Tente se lembrar de alguns detalhes, Yehuda Amichai.
Tente se lembrar de alguns detalhes. Lembre das roupas
da pessoa amada
de modo que no dia do desastre você possa dizer: vista
pela última vez usando isso e aquilo, uma jaqueta marrom, um chapéu branco.
Tente se lembrar de alguns detalhes. Porque eles não têm face
e suas almas estão escondidas e o modo como choram
é o mesmo modo como riem,
e seus silêncios e seus gritos erguem-se à mesma altura
e a temperatura de seus corpos varia entre 36,5 e 40 graus
e eles não têm nenhuma vida além deste espaço exíguo
e eles não têm nenhuma imagem esculpida, nenhuma forma, nenhuma memória
e têm copos de papel para os dias de júbilo
e pratos descartáveis de papel.
Tente se lembrar de alguns detalhes. Porque o mundo
está cheio de pessoas que foram arrancadas do sono
sem ninguém para remendar o que está rasgado,
e diferentemente das feras elas vivem
cada qual em seu esconderijo solitário e morrem
juntas em campos de batalha
e nos hospitais.
E a terra engolirá a todas,
boas e más de uma só vez, como os seguidores de Corá,
todos em rebelião contra a morte,
as bocas escancaradas até o último momento,
louvando e praguejando em um só
uivo. Tente, tente se
lembrar de alguns detalhes.
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Na escada, Kaváfis.
Quando eu descia a ignominiosa escada,
tu entravas pela porta, e por um instante
vi teu rosto desconhecido e me viste.
Depois me ocultei para que não me voltasses a ver, e passaste rapidamente ocultando teu rosto,
e te enfiaste dentro da sórdida casa
onde o prazer não encontraste, como eu não encontrei.
E, apesar disso, o amor que tu querias eu o tinha para te dar;
o amor que eu queria - vi-o em teus olhos cansados
e receosos - tu o tinhas para me dar.
Nossos corpos tudo perceberam e se buscavam;
nosso sangue e nossas peles compreenderam.
Mas nos ocultamos os dois conturbados.
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O teatro de Sabbath, Roth.
- É bom saber disso - respondeu Sabbath. - É o vínculo mais forte que há no mundo, a mãe e o filho. Não pode haver no mundo nada mais forte do que isso.
- É verdade - disse Balich, seus suaves olhos cinzentos se enchendo de lágrimas por conversar com alguém tão compreensivo. - Pois é, e quando olhei para ela, morta, com o meu filho no hospital no meio da noite... ela estava ali deitada com todos aqueles tubos e quando olhei para ela e vi que o vínculo havia se partido, o vínculo com o nosso filho, eu não pude acreditar que essa coisa que você disse que é a coisa mais forte do mundo já não existisse mais. Ela tinha partido. Então eu lhe dei um beijo de despedida, meu filho a beijou e eu também, e eles retiraram todos os tubos. E aquele pedaço humano de luz do sol estava ali, mas morto.
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Desfecho, Rilke
a morte é grande.
somos seus ri-
sonhos criados.
quando nos vemos no meio da vida
ela vem atrevida
chorar ao nosso lado.
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Adolescente, Wislawa
Eu – adolescente?
Se, de repente, aparecesse aqui, agora, diante de mim,
saudá-la-ia como pessoa que me é próxima,
embora seja, para mim, estranha e distante?
Verter uma lágrima, beijar-lhe a testa
pela simples razão de termos
a mesma data de nascimento?
Tão poucas semelhanças entre nós,
quiçá, apenas os ossos são os mesmos,
a caixa craniana, as órbitas.
Já que os olhos dela parecem maiores,
as pestanas mais compridas, ela mais alta
e todo o seu corpo revestido
com uma pele lisa, sem mácula.
Na verdade, ligam-nos parentes e conhecidos,
no mundo dela, porém, quase todos estão vivos,
enquanto no meu já não há quase ninguém
deste círculo que tínhamos comum.
Somos tão diferentes uma da outra,
pensamos e falamos sobre coisas tão diferentes.
Ela pouco sabe –
mas com uma teimosia digna de melhores causas.
Eu sei muito mais –
mas sem nada saber ao certo.
Mostra-me uns poemas,
escritos com letra clara e cuidada,
como já há muito eu não escrevo.
Leio esses poemas e leio.
Bem, talvez este daqui,
se o reduzirmos
e corrigirmos aqui e ali.
O resto nada de bom augura.
A conversa está difícil.
No seu pobre relógio,
o tempo ainda é vacilante e barato.
No meu, já é muito mais caro e preciso.
Na despedida nada, um breve sorriso
e nenhuma comoção.
Somente quando se afasta
e, apressada, se esquece do cachecol.
Um cachecol de pura lã,
às riscas coloridas
feito em croché para ela
pela nossa mãe.
Ainda hoje o tenho.
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Luciana, Augusto Schmidt
As raparigas que dançavam,
Luciana, a pálida, todas
Como frutos apodrecerão
Porque só há um destino
Com muitos caminhos, embora.
Depois outras raparigas é que dançarão.
Luciana passará com o seu sorriso triste,
Suas mãos brancas repousarão —
Porque só há um destino
Com muitos caminhos, embora.
Cada um conhece o seu destino:
Luciana, a pálida, e as outras também,
Todas as raparigas que dançavam —
Cada um traz seu destino no rosto,
No rosto de Luciana e das outras também.
Em breve, todas as figuras mudarão:
Serão outras, tudo terá passado —
Os homens e as mulheres, o salão,
Os móveis — nem lembrança sequer restará.
Luciana terá desaparecido como a poeira da estrada.
Como a poeira, o tempo dispersará a fisionomia de Luciana:
E — atentai bem — Luciana não se repetirá.
Ninguém se repete no tempo. Cada um é diferente.
Cada um existe uma vez só e não é substituído.
Contemplai bem, pois, Luciana, que não se repete.
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Zona, Apollinaire.
Eis-te finalmente farto deste mundo antigo
Pastora oh Torre Eiffel o rebanho das pontes bale esta manhã
Estás cansado de viver na antiguidade grega e romana
Aqui até os automóveis parecem velhos
Só a religião permanece nova só a religião
Permaneceu simples como os hangares dum campo de aviação
Só tu não és velho na Europa oh Cristianismo
O europeu mais moderno sois vós Papa Pio X
A ti a quem as janelas observam a vergonha te impede
De entrares numa igreja e de te confessares esta manhã
Lês os prospectos os catálogos os cartazes em letras garrafais
Aqui está a poesia esta manhã e para a prosa temos os diários
Os folhetins a vinte e cinco cêntimos cheios de aventuras policiais
Retratos de grandes individualidades títulos vários
Esqueci o nome de uma rua muito bonita por onde passei esta manhã
Nova e limpa era o clarim do sol
Quatro vezes por dia passam aí
De segunda-feira de manhã até sábado à tarde
Os directores os operários e as belas dactilógrafas
De manhã a sirene gemeu três vezes
Um sino furioso ladra ao meio-dia
As inscrições os estandartes e as muralhas
Os anúncios e as placas gritavam como se fossem papagaios
Amo a graça desta rua industrial
Situada em Paris entre a Rua Aumont-Thiéville e a Avenida des Ternes
Eis aqui a nova rua e tu não passas ainda de uma criança
A tua mãe não te veste senão de azul e de branco
És muito piedoso e como o mais antigo dos teus companheiros
René Dalize
Amas sobretudo as pompas da Igreja
São nove horas o gás azulado quase a extinguir-se saís do dormitório às escondidas
Rezais toda a noite na capela do colégio
Enquanto que a eterna e adorável profundeza ametista
Canta para sempre a resplandecente glória de Cristo
É o formoso lírio que todos cultivamos
É o archote de cabelos ruivos que o vento não apaga
É o filho pálido e dourado da mãe dolorosa
É a árvore frondosa de todas as preces
É a dupla potência da honra e da eternidade
É a estrela de seis pontas
É Deus que morre na sexta-feira e ressuscita no domingo
É o Cristo que sobe no céu melhor que os aviadores
Batendo a marca mundial da altura
Pupila Crucificada no olho
A Vigésima pupila dos séculos sabe ao que quer chegar
Transformado em pássaro este século como Jesus se eleva no ar
Os diabos dos abismos erguem a cabeça para vê-lo
Dizem que imita Simão o Mago na Judeia
Gritam se abe voar chamemos-lhe aviador
Os anjos adejam à volta do belo acrobata
Ícaro Enoch Elias Apolónio de Tiana
Flutuam à roda do primeiro aeroplano
Afastam-se por vezes para deixar passar aqueles que transportam a Santa Eucaristia
Esses padres que sobem eternamente elevando a hóstia
O avião pousa por fim sem recolher as asas
Milhões de andorinhas povoam agora o céu
A golpe de asas vêm agora corvos falcões mochos
De África chegam íbis flamingos marabus
Um pássaro chamo Roc cantado por narradores e poetas
Plana levando nas garras o crânio de Adão a primeira cabeça
A águia do fundo do horizonte lançando um longo grito
Chega da América o pequeno colibri
E da China esse comprido e voluptuoso pihi
Que tem uma só asa e voa aos pares
Eis a pomba espírito imaculado
Escoltada pelo pássaro-lira e pelo pavão-real
A fénix essa fogueira que a si mesma se gera
E se oculta toda na cinza ardente
As sereias abandonam os estreitos perigosos
Chegam a três cantando uma melodia sedutora
E todos águia fénix e pihis da China
Confraternizam com a máquina voadora
Agora caminhas por Paris só entre a multidão
Rebanhos de autocarros rolam mugindo a teu lado
A angústia do amor oprime-te a garganta
Como se nunca mais pudesses ser amado
Se vivesses nos tempos antigos entrarias num convento
Tendes vergonha quando vos surpreendeis a rezar
Troças de ti e o teu riso crepita como o fogo do inferno
As chispas do teu riso douram o fundo da tua vida
É um quadro pendurado num museu sombrio
Algumas vezes vais contemplá-lo de perto
Passeias hoje por Paris as mulheres estão ensanguentadas
Era e eu não queria recordá-lo o declínio da beleza
Rodeada de chamas ardentes Nossa Senhora olhou-me em Chartres
Em Montmartre fui inundado pelo sangue do vosso Sagrado Coração
Estou doente de ouvir apenas palavras bem-aventuradas
O amor de que sofro é uma doença vergonhosa
A imagem que te possui fez-te sobreviver na insónia e na angústia
Está sempre perto de ti esta imagem que passa
Eis-te agora nas margens do Mediterrâneo
Debaixo dos limoeiros floridos todo o ano
Passeias-te de barco com os teus amigos
Dois Turbienses um Mentoniano e um Nizardo
Olhamos aterrorizados os polvos das profundezas
E entre as algas nadam os peixes espelhos do Salvador
Estás no jardim de um albergue nos arredores de Praga
Sentes-te feliz há uma rosa sobre a mesa
E em lugar de escreveres o teu conto em prosa
Observas a cetónia que dorme no coração da rosa
Com espanto vês-te desenhado nas ágatas de S. Vito
Estavas triste como a morte nesse dia
Pareces-te com Lázaro enlouquecido pela luz
As agulhas do relógio do bairro judeu rodam ao contrário
E tu retrocedes também lentamente na tua vida
Subindo o Castelo de Hradchim e escutando à tarde
Cantar canções checas nas tabernas
Eis-te em Marselha rodeado de melancias
Estás em Coblence no Hotel do Gigante
Estás em Roma sentado debaixo de uma nespereira
Estás em Amsterdão com uma rapariga que te parece bonita mas é feia
Vai casar-se com um estudante de Leyde
Alugam-se nessa cidade quartos em latim Cubicula Locanda
Lembro-me de ter passado aí três dias e outros tantos em Gouda
Estás em Paris perante o Juiz de Instrução
E como a um criminoso dão-te voz de prisão
Fizeste viagens dolorosas e alegres
Antes de te dares conta da mentira e da idade
O amor fez-te sofrer aos vinte e aos trinta anos
Vivi como um louco e desperdicei o meu tempo
Já não te atreves a olhar as tuas mãos e a todo o momento quereria
soluçar
Sobre ti sobre aquela que amo sobre tudo o que te horrorizou
Olhas com os olhos cheios de lágrimas esses pobres emigrantes
Crêem em Deus rezam as mulheres amamentam os filhos
O seu cheiro enche o átrio da estação de S. Lazare
Têm fé na sua estrela como os reis magos
Esperam ganhar dinheiro na Argentina
E regressarem ao seu país depois de terem feito fortuna
Uma família leva um edredão vermelho como vós levais o coração
É tão irreal como os nossos sonhos esse edredão
Alguns emigrantes quedam-se ali e alojam-se
Em tugúrios da rua Rosier ou da rua de Écouffes
Vi-os muitas vezes de tarde na rua apanhando ar fresco
Deslocam-se raramente como as peças do xadrez
Há sobretudo judeus as suas mulheres usam peruca
Sentam-se exangues no fundo das lojas
Estás de pé ao balcão de um bar de má fama
Por dois soldos tomas um café barato
Eis-te à noite num grande restaurante
Essas mulheres não são más têm preocupações e não obstante
Todas até a mais feia fizeram sofrer o seu amante
Esta é a filha de um polícia de Jersey
As suas mãos que eu nunca tinha visto são duras e gretadas
Sinto uma piedade imensa pelas costuras no seu ventre
Humilho agora a boca ante o riso hediondo de uma puta
Estás só e a manhã vai chegar
Os leiteiros fazem tilintar as vasilhas nas ruas
A noite afasta-se como uma bela mestiça
É Ferdine a falsa ou Léa a solícita
E tu bebes este álcool ardente como a tua vida
A tua vida que tu bebes como aguardente
Caminhas até Auteuil queres chegar a casa a pé
Dormir descansado entre os teus fetiches da Oceania e da Guiné
São Cristos com outras formas e de outras crenças
Os Cristos indefesos das obscuras esperanças
Adeus Adeus
Sol decapitado
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O operário em construção, Poetinha.
E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
- Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.
Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.
De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.
Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.
E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.
E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.
Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
- "Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.
Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!
Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.
Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.
Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!
- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.
E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.
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Há mais de meia hora, Álvaro de Campos
Há mais de meia hora
Que estou sentado à secretária
Com o único intuito
De olhar para ela.
(Estes versos estão fora do meu ritmo.
Eu também estou fora do meu ritmo).
Tinteiro grande à frente.
Canetas com aparos novos à frente.
Mais para cá papel muito limpo.
Ao lado esquerdo um volume da «Enciclopédia Britânica».
Ao lado direito —
Ah, ao lado direito!
A faca de papel com que ontem
Não tive paciência para abrir completamente
O livro que me interessava e não lerei.
Quem pudesse sintonizar tudo isto!
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O mito, Drummond
Sequer conheço Fulana,
vejo Fulana tão curto
Fulana jamais me vê,
mas como eu amo Fulana.
Amarei mesmo Fulana?
ou é ilusão de sexo?
talvez a linha do busto,
da perna, talvez o ombro.
Amo Fulana tão forte,
amo Fulana tão dor,
que todo me despedaço
e choro, menino, choro
Mas Fulana vai se rindo...
Vejam Fulana dançando
No esporte ele está sozinha
No bar, quão acompanhada.
E Fulana diz mistérios,
diz marxismo, rimmel, gás.
Fulana me bombardeia,
no entanto sequer me vê.
E sequer nos compreendemos,
É dama de alta fidúcia,
tem latifúndios, iates,
sustenta cinco mil pobres,
Menos eu... que de orgulhoso
me basto pensando nela
Pensando com unha, plasma,
fúria, gilete, desânimo.
Amor tão disparatado,
Desbaratado é que é...
Nunca a sentei no meu colo
nem vi pela fechadura.
mas eu sei quanto me custa
manter esse gelo digno,
essa indiferença gaia,
e não gritar: Vem, Fulana!
Como deixar de invadir
sua casa de mil fechos
e sua veste arrancando
mostrá-la depois ao povo
tal como é, ou deve ser:
branca, intacta, neutra, rara,
feita de pedra translúcida,
de ausência e ruivos ornatos.
Mas como será Fulana,
digamos, no seu banheiro?
Só de pensar em seu corpo,
o meu se punge... Pois sim.
Porque preciso do corpo
para mendigar Fulana,
rogar-lhe que pise em mim,
Que me maltrate... Assim não.
Mas Fulana será gente?
Estará somente em ópera?
Será figura de livros?
Será bicho? Saberei?
Não saberei? Só pegando,
pedindo: Dona, desculpe,
O seu vestido esconde algo?
tem coxas reais? cintura?
Fulana às vezes existe
demais: até me apavora.
Vou sozinho pela rua,
eis que Fulana me roça.
Olho: não tem mais Fulana.
Povo se rindo de mim.
(Na curva do seu sapato
o calcanhar rosa e puro.)
E eu insonte, pervagando
em ruas de peixe e lágrima
Aos operários: a vistes?
Não, dizem os operários.
Aos boiadeiros: A vistes?
Dizem não os boiadeiros.
Acaso a vistes, doutores?
Mas eles respondem: Não!
Pois é possível? pergunto
aos jornais: todos calados.
Não sabemos se Fulana
passou. De nada sabemos.
E são onze horas da noite,
são onze rodas de chope,
onze vezes dei a volta
de minha sede; e Fulana
talvez dance no cassino
ou, e será mais provável,
talvez beije no Leblon,
talvez se banhe na Cólquida;
talvez se pinte no espelho
do táxi; talvez aplauda
certa peça miserável
num teatro barroco e louco;
talvez cruze a perna e beba,
talvez corte figurinhas,
talvez fume de piteira,
talvez ria, talvez minta.
Esse insuportável riso
de Fulana de mil dentes
(anúncio de dentifrício)
é faca me escavacando.
Me ponho a correr na praia.
Venha o mar! Venham cações!
Que o farol me denuncie!
Que a fortaleza me ataque!
Quero morrer sufocado,
quero das mortes a hedionda,
quero voltar repelido
pela salsugem do largo,
já sem cabeça e sem perna,
à porta do apartamento,
para feder: de propósito,
somente para Fulana.
E Fulana apelará
para os frascos de perfume.
Abre-os todos: mas de todos
eu salto, e ofendo, e sujo.
E Fulana correrá
(nem se cobriu; vai chispando)
talvez se atire lá do alto.
Seu grito é: socorro! e deus.
Mas não quero nada disso.
Para que chatear Fulana?
Pancada na sua nuca
na minha é que vai doer.
E daí não sou criança.
Fulana estuda meu rosto.
Coitado: de raça branca.
Tadinho: tinha gravata.
Já morto, me quererá?
Esconjuro se é necrófila...
Fulana é vida, ama as flores,
as artérias e as debêntures.
Sei que jamais me perdoara
matar-me para servi-la.
Fulana quer homens fortes,
couraçados, invasores.
Fulana é toda dinâmica,
tem um motor na barriga.
Suas unhas são elétricas,
seus beijos refrigerados,
desinfetados, gravados
em máquina multilite.
Fulana, como é sadia!
Os enfermos somos nós.
Sou eu, o poeta precário
que fez de Fulana um mito,
nutrindo-me de Petrarca,
Ronsard, Camões e Capim;
Que a sei embebida em leite,
carne, tomate, ginástica,
e lhe colo metafísicas,
enigmas, causas primeiras.
Mas, se tentasse construir
outra Fulana que não
essa de burguês sorriso
e de tão burro esplendor?
Mudo-lhe o nome; recorto-lhe
um traje de transparência;
já perde a carência humana;
e bato-a; de tirar sangue.
E lhe dou todas as faces
de meu sonho que especula;
e abolimos a cidade
já sem peso e nitidez.
E vadeamos a ciência,
mar de hipóteses. A lua
fica sendo nosso esquema
de um território mais justo.
E colocamos os dados
de um mundo sem classes e imposto;
e nesse mundo instalamos
os nossos irmãos vingados.
E nessa fase gloriosa,
de contradições extintas,
eu e Fulana, abrasados,
queremos... que mais queremos?
E digo a Fulana: Amiga,
afinal nos compreedemos.
Já não sofro, já não brilhas,
mas somos a mesma coisa.
(Uma coisa tão diversa
da que pensava que fôssemos.)
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Sobrecarregado por muitos trabalhos, Tadeusz Rosewicz
Sobrecarregado por muitos trabalhos urgentes
esqueci
que cada um de nós
também tem de morrer
feito um irresponsável
segui negligenciando tal tarefa
ou realizei-a
perfunctoriamente
mas a partir de amanhã
tudo vai mudar
começarei a morrer meticulosamente
com sabedoria e otimismo
sem perda de tempo
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Eu lavo a camisa, Anna Swir
Pela última vez lavo a camisa
de meu pai morto.
A camisa cheira a suor. Lembro
desse suor na minha infância,
por tantos anos
lavei suas camisas e roupas de baixo,
sequei-as
junto ao fogão à lenha na garagem,
ele que as vestia sem passar.
Entre todos os corpos do mundo,
animais, humanos,
apenas um exsudava esse suor.
Inalei-o
pela última vez. Ao lavar esta camisa
destruí-o
para sempre.
Agora
de meu pai restam apenas os quadros
que cheiram a óleo.
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San Martino del Carso, Giuseppe Ungaretti
Destas casas
não restou
mais que um
pedacinho qualquer de muro
Dos tantos
que me correspondiam
não restou
sequer tanto
Mas no coração
Cruz nenhuma falta
É meu coração
O país mais destroçado.
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Tentativa de ciúme, Marina Tsvetaeva
Como é a tua vida com outra mulher?
Mais simples, não? Uma simples braçada!
Minha memória recua,
alcança no horizonte
uma ilha flutuante
(mas no céu e não nas águas).
Alma e alma! Vós sereis irmãs
mas não amantes!
Como é a tua vida com uma mulher
vulgar, sem divino?
Agora que destronaste a tua rainha
e tu mesmo renunciaste ao trono,
como é a tua vida? Que fazes?
Não sabes? E como te levantas?
Pagando o preço da banalidade imortal,
e ficando mais pobre?
“Basta de sustos e de suspeitas!
Hei-de arranjar um lar!”
E como vai a tua vida com essa mulher,
tu que foste escolhido para mim?
A comida é mais apetitosa?
Não te queixas se enjoares?
Como é a tua vida com uma pobre coitada –
tu, que pisaste o monte Sinai?
Como é a tua vida com uma qualquer,
uma mulher deste mundo? Diz-me – agradável?
A vergonha, como as rédeas de Zeus,
não te fustiga a testa?
Como é a tua vida? A tua saúde?
Vai indo, não? Como cantas?
Como enfrentas a consciência imortal
que te assalta, pobre homem?
Como é a tua vida com um acessório
de plástico? O preço é caro, não?
Depois do mármore de Carrara,
como é a tua vida com um bocado
de gesso partido? (Deus talhou-a
de um bloco e estilhaçou-o?)
Como é a tua vida com uma qualquer,
tu, que conheceste Lilith?
O teu apetite satisfez-se? E agora que a lascívia
não exerce mais poder sobre ti,
como é a tua vida
com uma mulher deste mundo,
sem um sexto sentido? És feliz?
Não? Nesse poço sem fundo do mundo
como é a tua vida, meu amor?
Pior do que a minha vida com um outro homem?
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Poema anônimo japonês
Ao longo do verão
Te mandei crisântemos,
E ásteres para teu aniversário,
Uma ponte de flores entre nós,
Enquanto quedamos equidistantes
Através do solstício da vida.
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Testamento, Manuel Bandeira
O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros — perdi-os...
Tive amores — esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.
Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.
Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.
Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!
Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!
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Encontros inesperados, Szymborska
Somos sumamente corteses um com o outro
Dizemos: que agradável nos encontrarmos depois de tantos anos.
Nossos tigres bebem leite,
Nossos falcões vão a pé.
Nossos tubarões se afogam na água.
Nossos lobos bocejam diante de jaulas abertas.
Nossas víboras ficaram sem relâmpagos,
Os macacos sem inspiração, e os pavões-reais sem plumas.
Há quanto tempo os morcegos renunciaram a nossos cabelos?
Sucumbimos ao silêncio sem acabar a frase,
Sorrimos, sem recursos.
Nossos pessoas
não sabem o que se dizer.
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