Tumgik
caiogambardella · 6 years
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Tente se lembrar de alguns detalhes, Yehuda Amichai.
Tente se lembrar de alguns detalhes. Lembre das roupas
da pessoa amada
de modo que no dia do desastre você possa dizer: vista
pela última vez usando isso e aquilo, uma jaqueta marrom, um chapéu branco.
Tente se lembrar de alguns detalhes. Porque eles não têm face
e suas almas estão escondidas e o modo como choram
é o mesmo modo como riem,
e seus silêncios e seus gritos erguem-se à mesma altura
e a temperatura de seus corpos varia entre 36,5 e 40 graus
e eles não têm nenhuma vida além deste espaço exíguo
e eles não têm nenhuma imagem esculpida, nenhuma forma, nenhuma memória
e têm copos de papel para os dias de júbilo
e pratos descartáveis de papel.
Tente se lembrar de alguns detalhes. Porque o mundo
está cheio de pessoas que foram arrancadas do sono
sem ninguém para remendar o que está rasgado,
e diferentemente das feras elas vivem
cada qual em seu esconderijo solitário e morrem
juntas em campos de batalha
e nos hospitais.
E a terra engolirá a todas,
boas e más de uma só vez, como os seguidores de Corá,
todos em rebelião contra a morte,
as bocas escancaradas até o último momento,
louvando e praguejando em um só
uivo. Tente, tente se
lembrar de alguns detalhes.
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caiogambardella · 6 years
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Na escada, Kaváfis.
Quando eu descia a ignominiosa escada,  tu entravas pela porta, e por um instante  vi teu rosto desconhecido e me viste.  Depois me ocultei para que não me voltasses a ver, e passaste rapidamente ocultando teu rosto,  e te enfiaste dentro da sórdida casa  onde o prazer não encontraste, como eu não encontrei.
E, apesar disso, o amor que tu querias eu o tinha para te dar;  o amor que eu queria - vi-o em teus olhos cansados e receosos - tu o tinhas para me dar.  Nossos corpos tudo perceberam e se buscavam;  nosso sangue e nossas peles compreenderam.
Mas nos ocultamos os dois conturbados.
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caiogambardella · 6 years
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O teatro de Sabbath, Roth.
- É bom saber disso - respondeu Sabbath. - É o vínculo mais forte que há no mundo, a mãe e o filho. Não pode haver no mundo nada mais forte do que isso.
- É verdade - disse Balich, seus suaves olhos cinzentos se enchendo de lágrimas por conversar com alguém tão compreensivo. - Pois é, e quando olhei para ela, morta, com o meu filho no hospital no meio da noite... ela estava ali deitada com todos aqueles tubos e quando olhei para ela e vi que o vínculo havia se partido, o vínculo com o nosso filho, eu não pude acreditar que essa coisa que você disse que é a coisa mais forte do mundo já não existisse mais. Ela tinha partido. Então eu lhe dei um beijo de despedida, meu filho a beijou e eu também, e eles retiraram todos os tubos. E aquele pedaço humano de luz do sol estava ali, mas morto.
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caiogambardella · 6 years
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Desfecho, Rilke
a morte é grande. somos seus ri- sonhos criados. quando nos vemos no meio da vida ela vem atrevida chorar ao nosso lado.
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caiogambardella · 6 years
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Adolescente, Wislawa
Eu – adolescente? Se, de repente, aparecesse aqui, agora, diante de mim, saudá-la-ia como pessoa que me é próxima, embora seja, para mim, estranha e distante?
Verter uma lágrima, beijar-lhe a testa pela simples razão de termos a mesma data de nascimento?
Tão poucas semelhanças entre nós, quiçá, apenas os ossos são os mesmos, a caixa craniana, as órbitas.
Já que os olhos dela parecem maiores, as pestanas mais compridas, ela mais alta e todo o seu corpo revestido com uma pele lisa, sem mácula.
Na verdade, ligam-nos parentes e conhecidos, no mundo dela, porém, quase todos estão vivos, enquanto no meu já não há quase ninguém deste círculo que tínhamos comum.
Somos tão diferentes uma da outra, pensamos e falamos sobre coisas tão diferentes. Ela pouco sabe – mas com uma teimosia digna de melhores causas. Eu sei muito mais – mas sem nada saber ao certo.
Mostra-me uns poemas, escritos com letra clara e cuidada, como já há muito eu não escrevo.
Leio esses poemas e leio. Bem, talvez este daqui, se o reduzirmos e corrigirmos aqui e ali. O resto nada de bom augura.
A conversa está difícil. No seu pobre relógio, o tempo ainda é vacilante e barato. No meu, já é muito mais caro e preciso.
Na despedida nada, um breve sorriso e nenhuma comoção.
Somente quando se afasta e, apressada, se esquece do cachecol.
Um cachecol de pura lã, às riscas coloridas feito em croché para ela pela nossa mãe. 
Ainda hoje o tenho. 
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caiogambardella · 7 years
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Luciana, Augusto Schmidt
As raparigas que dançavam, Luciana, a pálida, todas Como frutos apodrecerão Porque só há um destino Com muitos caminhos, embora.
Depois outras raparigas é que dançarão. Luciana passará com o seu sorriso triste, Suas mãos brancas repousarão — Porque só há um destino Com muitos caminhos, embora.
Cada um conhece o seu destino: Luciana, a pálida, e as outras também, Todas as raparigas que dançavam — Cada um traz seu destino no rosto, No rosto de Luciana e das outras também.
Em breve, todas as figuras mudarão: Serão outras, tudo terá passado — Os homens e as mulheres, o salão, Os móveis — nem lembrança sequer restará. Luciana terá desaparecido como a poeira da estrada. Como a poeira, o tempo dispersará a fisionomia de Luciana: E — atentai bem — Luciana não se repetirá. Ninguém se repete no tempo. Cada um é diferente. Cada um existe uma vez só e não é substituído. Contemplai bem, pois, Luciana, que não se repete.
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caiogambardella · 7 years
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Zona, Apollinaire.
Eis-te finalmente farto deste mundo antigo Pastora oh Torre Eiffel o rebanho das pontes bale esta manhã Estás cansado de viver na antiguidade grega e romana Aqui até os automóveis parecem velhos Só a religião permanece nova só a religião Permaneceu simples como os hangares dum campo de aviação Só tu não és velho na Europa oh Cristianismo O europeu mais moderno sois vós Papa Pio X A ti a quem as janelas observam a vergonha te impede De entrares numa igreja e de te confessares esta manhã Lês os prospectos os catálogos os cartazes em letras garrafais Aqui está a poesia esta manhã e para a prosa temos os diários Os folhetins a vinte e cinco cêntimos cheios de aventuras policiais Retratos de grandes individualidades títulos vários Esqueci o nome de uma rua muito bonita por onde passei esta manhã Nova e limpa era o clarim do sol Quatro vezes por dia passam aí De segunda-feira de manhã até sábado à tarde Os directores os operários e as belas dactilógrafas De manhã a sirene gemeu três vezes Um sino furioso ladra ao meio-dia As inscrições os estandartes e as muralhas Os anúncios e as placas gritavam como se fossem papagaios Amo a graça desta rua industrial Situada em Paris entre a Rua Aumont-Thiéville e a Avenida des Ternes Eis aqui a nova rua e tu não passas ainda de uma criança A tua mãe não te veste senão de azul e de branco És muito piedoso e como o mais antigo dos teus companheiros René Dalize Amas sobretudo as pompas da Igreja São nove horas o gás azulado quase a extinguir-se saís do dormitório às escondidas Rezais toda a noite na capela do colégio Enquanto que a eterna e adorável profundeza ametista Canta para sempre a resplandecente glória de Cristo É o formoso lírio que todos cultivamos É o archote de cabelos ruivos que o vento não apaga É o filho pálido e dourado da mãe dolorosa É a árvore frondosa de todas as preces É a dupla potência da honra e da eternidade É a estrela de seis pontas É Deus que morre na sexta-feira e ressuscita no domingo É o Cristo que sobe no céu melhor que os aviadores Batendo a marca mundial da altura Pupila Crucificada no olho A Vigésima pupila dos séculos sabe ao que quer chegar Transformado em pássaro este século como Jesus se eleva no ar Os diabos dos abismos erguem a cabeça para vê-lo Dizem que imita Simão o Mago na Judeia Gritam se abe voar chamemos-lhe aviador Os anjos adejam à volta do belo acrobata Ícaro Enoch Elias Apolónio de Tiana Flutuam à roda do primeiro aeroplano Afastam-se por vezes para deixar passar aqueles que transportam a Santa Eucaristia Esses padres que sobem eternamente elevando a hóstia O avião pousa por fim sem recolher as asas Milhões de andorinhas povoam agora o céu A golpe de asas vêm agora corvos falcões mochos De África chegam íbis flamingos marabus Um pássaro chamo Roc cantado por narradores e poetas Plana levando nas garras o crânio de Adão a primeira cabeça A águia do fundo do horizonte lançando um longo grito Chega da América o pequeno colibri E da China esse comprido e voluptuoso pihi Que tem uma só asa e voa aos pares Eis a pomba espírito imaculado Escoltada pelo pássaro-lira e pelo pavão-real A fénix essa fogueira que a si mesma se gera E se oculta toda na cinza ardente As sereias abandonam os estreitos perigosos Chegam a três cantando uma melodia sedutora E todos águia fénix e pihis da China Confraternizam com a máquina voadora Agora caminhas por Paris só entre a multidão Rebanhos de autocarros rolam mugindo a teu lado A angústia do amor oprime-te a garganta Como se nunca mais pudesses ser amado Se vivesses nos tempos antigos entrarias num convento Tendes vergonha quando vos surpreendeis a rezar Troças de ti e o teu riso crepita como o fogo do inferno As chispas do teu riso douram o fundo da tua vida É um quadro pendurado num museu sombrio Algumas vezes vais contemplá-lo de perto Passeias hoje por Paris as mulheres estão ensanguentadas Era e eu não queria recordá-lo o declínio da beleza Rodeada de chamas ardentes Nossa Senhora olhou-me em Chartres Em Montmartre fui inundado pelo sangue do vosso Sagrado Coração Estou doente de ouvir apenas palavras bem-aventuradas O amor de que sofro é uma doença vergonhosa A imagem que te possui fez-te sobreviver na insónia e na angústia Está sempre perto de ti esta imagem que passa Eis-te agora nas margens do Mediterrâneo Debaixo dos limoeiros floridos todo o ano Passeias-te de barco com os teus amigos Dois Turbienses um Mentoniano e um Nizardo Olhamos aterrorizados os polvos das profundezas E entre as algas nadam os peixes espelhos do Salvador Estás no jardim de um albergue nos arredores de Praga Sentes-te feliz há uma rosa sobre a mesa E em lugar de escreveres o teu conto em prosa Observas a cetónia que dorme no coração da rosa Com espanto vês-te desenhado nas ágatas de S. Vito Estavas triste como a morte nesse dia Pareces-te com Lázaro enlouquecido pela luz As agulhas do relógio do bairro judeu rodam ao contrário E tu retrocedes também lentamente na tua vida Subindo o Castelo de Hradchim e escutando à tarde Cantar canções checas nas tabernas Eis-te em Marselha rodeado de melancias Estás em Coblence no Hotel do Gigante Estás em Roma sentado debaixo de uma nespereira Estás em Amsterdão com uma rapariga que te parece bonita mas é feia Vai casar-se com um estudante de Leyde Alugam-se nessa cidade quartos em latim Cubicula Locanda Lembro-me de ter passado aí três dias e outros tantos em Gouda Estás em Paris perante o Juiz de Instrução E como a um criminoso dão-te voz de prisão Fizeste viagens dolorosas e alegres Antes de te dares conta da mentira e da idade O amor fez-te sofrer aos vinte e aos trinta anos Vivi como um louco e desperdicei o meu tempo Já não te atreves a olhar as tuas mãos e a todo o momento quereria soluçar Sobre ti sobre aquela que amo sobre tudo o que te horrorizou Olhas com os olhos cheios de lágrimas esses pobres emigrantes Crêem em Deus rezam as mulheres amamentam os filhos O seu cheiro enche o átrio da estação de S. Lazare Têm fé na sua estrela como os reis magos Esperam ganhar dinheiro na Argentina E regressarem ao seu país depois de terem feito fortuna Uma família leva um edredão vermelho como vós levais o coração É tão irreal como os nossos sonhos esse edredão Alguns emigrantes quedam-se ali e alojam-se Em tugúrios da rua Rosier ou da rua de Écouffes Vi-os muitas vezes de tarde na rua apanhando ar fresco Deslocam-se raramente como as peças do xadrez Há sobretudo judeus as suas mulheres usam peruca Sentam-se exangues no fundo das lojas Estás de pé ao balcão de um bar de má fama Por dois soldos tomas um café barato Eis-te à noite num grande restaurante Essas mulheres não são más têm preocupações e não obstante Todas até a mais feia fizeram sofrer o seu amante Esta é a filha de um polícia de Jersey As suas mãos que eu nunca tinha visto são duras e gretadas Sinto uma piedade imensa pelas costuras no seu ventre Humilho agora a boca ante o riso hediondo de uma puta Estás só e a manhã vai chegar Os leiteiros fazem tilintar as vasilhas nas ruas A noite afasta-se como uma bela mestiça É Ferdine a falsa ou Léa a solícita E tu bebes este álcool ardente como a tua vida A tua vida que tu bebes como aguardente Caminhas até Auteuil queres chegar a casa a pé Dormir descansado entre os teus fetiches da Oceania e da Guiné São Cristos com outras formas e de outras crenças Os Cristos indefesos das obscuras esperanças Adeus Adeus Sol decapitado
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caiogambardella · 7 years
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O operário em construção, Poetinha.
E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo: - Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu. E Jesus, respondendo, disse-lhe: - Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás. Lucas, cap. V, vs. 5-8. Era ele que erguia casas Onde antes só havia chão. Como um pássaro sem asas Ele subia com as casas Que lhe brotavam da mão. Mas tudo desconhecia De sua grande missão: Não sabia, por exemplo Que a casa de um homem é um templo Um templo sem religião Como tampouco sabia Que a casa que ele fazia Sendo a sua liberdade Era a sua escravidão. De fato, como podia Um operário em construção Compreender por que um tijolo Valia mais do que um pão? Tijolos ele empilhava Com pá, cimento e esquadria Quanto ao pão, ele o comia... Mas fosse comer tijolo! E assim o operário ia Com suor e com cimento Erguendo uma casa aqui Adiante um apartamento Além uma igreja, à frente Um quartel e uma prisão: Prisão de que sofreria Não fosse, eventualmente Um operário em construção. Mas ele desconhecia Esse fato extraordinário: Que o operário faz a coisa E a coisa faz o operário. De forma que, certo dia À mesa, ao cortar o pão O operário foi tomado De uma súbita emoção Ao constatar assombrado Que tudo naquela mesa - Garrafa, prato, facão - Era ele quem os fazia Ele, um humilde operário, Um operário em construção. Olhou em torno: gamela Banco, enxerga, caldeirão Vidro, parede, janela Casa, cidade, nação! Tudo, tudo o que existia Era ele quem o fazia Ele, um humilde operário Um operário que sabia Exercer a profissão. Ah, homens de pensamento Não sabereis nunca o quanto Aquele humilde operário Soube naquele momento! Naquela casa vazia Que ele mesmo levantara Um mundo novo nascia De que sequer suspeitava. O operário emocionado Olhou sua própria mão Sua rude mão de operário De operário em construção E olhando bem para ela Teve um segundo a impressão De que não havia no mundo Coisa que fosse mais bela. Foi dentro da compreensão Desse instante solitário Que, tal sua construção Cresceu também o operário. Cresceu em alto e profundo Em largo e no coração E como tudo que cresce Ele não cresceu em vão Pois além do que sabia - Exercer a profissão - O operário adquiriu Uma nova dimensão: A dimensão da poesia. E um fato novo se viu Que a todos admirava: O que o operário dizia Outro operário escutava. E foi assim que o operário Do edifício em construção Que sempre dizia sim Começou a dizer não. E aprendeu a notar coisas A que não dava atenção: Notou que sua marmita Era o prato do patrão Que sua cerveja preta Era o uísque do patrão Que seu macacão de zuarte Era o terno do patrão Que o casebre onde morava Era a mansão do patrão Que seus dois pés andarilhos Eram as rodas do patrão Que a dureza do seu dia Era a noite do patrão Que sua imensa fadiga Era amiga do patrão. E o operário disse: Não! E o operário fez-se forte Na sua resolução. Como era de se esperar As bocas da delação Começaram a dizer coisas Aos ouvidos do patrão. Mas o patrão não queria Nenhuma preocupação - "Convençam-no" do contrário - Disse ele sobre o operário E ao dizer isso sorria. Dia seguinte, o operário Ao sair da construção Viu-se súbito cercado Dos homens da delação E sofreu, por destinado Sua primeira agressão. Teve seu rosto cuspido Teve seu braço quebrado Mas quando foi perguntado O operário disse: Não! Em vão sofrera o operário Sua primeira agressão Muitas outras se seguiram Muitas outras seguirão. Porém, por imprescindível Ao edifício em construção Seu trabalho prosseguia E todo o seu sofrimento Misturava-se ao cimento Da construção que crescia. Sentindo que a violência Não dobraria o operário Um dia tentou o patrão Dobrá-lo de modo vário. De sorte que o foi levando Ao alto da construção E num momento de tempo Mostrou-lhe toda a região E apontando-a ao operário Fez-lhe esta declaração: - Dar-te-ei todo esse poder E a sua satisfação Porque a mim me foi entregue E dou-o a quem bem quiser. Dou-te tempo de lazer Dou-te tempo de mulher. Portanto, tudo o que vês Será teu se me adorares E, ainda mais, se abandonares O que te faz dizer não. Disse, e fitou o operário Que olhava e que refletia Mas o que via o operário O patrão nunca veria. O operário via as casas E dentro das estruturas Via coisas, objetos Produtos, manufaturas. Via tudo o que fazia O lucro do seu patrão E em cada coisa que via Misteriosamente havia A marca de sua mão. E o operário disse: Não! - Loucura! - gritou o patrão Não vês o que te dou eu? - Mentira! - disse o operário Não podes dar-me o que é meu. E um grande silêncio fez-se Dentro do seu coração Um silêncio de martírios Um silêncio de prisão. Um silêncio povoado De pedidos de perdão Um silêncio apavorado Com o medo em solidão. Um silêncio de torturas E gritos de maldição Um silêncio de fraturas A se arrastarem no chão. E o operário ouviu a voz De todos os seus irmãos Os seus irmãos que morreram Por outros que viverão. Uma esperança sincera Cresceu no seu coração E dentro da tarde mansa Agigantou-se a razão De um homem pobre e esquecido Razão porém que fizera Em operário construído O operário em construção.
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caiogambardella · 7 years
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Há mais de meia hora, Álvaro de Campos
Há mais de meia hora Que estou sentado à secretária Com o único intuito De olhar para ela. (Estes versos estão fora do meu ritmo. Eu também estou fora do meu ritmo). Tinteiro grande à frente. Canetas com aparos novos à frente. Mais para cá papel muito limpo. Ao lado esquerdo um volume da «Enciclopédia Britânica». Ao lado direito — Ah, ao lado direito! A faca de papel com que ontem Não tive paciência para abrir completamente O livro que me interessava e não lerei. Quem pudesse sintonizar tudo isto!
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caiogambardella · 7 years
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O mito, Drummond
Sequer conheço Fulana, vejo Fulana tão curto Fulana jamais me vê, mas como eu amo Fulana.
Amarei mesmo Fulana? ou é ilusão de sexo? talvez a linha do busto, da perna, talvez o ombro.
Amo Fulana tão forte, amo Fulana tão dor, que todo me despedaço e choro, menino, choro
Mas Fulana vai se rindo... Vejam Fulana dançando No esporte ele está sozinha No bar, quão acompanhada.
E Fulana diz mistérios, diz marxismo, rimmel, gás. Fulana me bombardeia, no entanto sequer me vê.
E sequer nos compreendemos, É dama de alta fidúcia, tem latifúndios, iates, sustenta cinco mil pobres,
Menos eu... que de orgulhoso me basto pensando nela Pensando com unha, plasma, fúria, gilete, desânimo.
Amor tão disparatado, Desbaratado é que é... Nunca a sentei no meu colo nem vi pela fechadura.
mas eu sei quanto me custa manter esse gelo digno, essa indiferença gaia, e não gritar: Vem, Fulana!
Como deixar de invadir sua casa de mil fechos e sua veste arrancando mostrá-la depois ao povo
tal como é, ou deve ser: branca, intacta, neutra, rara, feita de pedra translúcida, de ausência e ruivos ornatos.
Mas como será Fulana, digamos, no seu banheiro? Só de pensar em seu corpo, o meu se punge... Pois sim.
Porque preciso do corpo para mendigar Fulana, rogar-lhe que pise em mim, Que me maltrate... Assim não.
Mas Fulana será gente? Estará somente em ópera? Será figura de livros? Será bicho? Saberei?
Não saberei? Só pegando, pedindo: Dona, desculpe, O seu vestido esconde algo? tem coxas reais? cintura?
Fulana às vezes existe demais: até me apavora. Vou sozinho pela rua, eis que Fulana me roça.
Olho: não tem mais Fulana. Povo se rindo de mim. (Na curva do seu sapato o calcanhar rosa e puro.)
E eu insonte, pervagando em ruas de peixe e lágrima Aos operários: a vistes? Não, dizem os operários.
Aos boiadeiros: A vistes? Dizem não os boiadeiros. Acaso a vistes, doutores? Mas eles respondem: Não!
Pois é possível? pergunto aos jornais: todos calados. Não sabemos se Fulana passou. De nada sabemos.
E são onze horas da noite, são onze rodas de chope, onze vezes dei a volta de minha sede; e Fulana
talvez dance no cassino ou, e será mais provável, talvez beije no Leblon, talvez se banhe na Cólquida;
talvez se pinte no espelho do táxi; talvez aplauda certa peça miserável num teatro barroco e louco;
talvez cruze a perna e beba, talvez corte figurinhas, talvez fume de piteira, talvez ria, talvez minta.
Esse insuportável riso de Fulana de mil dentes (anúncio de dentifrício) é faca me escavacando.
Me ponho a correr na praia. Venha o mar! Venham cações! Que o farol me denuncie! Que a fortaleza me ataque!
Quero morrer sufocado, quero das mortes a hedionda, quero voltar repelido pela salsugem do largo,
já sem cabeça e sem perna, à porta do apartamento, para feder: de propósito, somente para Fulana.
E Fulana apelará para os frascos de perfume. Abre-os todos: mas de todos eu salto, e ofendo, e sujo.
E Fulana correrá (nem se cobriu; vai chispando) talvez se atire lá do alto. Seu grito é: socorro! e deus.
Mas não quero nada disso. Para que chatear Fulana? Pancada na sua nuca na minha é que vai doer.
E daí não sou criança. Fulana estuda meu rosto. Coitado: de raça branca. Tadinho: tinha gravata.
Já morto, me quererá? Esconjuro se é necrófila... Fulana é vida, ama as flores, as artérias e as debêntures.
Sei que jamais me perdoara matar-me para servi-la. Fulana quer homens fortes, couraçados, invasores.
Fulana é toda dinâmica, tem um motor na barriga. Suas unhas são elétricas, seus beijos refrigerados,
desinfetados, gravados em máquina multilite. Fulana, como é sadia! Os enfermos somos nós.
Sou eu, o poeta precário que fez de Fulana um mito, nutrindo-me de Petrarca, Ronsard, Camões e Capim;
Que a sei embebida em leite, carne, tomate, ginástica, e lhe colo metafísicas, enigmas, causas primeiras.
Mas, se tentasse construir outra Fulana que não essa de burguês sorriso e de tão burro esplendor?
Mudo-lhe o nome; recorto-lhe um traje de transparência; já perde a carência humana; e bato-a; de tirar sangue.
E lhe dou todas as faces de meu sonho que especula; e abolimos a cidade já sem peso e nitidez.
E vadeamos a ciência, mar de hipóteses. A lua fica sendo nosso esquema de um território mais justo.
E colocamos os dados de um mundo sem classes e imposto; e nesse mundo instalamos os nossos irmãos vingados.
E nessa fase gloriosa, de contradições extintas, eu e Fulana, abrasados, queremos... que mais queremos?
E digo a Fulana: Amiga, afinal nos compreedemos. Já não sofro, já não brilhas, mas somos a mesma coisa.
(Uma coisa tão diversa da que pensava que fôssemos.)
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caiogambardella · 7 years
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Sobrecarregado por muitos trabalhos, Tadeusz Rosewicz
Sobrecarregado por muitos trabalhos urgentes esqueci que cada um de nós também tem de morrer
feito um irresponsável segui negligenciando tal tarefa ou realizei-a perfunctoriamente
mas a partir de amanhã tudo vai mudar
começarei a morrer meticulosamente com sabedoria e otimismo sem perda de tempo
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caiogambardella · 7 years
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Eu lavo a camisa, Anna Swir
Pela última vez lavo a camisa de meu pai morto. A camisa cheira a suor. Lembro desse suor na minha infância, por tantos anos lavei suas camisas e roupas de baixo, sequei-as junto ao fogão à lenha na garagem, ele que as vestia sem passar.
Entre todos os corpos do mundo, animais, humanos, apenas um exsudava esse suor. Inalei-o pela última vez. Ao lavar esta camisa destruí-o para sempre. Agora de meu pai restam apenas os quadros que cheiram a óleo.
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caiogambardella · 8 years
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San Martino del Carso, Giuseppe Ungaretti
Destas casas não restou mais que um pedacinho qualquer de muro
Dos tantos que me correspondiam não restou sequer tanto
Mas no coração Cruz nenhuma falta
É meu coração O país mais destroçado.
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caiogambardella · 8 years
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Tentativa de ciúme, Marina Tsvetaeva
Como é a tua vida com outra mulher? Mais simples, não? Uma simples braçada! Minha memória recua, alcança no horizonte uma ilha flutuante (mas no céu e não nas águas). Alma e alma! Vós sereis irmãs mas não amantes! Como é a tua vida com uma mulher vulgar, sem divino? Agora que destronaste a tua rainha e tu mesmo renunciaste ao trono, como é a tua vida? Que fazes? Não sabes? E como te levantas? Pagando o preço da banalidade imortal, e ficando mais pobre? “Basta de sustos e de suspeitas! Hei-de arranjar um lar!” E como vai a tua vida com essa mulher, tu que foste escolhido para mim? A comida é mais apetitosa? Não te queixas se enjoares? Como é a tua vida com uma pobre coitada – tu, que pisaste o monte Sinai? Como é a tua vida com uma qualquer, uma mulher deste mundo? Diz-me – agradável? A vergonha, como as rédeas de Zeus, não te fustiga a testa? Como é a tua vida? A tua saúde? Vai indo, não? Como cantas? Como enfrentas a consciência imortal que te assalta, pobre homem? Como é a tua vida com um acessório de plástico? O preço é caro, não? Depois do mármore de Carrara, como é a tua vida com um bocado de gesso partido? (Deus talhou-a de um bloco e estilhaçou-o?) Como é a tua vida com uma qualquer, tu, que conheceste Lilith? O teu apetite satisfez-se? E agora que a lascívia não exerce mais poder sobre ti, como é a tua vida com uma mulher deste mundo, sem um sexto sentido? És feliz? Não? Nesse poço sem fundo do mundo como é a tua vida, meu amor? Pior do que a minha vida com um outro homem?
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caiogambardella · 8 years
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Poema anônimo japonês
Ao longo do verão Te mandei crisântemos, E ásteres para teu aniversário, Uma ponte de flores entre nós, Enquanto quedamos equidistantes Através do solstício da vida.
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caiogambardella · 8 years
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Testamento, Manuel Bandeira
O que não tenho e desejo É que melhor me enriquece. Tive uns dinheiros — perdi-os... Tive amores — esqueci-os. Mas no maior desespero Rezei: ganhei essa prece.
Vi terras da minha terra. Por outras terras andei. Mas o que ficou marcado No meu olhar fatigado, Foram terras que inventei.
Gosto muito de crianças: Não tive um filho de meu. Um filho!... Não foi de jeito... Mas trago dentro do peito Meu filho que não nasceu.
Criou-me, desde eu menino Para arquiteto meu pai. Foi-se-me um dia a saúde... Fiz-me arquiteto? Não pude! Sou poeta menor, perdoai!
Não faço versos de guerra. Não faço porque não sei. Mas num torpedo-suicida Darei de bom grado a vida Na luta em que não lutei!
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caiogambardella · 8 years
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Encontros inesperados, Szymborska
Somos sumamente corteses um com o outro Dizemos: que agradável nos encontrarmos depois de tantos anos.
Nossos tigres bebem leite, Nossos falcões vão a pé. Nossos tubarões se afogam na água. Nossos lobos bocejam diante de jaulas abertas. Nossas víboras ficaram sem relâmpagos, Os macacos sem inspiração, e os pavões-reais sem plumas. Há quanto tempo os morcegos renunciaram a nossos cabelos?
Sucumbimos ao silêncio sem acabar a frase, Sorrimos, sem recursos. Nossos pessoas não sabem o que se dizer.
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