Tumgik
carvoli · 5 years
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Pai
Bissau, 19 de março de 2019
 Houve um dia em que percebi, mesmo ao longe, tive a primeira vaga ideia de quem você era e o que poderia representar sobre aquela que, na altura, ainda apenas sonhava ser amado um dia. Acredito ter sido esse o momento em que fomos apresentados, ou melhor, que houve a primeira conexão entre nós.
Desde então, o sonho materializou-se e temos falado umas tantas vezes. Talvez menos do que deveria. Certamente te ouvi e senti menos do que precisava! Embora acredite que qualquer movimento, em gesto ou pensamento, que procure demonstrar ou, mais do que isso, fazer sentir, de forma visível ou invisível, o amor que sinto por esse seu legado, você ainda me ouve.
Reconheço-me como alguém que se lembra, na maioria das vezes, sobretudo de olhar para o céu quando falta-me o chão. Pesado fardo. Daí de onde está, sabe bem disso. Seres iluminados, antepassados, santos, Deus, Deuses, anjos, estrelas, culto ao imaterial, ao que já partiu, ao que nunca veio, seres que acredito olharem por nós, mortais. Não sei se nos invejam por estarmos vivos ou se rogam por nós. Acredito que os dois…  
Hoje escrevo à sua herdeira em homenagem a você, à parte do materialismo promovido nos tempos que correm. Escrevo em intenção de uma ode, pois te considero ser um aliado. Aliado porque indiscutivelmente deseja e desejará sempre o amor, a felicidade e as realizações que qualquer Pai que ama quer para sua filha. Não única por ser apenas uma, mas por ela tão tão particular.
Geralmente quando apelo a ti é porque sei que consegues ver meu coração. Já falamos sobre tantas vezes sobre isso… Acredito que de onde você está é possível ver para além dos medos, das alegrias, dos receios, dos recreios, das angústias, dos sonhos, das desilusões, dos fogos-de-artifício e das queimaduras. Daí das estrelas, quem para aí já partiu ou aí nasceu, acredito não haver cortinas, não haver palco, não haver plateia. Somos vistos vestidos de nós mesmos.
Acho que posso tratar-te por tu. Às vezes trato. Na verdade eu perco-me nos pronomes, só não mais que nos meus receios. Não é novidade para ti, pois meu coração é para ti descortinado. Pedi e peço para que olhe pra dentro dele e ajuda-me a perceber o caminho, se seria eu capaz de construir a minha família a partir da tua. Se seria capaz de unir dois mundos tão distantes e distintos num destino digno da felicidade que desejo tanto a ela quanto a mim.
Hoje circunstancialmente encontro-me naquilo que fora em tempo o lar que construímos. Repleto de todo simbolismo que permeia as paredes mas que, por tantas vezes, impermeou muito daquilo que que sonhamos viver. Atentados contra nós mesmos. Vejo-me náufrago. Do que herdamos de vocês, de nós mesmo, da nossa própria estória, nós, homens, agarramos naquilo que o nosso último reduto de paz, a esperança. Esperança consciente, ensejo. Esperança de poder desembarcar em nós mesmos e de ainda poder dar, dar o que não demos, superarmo-nos, venceras nossas próprias mazelas, e, por desejável fim, completar a pessoas que amamos. Completos e cientes da nossa incompletude para connosco próprios, que deseja se fazer completar por quem se ama. E assim entregar-se cheio, incorruptível, crédulo e substancial.
Em consideração a data de hoje, apresento-me diante de vocês os dois, juntos, como havia de ser entre pessoas que se amam. Escrevo a você, a ti, aos meus, aos vossos. Escrevo para aqueles que jazem junto ao manto de estrelas sobre o qual se insiste em rogar mas que, na verdade, são vocês que rogam por nós, mortais. Rogam para que possamos conhecer, viver, aprender e crescer em verdadeiro em pleno amor.
Olhai por nós. Preservai-vos a nossa coragem em percorrer os caminhos difíceis, dai-nos discernimento para saber o que entregar e o que agarrar. Rogai para não sucumbirmos diante das adversidades, para que tenhamos consciências de nós mesmos e, nessa consciência, sejamos corajosos para viver a vida que desejamos e merecemos ter, em honrar à vida que nos deram.
Com amor a ti, ao Teu, ao meu e aos que nos amam.
“Pai, Quero que Saibas
É o teu rosto que encontro. Contra nós, cresce a manhã, o dia, cresce uma luz fina. Olho-te nos olhos. Sim, quero que saibas, não te posso esconder, ainda há uma luz fina sobre tudo isto. Tudo se resume a esta luz fina a recordar-me todo o silêncio desse silêncio que calaste. Pai. Quero que saibas, cresce uma luz fina sobre mim que sou sombra, luz fina a recortar-me de mim, ténue, sombra apenas. Não te posso esconder, depois de ti, ainda há tudo isto, toda esta sombra e o silêncio e a luz fina que agora és.” José Luís Peixoto, in 'Morreste-me' 
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carvoli · 5 years
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“And if you were to ask me
After all that we've been through
Still believe in magic?
Yes, I do.” ✨
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carvoli · 6 years
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Questionação do Inquestionável
Toda a pergunta implica uma interrogação a um olhar vigilante. Mas a vigília cansa. Nunca porém o soubemos como hoje, porque só hoje verdadeiramente interrogamos - só hoje sabemos ser essa a questionação do inquestionável. 
Mas reconhecemo-lo precisamente por termos interrogado. Porque ao longo da História, jamais o homem de facto interrogou, por não saber que interrogava. Esboçada embora há muito a questão do fundamental, ela perturbou-se-nos no entusiasmo de lhe responder em positivo ou negativo. Porque a negação não nega, a destruição não destrói, excepto se não há mais nada para destruir: até lá constrói ainda - nem que seja o próprio acto de destruir. Fazer e desfazer, com efeito, são iguais como acto e entusiasmo desse acto. A grande diferença não é a que separa um do outro, mas a que os separa a ambos de nós. A grande diferença é a que vai da segurança do falar à perturbação do silêncio; do «sim» ou «não» como limite, ao querer ir além do limite sem mais além para ir. Mas a luz que ilumina, o que iluminou? Que a ciência te explique o que é uma simples pedra, explicou por cima do que seria interessante explicar. Há uma questão ainda, anterior, mais simples, sobre o porque é que há pedras. E sobre o que temos que fazer em face delas... Porque onde a palavra certa que nos ligue um ao outro? 
Vergílio Ferreira, in 'Invocação ao Meu Corpo' 
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carvoli · 6 years
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São as Pessoas como Tu
São as pessoas como tu que fazem com que o nada queira dizer-nos algo, as coisas vulgares se tornem coisas importantes e as preocupações maiores sejam de facto mais pequenas. São as pessoas como tu que dão outra dimensão aos dias, transformando a chuva em delirante orvalho e fazendo do inverno uma estação de rosas rubras. 
As pessoas como tu possuem não uma, mas todas as vidas. Pessoas que amam e se entregam porque amar é também partilhar as mãos e o corpo. Pessoas que nos escutam e nos beijam e sabem transformar o cansaço numa esperança aliciante, tocando-nos o rosto com dedos de água pura, soltando-nos os cabelos com a leveza do pássaro ou a firmeza da flecha. São as pessoas como tu que nos respiram e nos fazem inspirar com elas o azul que há no dorso das manhãs, e nos estendem os braços e nos apertam até sentirmos o coração transformar o peito numa música infinita. São as pessoas como tu que não nos pedem nada mas têm sempre tudo para dar, e que fazem de nós nem ícaros nem prisioneiros, mas homens e mulheres com a estatura da vida, capazes da beleza e da justiça, do sofrimento e do amor. São as pessoas como tu que, interrogando-nos, se interrogam, e encontram a resposta para todas as perguntas nos nossos olhos e no nosso coração. As pessoas que por toda a parte deixam uma flor para que ela possa levar beleza e ternura a outras mãos. Essas pessoas que estão sempre ao nosso lado para nos ensinar em todos os momentos, ou em qualquer momento, a não sentir o medo, a reparar num gesto, a escutar um violino. São as pessoas como tu que ajudam a transformar o mundo
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