Tumgik
blogmagog · 3 years
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Fado desencontrado
É de susto, digo, que caio da cama com os gritos da viga que, como só ela, parece repentinamente se esmigalhar por inteira sobre a cabeceira e rolo entre os lençóis pelo parquet empoeirado. Paro e, para meu profundo abuso, noto a viga intacta. Deitado e farto, sob o olhar, que agora vinha de cima, da defunta fadista na parede, avisto entre as sombras do avesso do leito um papel velho, com dobras bem marcadas pelo tempo e pelo autor. Estico o braço e o alcanço. Levanto e apalpo a vizinhança até sentir os óculos sobre a cômoda. A visão completa me mostra uma carta sem assinatura ou saudação em minhas mãos, apenas um ninho de fala largada:
“Me impressiona como bate a letra tão feroz essa dama de certa idade. Como os seus dedos até há pouco tão longos e artrosados desenvolvem, agora, a ligeireza e a plasticidade de uma profissional que já não reflete mais sobre o próprio ofício. Como o seu olhar de natureza perdida encontra-se preso à máquina e ao texto em que nela bate, e, como se esse olhar fosse ainda mais perdido por um instante, só agora ela parece perceber que cá estou eu, sentado numa Luís XVI, no segundo canto iluminado desta sala velha e mofada, assistindo ao seu recital de estranha percussão e anotando seus movimentos apressados. Como parece notar que a anoto, passa a dedilhar fingidamente a máquina com o que já viraram cabos grossos de pontas agulhadas que não produzem mais qualquer ruído, somente empurram as teclas como se estas fossem extensões de suas dobras quirodáctilas. E, então, como se não fosse mais mulher, ganha ela, num repente, longos pelos pela face, que em muito se parecem com os que antes já brotavam pelas mãos. Como se não fosse mais gente, arma-se de mil olhos e oito braços e bate as letras salivando de prazer com as multipatas que se embaraçam com extroversão sobre o emaranhado funcional de metal. Como, durante o processo, inconscientemente tece, ao que parece, uma teia firme e grudenta por entre as teclas, já não consegue mais nela escrever e, assim, estabana-a da mesa e a estabaca no chão e monta e anda sobre o birô derramando baba verde. Como conto eu que estou cá neste canto de sala, encurrala-me como fera urbana que é, une meus braços às pernas e come-me como besta de savana, esticando minha carne e rasgando-a e rompendo-a com cada vez mais pressa. Como já não tenho mais pele, deslizo sem atrito goela abaixo, sem ser mastigado, direto a um familiar sítio semibreado. Por fim, assim, me dizes tu: como pode, após alcançar a quase escuridão do bucho do bicho, deglutido e digerido, abrir os olhos e ver-me eu, agora e aqui, sentado defronte a uma dama de certa idade que anota em uma Luís XVI meus cada vez mais selvagens movimentos no bater sedento das letras disto que se lê?”
E  sem data, remetente, saudação ou selo. Como se, por arrogância, o simples fato de existir enquanto relato sobrevivente bastasse para confirmação de sua autenticidade, urgência e humanidade.
Mas, por sentir subindo pelas pernas um bicho estranho em multipatas, dobro-a logo, com pressa, levanto-me e espano a teia e a ideia torta que sobre mim vinham sendo tecidas. Olhando ao meu redor, rendo-me - desenlace - ao olhar severo da morta Amália que, sem cerimônia, agora me traga com os olhos saídos das ruças. Engato. De malas feitas, desço a uma insólita recepção, de atmosfera verde e pantanosa, onde, esperando meu táxi, abro a janela e deixo uma brisa do Tejo entrar. Um cisco. Ele passa arranhando meio olho esquerdo azul e, pela moldura da mesma janela por onde eu vigiava a chegada do táxi, vejo somente com o direito castanho, que agora abro, uma lusitana adentrar o quarto no qual a rua inteira havia repentinamente se transmutado. Arregalo.
Ela se deita na cama, saca um diário em espiral, puxa uma tinteiro e encontra meus olhos sob uivos. Agouro de uma velha viga podre.
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