dos jardins ou jogavam formigas e lama nas camas das pessoas más. Roubavam frutas das despensas quando as pessoas ficavam muito tempo sem agradecer-lhes as colheitas. Se viam no pescoço de uma moça um colar muito bonito, o pediam e se a resposta fosse negativa, mandavam que abelhas perseguissem a dona. Se algum intruso interrompesse suas danças de roda na floresta, dependendo de sua idade ou atrevimento, apagavam-lhe a memória ou transformavam-no em um pequeno roedor.
   Mas suas histórias favoritas sempre eram aquelas em que crianças eram raptadas pelas fadas dos bosques; alguns diziam que era uma punição por mau comportamento, outros que se tratava de uma recompensa para crianças muito boas. Todos concordavam com uma coisa: ninguém voltava. Não se sabia bem o motivo. Talvez as fadas as mantivessem por toda a vida por estimação, como nós mantemos cachorrinhos e gatos. Talvez suas cidades sejam tão agradáveis que essas crianças jamais quiseram sair. Talvez elas tenham sido transformadas em fadas e passado a fazer parte desse povo, esquecendo suas vidas como crianças humanas. Havia ainda a maldição do alimento delas; a comida das fadas era tão deliciosa, diziam, que quem a provasse nunca mais acharia graça no alimento dos seres humanos. Tudo passaria a ter gosto de terra ou coisa pior, e por isso as pobres criaturas morriam de fome no mundo mortal, enojadas com a própria comida, ou voltavam a viver para sempre entre as fadas.
   -Vó, mas afinal elas são boas ou más?
   -Não sei, meu amor. Não temos como saber. Acho que, na verdade, não são nem boas nem más. Nós, humanos, somos bons ou maus?
   -Os dois, acho. Tem gente boa e gente má.
   -Você ainda é uma criança. Quando crescer, vai descobrir que não existe ninguém totalmente bom ou totalmente mau. Uma pessoa pode ser muito bondosa com sua família, mas não ligar para aqueles que vivem na rua e não têm o que comer. Outra pode fazer coisas horríveis e até mesmo ir presa por isso, mas guarda um sorriso para a mãe e os filhos que vão visitá-la na prisão. Você é uma criança amorosa e querida, mas com certeza fica com raiva quando briga com alguém na escola. Não é?
   A avó repetiu aquelas histórias até o dia em que morreu, e por isso a criança pôde guardar todas na mente. Cada detalhe do desenrolar das narrativas, da ira ou da candura de cada personagem e do afeto ou ódio entre eles ficou gravado.
   Passou a sonhar com fadas. Os sonhos eram sempre muito parecidos, mas não totalmente. Estava sempre dormindo, no início, e então se levantava da cama. Nos sonhos, seu quarto era igualzinho, suas roupas eram iguais ao pijama que usasse. Então começava a flutuar, e flutuando atravessava a janela. Lá fora estava de noite como quando adormecera. Flutuava sobre a cidade muito mais rápido que um pássaro poderia voar e via tudo passar rápido e borrado lá embaixo, mas aquilo nunca lhe dava enjôo. E então, devagar, ia parando. Descia até os pés tocarem o chão, e o chão era de grama. Estava à beira de uma floresta, clareira, bosque, parque ou jardim, dependendo do sonho, e ficava ouvindo os ruídos de todos os animais que ali viviam.
   Então começava a ouvir mais que apenas os animais; ouvia vozes agudas e baixinhas, que podiam atropelar-se como numa discussão ou falar docemente. Pareciam sempre estar cantando. Em alguns sonhos só ficava imóvel, em outros começava a perseguir as vozes ou até a fugir delas, mas sempre acabava encontrando uma das fadas. Era sempre do mesmo jeito: via apenas uma a princípio, que se aproximava mais, e então uma grande multidão de outras graciosas criaturas atrás da representante.
   Eram todas ao mesmo tempo muito diferentes e muito parecidas, e aquela que ficava à frente era outra a cada sonho, e lhe estendia a mão. As bocas não se mexiam, mas ouvia várias vozes em uníssono, como se todas falassem exatamente a mesma coisa e ao mesmo tempo. Não conseguia se lembrar, depois de ter acordado, das palavras exatas das criaturas, mas sempre se lembrava mais ou menos do conteúdo das frases. Tinha consciência de que falavam uma língua diferente da sua, mas de alguma forma entendia o que elas queriam dizer.
   "Minha criança preciosa, estamos te esperando."
   "Fique conosco para sempre, eu imploro."
   "Venha trazer alegria para os nossos dias, minha criança."
   "Temos maravilhosos doces e brinquedos, a mais confortável das camas e o mais belo dos jardins."
   "Poderá ter todas as flores e pedras preciosas que quiser. Venha, criança."
   Quando estendia a mão para tocar a da fada, acordava de novo em sua cama.
   Esse tipo de sonho ficava cada vez mais frequente, até começar a aparecer toda semana. Não importava a sua idade; sempre lhe chamavam "minha criança".
   Essa criança - já não mais uma criança - seguiu estudando. As capas de seus cadernos tinham figuras de fadas. Algumas compradas prontas, outras desenhadas à mão, porque aprendera por conta própria a dar forma às personagens favoritas. Demorava-se sempre fazendo as asas, mas nem todas as suas fadas tinham asas; ainda assim eram fadas. As desenhava em todos os tons e cores de pele, todos os cabelos possíveis em forma, cor e penteado. As roupas eram sempre feitas de folhas ou de teias de aranha. Estavam sempre descalças, recostadas em alguma árvore ou sentadas em seus galhos. Tentava imitar as imagens daquelas que via nos sonhos.
   Já na idade adulta, encontrou pessoas que acreditavam piamente na existência daquelas criaturas. Parte de si ainda imaginava que pudesse ser uma lenda, que  os sonhos eram um reflexo  de sua infância e do afeto pela avó, mas a cada dia percebia que algo  de estranho acontecia. Pessoas ao redor de todo o planeta afirmavam  comunicar-se com elas, deixar-lhes oferendas e visitá-las ocasionalmente. Comprou livros e mais livros sobre o assunto, estudou os supostos tipos e comportamentos de cada raça, as frutas que preferiam, as músicas que mais as agradavam, meios de contatá-las. Algumas informações batiam com o que sonhava; a aparência de moças jovens, o hábito de chamar humanos de "criança", de estar perto de bosques e de visitar pessoas em sonho. Apenas um detalhe parecia incoerente: a persistência delas em convidar-lhe para seu mundo, cidade, planeta ou fosse o que fosse.
   Na medida do possível, seguiu com a vida. Passou a deixar frutas na janela de casa, ao lado de um vaso de plantas e de uma pequena estátua que imitava as criaturas faéricas. Fazia uma rápida prece consagrando aquele alimento a elas e a qualquer ser semelhante. Ali ficavam as uvas, maçãs e morangos durante semanas sem apodrecer, mesmo no verão.
   Quando passou a fazer isso, as criaturas de seus sonhos passaram a agradecer-lhe pelos presentes e às vezes apareciam com as frutas nas mãos, como se tivessem acabado de buscá-las.
   Passavam-se os anos.
   Comprou uma casa no campo, às beiras de uma floresta. Reformou todo o jardim de maneira que parecesse mais silvestre e menos cultivado. Deixou que trepadeiras crescessem pelas paredes exteriores e que a grama crescesse até se tornar mato, no limite entre o belo e o selvagem, de maneira que ainda pudesse caminhar por ali. Permitiu que as árvores engrossassem e esticassem seus galhos até misturarem-se com as nativas. Plantou ervas e flores específicas nas fases apropriadas da lua. Acrescentou uma fonte grande, quase um pequeno lago, e criou peixes. Jogou grãos pelo chão e o lugar se encheu de pássaros, e rapidamente as borboletas e abelhas começaram a aparecer também.
   Os sonhos começaram a aparecer todas as noites então, mais reais do que nunca, com imagens e sons mais claros, ficando em sua memória por muito mais tempo.
   O objetivo era ter um espaço para o possível contato com as criaturas, mas de nada adiantava se quase não passava por lá. Na ausência de cuidado, algumas plantas morriam, outras davam frutas nas épocas em que não estava lá para colhê-las. Esse momento coincidiu com a aposentadoria da mãe, e foi tomada a decisão.
   Largou o emprego. Venderam o apartamento e a mobília que tinham na cidade e mudaram-se para a casa de campo. Encontrou outro emprego na pequena cidade próxima e a vida tornou-se um paraíso.
   Um paraíso para a ex-criança, mas não para sua mãe. A velha senhora morria de medo do jardim e da floresta, vivia tendo pesadelos e chorava constantemente. Foram feitos exames, mas não era nenhuma insanidade da velhice.
   Meses se passaram, o medo da senhora continuava e os sonhos se tornavam cada vez mais insistentes, ao ponto de ficarem perturbadores.
   Até que, depois de sonhar, acordou no meio da noite. O sono não voltava, tinha fome. Levantou-se e foi para a cozinha, mas enquanto preparava o lanche parou subitamente.
   Ouvia vozes. Não eram vozes das crianças dos vizinhos nem a voz da sua velha mãe, e nem mesmo as da televisão.
   Eram as vozes dos sonhos.
   Demorou algum tempo estapeando-se e contando os próprios dedos para confirmar que não sonhava. Saiu pela porta dos fundos, seguindo as delicadas vozes cantadas, e foi parar no meio do jardim.
   Além do limite entre o próprio jardim e a mata, lá longe, meio sumida por entre as árvores, pontinhos de luz brilhavam.
   Vagalumes, pensou.
   Mas vagalumes não ficam parados no lugar como os beija-flores.
   Quando ia dar o primeiro passo em direção à luz, ouviu sua velha mãe gritar em pânico de seu quarto.
   Voltou em disparada, acalmou a senhora que chorava compulsivamente e sentou-se ao seu lado.
   -O que tem, mamãe? Outro pesadelo?
   -Meu amor, promete que nunca vai se afastar de mim. Não deixa ninguém te levar embora, por favor.
   -Eu não sou uma criança perdida, mamãe. Quem é que me levaria embora? Eu posso andar com os meus próprios pés.
   -Aquelas coisinhas já te enfeitiçaram, não foi? É tarde demais, eu sabia. Não devia nunca ter confiado na sua avó...
   -Do que a senhora está falando, mamãe?
   -Meu amor, preciso que preste atenção em mim. Estou velha, mas não estou louca. Quando você era um bebê, ficou muito doente. Já não era um bebê de colo, mas não falava ainda. Sua avó conhecia uma benzedeira e te levou até ela quando os remédios não funcionaram. Os médicos diziam que você não tinha nada... Como não tinha nada, se não parava de chorar? Bem, a benzedeira perguntou se você já tinha madrinha ou padrinho. Você não tinha, é claro, ainda não tínhamos te batizado. Ela disse então que lhe batizássemos, que isso salvaria a sua vida, mas a madrinha ela mesma escolheria.
   -O quê?- Ouvia o que a mãe falava, mas entendia muito pouco. Nunca ouvira aquela história em toda a sua vida.
   -Num dia de bastante sol fomos eu, sua avó e aquela benzedeira pra beira de um bosque, na margem de um rio. Aquela senhora te pegou no colo e na hora você parou de chorar. Ela te batizou com a água daquele rio, e indicou pra padrinhos as criaturas que morassem naquele bosque. Não os animaizinhos nem nada do tipo, meu amor. Os espíritos que morassem lá. Não sei se a palavra é bem essa, o fato é que são criaturas invisíveis. Coisas que moram no meio das árvores, não só as daquele lugar, mas de todos os pedaços de mata do mundo.
   Sentiu uma tontura. Devia estar sonhando. Jamais deveria ter acordado naquela noite. Agora que sabia, percebia que fazia todo o sentido. A obsessão esquisita com os seres faéricos, os sonhos que não paravam, a mania de mexer no jardim esperando ver sei lá o quê. Agora entendia.
   Quando criança, fora entregue à proteção de fadas.
   Sua mãe recomeçou a choradeira, mas pouca coisa pôde fazer além de prometer que não iria a lugar algum e abraçá-la até que dormisse.
   Mas naquela noite não voltou a pegar no sono. Lembrava-se o tempo todo de O Sonho de Uma Noite de Verão, uma comédia em rimas de William Shakespeare, em que Oberon e Titânia, rei e rainha das fadas, brigavam por uma criança cuja mãe morrera no parto confiando o filho à proteção daqueles seres e pedindo-os que fossem seus padrinhos.
   As moças que apareciam em seu sonho talvez estivessem cobrando uma dívida ou, por uma visão mais positiva, tentando levar a "criança" humana que protegiam para um lugar que acreditavam ser muito mais seguro e confortável.
   Sua mãe faleceu poucos meses depois. Tentou acreditar que aquilo nada tinha a ver com a promessa que fizera de jamais abandoná-la enquanto a senhora vivesse.
   Semanas depois, deixou todas as oferendas de frutas nas janelas como de costume. Vestiu suas roupas mais bonitas. Esperou cair a noite, foi para o jardim e sentou-se esperando de olhos fechados, com algumas flores nas mãos.
   Só voltou a abri-los quando as vozes sussurradas em tom doce já estavam próximas. A primeira coisa que viu foi uma jovem moça parada à sua frente, sorrindo. Da pele escura emanava uma luz.
   -Está pronta para vir conosco, minha criança?
   -Dizem que quando uma criança perde os pais, é a madrinha quem passa a tomar conta. Perdi minha mãe.
   -Então você tem sorte, minha criança. Tem milhares e milhares de madrinhas. Venha.
   A fada estendeu-lhe a mão. Quando estendeu a sua para tocá-la, percebeu que estava muito menor que de costume. Sua mão agora era gorducha e pequena, o esmalte desaparecera das unhas. Tocou o próprio corpo. Os seios haviam sumido. Seu vestido estava grande demais para si. A tintura e a química dos cabelos também desaparecera, e agora ele caía em longos cachos por suas costas. Estava descalça.
   Era de novo uma criança.
   Seguiu sua madrinha floresta adentro, rindo e cantando junto com ela, ouvindo histórias magníficas, até chegar em sua nova casa. Lá deu as mãos às suas novas irmãs, crianças como ela, e também às suas madrinhas, e dançaram numa imensa roda através da madrugada, sem jamais sentir fome, sede, frio, calor ou tristeza.
   Foi encontrada morta no banco do jardim, com flores murchas nas mãos e já começando a apodrecer. Não houve autópsia, mas os moradores da cidade desconfiaram de suicídio. A maneira que estava arrumada, a falta de doença, a perda da mãe... Parecia esperar por alguma coisa.
   Enquanto isso ela recolhia-se para comer das pequenas frutinhas e dos doces deliciosos que compunham sua nova dieta, banhava-se nas águas frescas dos rios, brincava de se esconder entre as árvores com suas amigas e fazia crescer flores e arbustos selvagens.
   No lugar onde dançara com suas irmãs, nasceu um círculo perfeito de cogumelos amarelados; o tipo de fenômeno que algumas pessoas chamam de "fairy ring" ou círculo faérico.
Talita Emrich, 2017
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Tô no ponto de ônibus esperando o interno da UFRJ.
Três senhores segurando redes de pesca e baldes vieram sentar do lado pra esperar também.
Um deles apontou pra estação de bicicletas que a universidade disponibiliza (aos alunos) pra circular pelo Fundão:
-Ali, bicicreta de graça!
Outro rebateu:
-"Bicicreta" não! A gente tá numa universidade, tem que falar tudo direito.
-E eu falei errado?
-Falou "bicicreta"!
-E por acaso isso é árabe?
Os outros dois deram um suspiro e não responderam.
-Pergunta pra essa garotada aí como que é bicicreta em ingrêis. Pois eu sei: é "bike"!
-Então antes de falar ingrêis, fala português direito!
-Português tem um monte de línguas dentro dele. Todo mundo mistura, até esses aí que estudam. Não me enche o saco.
Senti necessidade de passar essa sabedoria adiante.
Talita Emrich, 2018
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