Tumgik
paralavrar · 3 years
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milagres
Tumblr media
foi uma sensação que, do presente, atravessou séculos e revelou uma recorrência, dessas que suspendem várias cenas como bandeirolas penduradas. aqui o seu fio.
***
minha mãe me visitou e conversamos com uma realidade que eu já tinha desconhecido. é que ela usava aquela velha camisa de mandalas na qual uma cor esquecida e familiar — uma que talvez eu nunca realmente tenha registrado pela consideração, sempre defletindo seus fractais através do labirinto de espelhos emoldurados com fatos brutos e palavras alheias — os reflexos que, reunidos em multidão, trombaram côncavos e convexos no desmoronamento dos contornos — que borraram tudo, tudo, e eu só pude fixar um padrão com as linhas de um estilhaçamento, não mais preenchidas de cor — o irreal feito real — o real irrealizado por precaução — mas agora os estilhaços caíram como soslaios incompletos que eram, como quando caíram meus dentes de leite. desimpedida, a mandala se me enleou e reconheci que ela abrigava a cor; aquela que, se não esclarecesse, sempre me alumiava através de todo vitral tremulante. aquela mesma que soube, enfim, me infundir da certeza e coragem que são o mais meu. ela ria com os ombros diáfanos e, entre gestos de naturalidade rediviva, o panejamento flutuante deixava implícito o absurdo do meu esquecimento. mas logo, com a evidência da presença, me esqueci do esquecimento.
***
foi a mesma sensação dos muitos sonhos em que, um belo dia, a vovó me liga: alô, meu neto querido? aturdido, sem entender por que fazia tantos anos que não ouvia sua voz, me apercebo de que, ao longo de todas as provações, ela estava frequentando os lugares de sempre, ao alcance de uma ligação. ela me perdoa imediatamente pela falta, não foi nada, que saudade, meu neto querido, e passeamos de mão dada pela praça saenz pena na infância restaurada. sim: só agora me lembro que era ela que também usava camisas de mandalas. nos anos que se seguiram à sua morte, a perdição iminente me ensinou a imaginar a salvação. mas não sob a forma espetacular do retorno ó-tão-esperado. é que assim eu adquiri e agora exerço fora do sonho a técnica de reconhecer milagres: pela sensação repentina e prosaica de que a cisma na vida não apenas foi desfeita, mas deixou de ter existido.
***
e, nesse contexto, pousou ali, repentina e prosaica, uma enorme mariposa vermelha na mureta da varanda. eu justamente lia sobre o belo natural, um pouco para refletir sobre a situação atual na qual ele me tomou de assalto — quando, num susto, percebi-a no seu repouso ambíguo, os clarins tocando para anunciar, e corri para trás da janela da sua beleza ameaçadora, sem saber se para espantá-la ou para ver o que é bom. me distrai de decidi-lo com as preocupações ordinárias e ela saiu da minha consideração. foi à noite que, indo suspirar na varanda, percebi que ela renovava o convite, agora acomodada no chão, cristalizada e alinhada aos ladrilhos como uma joia que a graça terminava de me presentear como presságio. e agachado por sobre a sua paz vítrea, eu pressenti: equilibrando-me na ingenuidade de dias a fio junto a ela, certo na continuidade da nossa distância proximal sob o sol. em harmonia. mas a minha avidez não suportou a plenitude e desatou na vontade de consumi-la: talvez envernizá-la? encerrá-la num vidro? desfazer sua fragilidade desembaraçada num bibelô de estante? gula que se agudizava com a percepção de que seu desembaraço já a encaminhava para o destino natural... que, no entanto, — logo lembrei — não é o da desintegração, mas o da reintegração à natureza neutra.
ao menos quanto à mariposa, ela ainda está na varanda e cada vez mais confortável para despir seus contornos precisos. cada vez mais em casa na sua cor de sempre que aqui registro como posso: vermelha, sim.
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paralavrar · 3 years
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como parar
15/05 é muito difícil não converter a verdade do pessimismo no acúmulo rotineiro de fórmulas vazias a serviço de atmosfera cool, é difícil manter sua ironia constitutiva como a lembrança sincera e firme de que essa não é a vida que esperávamos e queríamos tanto; mas às vezes, é de se perguntar, existe essa diferença? ouvindo, depois de muito tempo, live in dreams do wild nothing — que, no meu cosmo interno, se fixou proeminente entre a pátina das insígnias dessa ambiguidade entre a insistência na lembrança e a sua reificação —, eu percebi que tinha me desconectado com a sensação e o significado e a cena que é fumar. “are you dead like me?”, a pergunta que levo a cada encontro enquanto atravesso o deserto gelado. similar mortificação como preservação da vida a ser encontrada no gesto legitimamente irônico de morrissey: "i smoke because i'm hoping for an early death and i need to cling to something.” o molde da esperança — que é sim diferente da espera — só ganha solidez para quem, uma vez, não restou senão a utopia do nada redentor.
27/05 parar e fumar um cigarro é exercer a capacidade salutar de participar no estar morrendo suave dos instantes de que a vida é feita. o leve cheiro acre sorvido cuidadosamente dos cachos, em cujas ondulações moram as curvas de reminiscências e as mechas mais sutis de ideias passadas, o ideal de amante se revelando como mistificação gostosa da coleção dos traços amados recolhidos: a leve mancha cheirosa entre os anéis e unhas vermelhas da vovó, a palpitação disfarçada de comprar um maço com a gangue hoje dispersa, a silhueta em contraposto de amores passados à janela. isso tudo é aniquilado pela morbidez assustadiça da dependência e do vício, com o qual me descubro afogando os pequenos choques, as intensidades difusas do cotidiano que já não quero ter forças para balancear e recolher, saturando até me anular, até estar envolto na homogenia permanente de demasia enjoativa, o frasco de sutilezas convertido em triturador de presenças. o crime cometido contra esses pedacinhos de sobrevivência, que são o único material do qual se reúne o que continua fazendo si, é punido com o alastrar-se da chaga corrosiva da hipocondria, essa evidenciação de que o eu se reduziu ao ensimesmamento oco cimentado pelo medo doentio da morte.
28/05 — de dia no comprimento restante do cigarro, ganha consistência imediata a difícil convivência com a passagem do tempo. todos os viciados tentaram repetidamente calcular quantos minutos dura um cigarro e fracassaram. quando então o cigarro é bem sucedido, logo se entende que ele é um caso especial de medida legítima do tempo-duração. por isso, quando ele é mal sucedido, surpreendo de repente o cigarro pela metade, e, precipitando-me por recuperar o tempo perdido, me emaranho ainda mais em que, com o mesmo trago com que eu busco encestá-lo com o sentir, eu gasto a reserva de tempo de recuperar o tempo. já insinuei que a experiência originária de fumar um cigarro, lá nos primórdios da infelicidade formativa, é a do καιρός, do instante glorioso, “the awful daring of a moment’s surrender which an age of prudence can never retract”. mas ela se estereotipa para o fumante ao modo de uma prece — ele quer dizer “vou fumar um cigarro” como se pudesse ir, rapidinho, conversar com Deus. nessa distração do querer entregar-se, se enxerga com precisão o esquema do tédio. quem se abandona a um passatempo, mesmo que se convença maliciosamente de que quer ver o sitcom estúpido por horas apenas para poder se esvaziar, pode notar na posterior sensação azeda de crime que o vínculo da atenção aos estereótipos narrativos só é sustentado pela comparação involuntária das cenas estúpidas com memórias estimadas de gestos perdidos, memória que com isso é gasta, borrada até se dissolver nas platitudes pré-tipificadas pela pesquisa de consumidor. a reificação in nuce: a opacidade do gosto e do cheiro amargos ritmada pela respiração — na origem, metáfora sensível do percurso de ousadia pelo qual, atravessando o não-sentido, o sentido se reestabelece — é positivada enquanto tal como signo da ousadia, a partir do quê já se vê o princípio do asqueroso to have a good time.
de repente percebo que, mesmo com toda essa distração, o cigarro ainda estava praticamente pela metade. olhando, eu trago; trago, habitando o interior da pequena brasa como microcosmo dessa tarde tão situada eu trago; trago de novo... mas não resisto: o gesto que iria apagá-lo suavemente contínuo, eu o retenho para capturar, com remorso, o último trago — registrado aqui, finalmente, para quando meu testamento for aberto pelo “lean solicitor” do futuro!!
— de noite
o emaranhado que se encontra no núcleo desse “entregar-se” tem um aspecto ainda mais degradante: sua proximidade de superfície com a desistência. a compulsão envolve sempre um ato perverso de decidir pela derrota, quando anoitece e se está desamparado de perspectivas e de beijos; então digo um “foda-se” com pose resoluta, me deixo afundar na cadeira com sorriso cínico e acendo um cigarro, estilizando a fraqueza e a covardia como escolha idiossincrática pela languidez mórbida e dizendo, com o horror cool de um cioran, para o iludido imaginário: “o que você está esperando para desistir?” o iludido, claro, é sempre quem diz. não à toa essa tirada se constrói sobre a estrutura retórica sedutora da apelação fundamental do poder hoje: “o que você está esperando para ir atrás dos seus sonhos?” — o ímpeto é o mesmo. aproveita-se o caráter fugidio da autonomia subjetiva frente a um poder assim para, com o mesmo adesismo instantâneo demandado pelo humor de bordão que cimenta as conversas vazias formatadas ao modo de timelines, esquivar-se no susto de ter que admitir a complexidade abissal da servidão. em face disso, o esforço feliz por superá-la sem dúvida é démodé. no limite, a crescente dificuldade de viver é sentida como índice de que o mais autêntico seria mesmo a morte. e só nessas condições o suicídio pode aparecer como decisão racional contra o moralismo: por mais que a compreensão das razões do suicida seja condição básica da simpatia com a alteridade, provavelmente, no fim das contas, não é mesmo possível que um suicídio resulte da pura decisão consequente da ponderação racional das alternativas. ninguém jamais escreveu um bilhete suicidas como se fosse uma resposta óbvia a problemas lógicos à maneira que os maus pessimistas pintam. os bilhetes suicidas que chegaram a sê-lo omitem os descartados e, por mais planejado que seja, o gesto de apertar o gatilho sempre deve envolver o abandonar-se a um ímpeto de momento. a cena em que alberto repreende o acting out de werther com a pistola (apenas uma brincadeira, ele diz) e ele é levado à apaixonada defesa da grandeza do suicida (raciocínio livre de preconceitos, ele diz) já sinalizava que algo dessa dança doentia com o demônio é constitutivo da autonomia subjetiva; a única saída encontrada por thomas mann — quem melhor tratou da fascinação intelectual pelo doentio tanto pela via da estetização imediata (a morte em veneza) quanto pela da crítica estética (doutor fausto) —, foi dedicar a vida ao estudo impiedoso da sua ambiguidade irredutível. o mesmo gesto pode ser retraçado, como toda negação, ao salutar gesto infantil da contrariedade, da criança que, por baixo da disciplina imposta, diz para si mesma em segredo: “vou fazer sem acreditar.” a questão é sobre o que se fará com isso: se esse gesto fundador da interioridade inviolável pela lei injusta vai se converter no verniz dos grilhões ou se ela perceberá que essa própria interioridade não é senão constituída pela relação à lei, com o que ela se dará conta de que é preciso mais um giro. é ilusório, também, achar que a chave do problema é encontrada de uma vez por todas, pois, enquanto toda desistência é igual, cada maneira de insistir é, paradoxalmente, irrepetível. no anverso da recusa direta a entregar-se está ainda o velho adiamento infinito do prazer, também ele uma forma astuta de desistir: sempre o mesmo deixar doer até se convencer de que a dor seja a própria entrega.
30/05 — ao entardecer
cansei do ficar pensando, fui à varanda, acendi o cigarro com mais um delicioso livro apocalíptico nas mãos. o relâmpago deu um sustinho, mas quase não me dei conta; veio mesmo foi com o trovão e a onda de latidos se aproximando, tudo fechando ao redor. algo para dramatizar o esgotamento, a atenção se esvaindo na falta do suporte físico. de relance: será que me enganei, ainda dá para desescolher?, ou já passou o tempo, é gafe, deixa. ser um vivo só fica mais e mais difícil.
***
já se percebeu já que um trago foi o substituto de uma ideia, cada um parcelando-as e automatizando-as até aderirem imperceptivelmente às linhas da agenda. agora, ao descolar o esparadrapo, escorre o ectoplasma. é possível que, até aqui, eu não tivesse realmente escolhido.
— de noite
“Se dirá que tenemos en uno de los ojos mucha pena y también en el otro, mucha pena y en los dos, cuando miran, mucha pena... Entonces... ¡Claro!... Entonces... ¡ni palabra!” —césar vallejo
o terceiro e último do dia, e percebo como na verdade muito fácil — claro, é sempre mais fácil dizer durante, mas é fato — o quão facilmente, feita a decisão impiedosa e seus sangramentos, se desprende algo colado tão rente. uma alma penada muito simples, flutuando na varanda depois da chuva em sua aura escura de posterioridade, não tem dificuldade de amputar mais um membro. dado o impulso de usá-lo, registra-se a cicatriz e a passa-se novamente aos pequenos afazeres e distrações, e as elucubrações que decoram os cadernos se vão se deixando funcionalizar pelo mero deixar disso e pensar em outra coisa. mesclado ao dramatizável, há sempre uma inércia sem sentido dando a liga de toda ligação, a repetição sem cheiro, sem cor, sem palavra. esse o rochedo não especularizável por baixo da vida, de cuja lenta e contínua erosão ter pena é puro sentimentalismo... ou não? ou era isso o compromisso teimoso com a essência indeterminada, firmado na prisca idade do firmamento? ou é assim mesmo que se pareceria o render-se para quem se rende? é que, à moraleja que é preciso sentenciar para dar algo por concluído, fica para sempre aderida essa poeira. enfim, que o novo sempre brote em lugar diferente do antigo é um fato a ser celebrado sem poréns; fora isso, pode-se também — deve-se — acariciar de vez em quando o cotoco da amputação para que o membro fantasma, à noite, se lembre da coceirinha nas costas do ser.
ex post
nos dias que se seguiram, algumas vezes surpreendi em mim uma espera. não era uma grande expectativa, dessas que, erguendo-se no seu encaixe com as grandes memórias, sustentam a precária linearidade da vida na qual penduro os dias. era espera de um algo prestes a ser feito, e, como um não-ato falho, eu corrigia: não, na verdade não ia fazer nada. a óbvia explicação parcial, de que isso era o vácuo do próximo cigarro, deu lugar à percepção de que era o cigarro que tinha se convertido na tampa fácil desse vácuo, que o vício apenas dava forma à sua constante sucção. apoiado por tanto tempo, eu tinha me esquecido de que a incerteza no fulcro da vida não aparece como a ausência de um fundamento logicamente bem formado, mas como essa hianciazinha que havia rente ao peito — não o grande abismo ele mesmo, talvez seu começo, do qual é qualitativamente diferente — uma solidão suavemente palpável, a gravidade não contabilizada do desequilíbrio. redescobri, por baixo da cultivada imagem de sentimento da era fundacional da minha vida, essa instabilidade com a qual, por outro lado, quem aprendeu a manejá-la inclina o torso para frente como o corredor fruíndo a iminência. "obra de presença de espírito corporal”, saber lapidado aos poucos e que não pode ser demonstrado, somente mostrado — essa a razão pela qual, tipicamente, eu o havia confundido e classificado na seção de auto-ajuda.
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paralavrar · 3 years
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por dias e dias, as grandes listas de afazeres e seus checks sucessivos industriosos convencem como pequenos elos especulativos edificando-se para cima ao espaço infinito, bloqueando a visão aqui para produzir o meandro que leva a outro bloqueio suculento, como vigas de dar solidez à massa crua do por aí.
de súbito, senti uma tonteira, uma secura na boca, tive de me deitar; e então me deitar. e vem a tarde com suas carícias de mau-agouro, e me viro, despertando sob a janela. o pressentimento agridoce vai dando lugar à lenta contaminação da atenção, que vê cair uma cinza, outra cinza, outra, cadente, bruxuleando por entre a palmeira. por algum tempo resisti encarar, não pude senão acompanhar a sina delas, que, na sua admissão lânguida, faziam lúdico seu rumo ao chão escolhendo por trás ou pela frente da palma indiferente. tive preguiça e medo, ia ficando no conforto calmo do horror.
inelutavelmente, lá estava o balão, ele, o impávido losango morado, magnânimo na distribuição das suas franjas, despedindo-se arauto. não tive, perdi a força, me deixei distrair por um fragmento que se enroscava pela varanda, como que pedindo retratação, perspectivas. quando voltei os olhos, o balão já tinha me abandonado pela curva de um prédio, atrás do visível, sem precisar declarar oficialmente que incendiando as imagens de vida que puderam brotar lá na estufa úmida em que as restrições explícitas e prometedoramente temporárias puderam converter o nada cru de sempre. como se houvesse, como se a pequenez preciosa a ser achada por trás do prédio fosse mais que o ser ocultada pela esquina, e nada como esses ocultamentos, nada como algo que produza um atrás para estimular um pouco a capacidade cega da esperança — porque é desse tamanho a covardia.
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paralavrar · 3 years
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carta sobre o céu
f.,
ainda não te contei, mas na semana passada, quando nos vimos — de soslaio doído dada a treva reinante, mas ainda assim — te ocorreu me presentear um gesto. você apontou para cima e disse: “olha esse degradê perfeito”, e na hora eu não dei muita bola. foi só quando já nos distanciávamos que me ocorreu redescobrir o céu, que lá estava. eu tinha esquecido que esse degradê perfeito não veio ao mundo na forma das suavidades padronizadas dos designs de celular e de redes sociais, que costumam converter tudo o que poderia ser raro e delicado em um aperitivo banal para vistas mortificadas, equivalente visual da música de elevador. nenhum publicitário faria limer com suas palavras em inglês e seu conhecimento de wikipedia sobre o verbete 'minimalismo' teria tido a ideia daquele degradê entre o violeta profundo e o amarelo claro. eu sei que ele não teria essa ideia, e você saberá melhor que eu, porque nos foi dada essa sensibilidade que, depois de ser escancarada em momentos cruciais pelo sublime, involuntariamente distingue e absorve, por trás da beleza fabricada, as regras não explicitadas de tudo aquilo que esse publicitário dentro de nós chamaria de "uma certa estética" — expressão que já empacota e põe a etiqueta de preço. eu sei porque, veja o absurdo, quando vi o degradê entre o violeta e o amarelo, percebi que, no fundo da mente, esse esquematismo opaco do gosto que parasita a alma emitia um julgamento: 'seria um background de mal gosto'.
como olhar o céu depois de os olhos terem sido treinados incontáveis vezes pelo pastiche de wes anderson dos anúncios da 'moderninha' do pagseguro no youtube? interminavelmente sozinho, resolvi parar para conversar com esse pensamento-lombriga. conclui que a reclamação era de que faltava ao esquema de cores essa sensualidade barata a ser encontrada num uso torpe do vermelho, aquela mesma que eu encontrei esses dias no 'body double' do brian de palma — um diretor que eu odeio —, um vermelhão que, no entanto, tive que confessar que era o mesmo de almodóvar — a quem não resisto, a quem eu me rendo todas as vezes. talvez em um momento de menor sinceridade eu me desresponsabilizasse dessa fraqueza alegando socialismo, “o sangue dos povos", etc. — na realidade, eram mesmo as belas e longas cortinas vermelhas atrás de stalin (ou seria hitler? ou seria agent cooper?). mas a real é que sei muito bem do que se trata: isso emana lá nos fundilhos das fases fundacionais da vida, onde o que acabou efetivamente brotando nunca realmente destrói o germe da originariedade, e de onde é impossível expurgar o estoque de paixões desorientantes, que acabaram se ligando, por outro lado, a centenas de fotografias desesquecidas do tumblr e a videoclipes pseudo-oitentistas cínicos — como aquele do sempre irresistivelmente degradado ariel pink, que, não à toa, terminou na invasão ao capitólio.
é esse mesmo impacto sensorial barato e repisado que no entanto parece guardar um grão mínimo de um algo basal cuja indeterminação é tão poderosa quanto perigosa que outro dia eu me dei conta que busco em tantas canecas de café e cigarros por dia. mas, não houve?, deve ter havido um momento em que um cigarro e um café compunham uma cena minúscula em que a solidão e o sentido ressoavam mútuos e agudos um com o outro sonhando para frente. é preciso distinguir, da pós-ironia do bonitinho macerado, aquela nostalgia apontada para a névoa que nos abateu simultaneamente, há anos, quando ainda tinha pouco tempo que dela tínhamos emergido, e nos manterá juntos, mesmo à distância. com ela eu busco sempre me comunicar, ainda que por um fio, extirpando o parasita e reencontrando o enraizamento da radicalidade, essa pulsação do seu corpo no meu corpo na direção de algo. duas vezes essa semana eu quis te mandar fotos do céu só para lembrar que a câmera do meu celular é horrenda e que não seria possível transmitir a você as cores ou, de modo algum, a presença das cenas. foram duas paisagens bastante diferentes. a primeira era dos primeiros despontares do amanhecer, era composta de um céu de nuvens não muito densas, mas distribuídas por todo o plano; olhando com paciência, se distinguia o fundo azul marinho dessa gaze que se estendia tranquila e pontuada de rosa; mas à primeira vista a composição fazia um violeta débil, quase resignado, mas pleno dessa saudade não derrotada de uma felicidade adquirida com machucados e ainda se impulsionando flutuante.
admito que mais acima eu usei a palavra "raro" pra falar dessa ex-beleza destruída pela distribuição em massa, e é verdade que é difícil salvar o lugar dessas coisas sem recorrer a um vocabulário um pouco proibitivo e aristocrata. mas não se trata aí do VIP, do proibido para a ralé, ou até mesmo daquela figura mais próxima a nós: o 'cool'. não se trata dessa constante ansiedade vinda da crença contagiosa de que, apesar da completa inanição cultural que nos tomou de assalto, há sempre algo acontecendo na próxima esquina, a que você não está. já concluí, e acredito que você também, que, por trás de todas as barreiras de contenção que prometem finalmente uma vida a ser vivida, se acham mais papos vazios e designs toscos de iphone; e que a vida verdadeira não assume a forma de um algo ali na esquina que você está perdendo. a direção que as cores do céu nos lembram não é aquela da 'colorful personality' do publicitário já mencionado, do qual conhecemos tantos exemplares profissionais e não profissionais e cuja descrição impagável dada pelo meu amado adorno me veio agora: "As individualidades importadas da América, que pela importação deixam de ser individuais, são chamadas de colorful personality. Seu temperamento agitado e desinibido, suas ágeis idéias, sua 'originalidade', mesmo quando consiste em especial feiura, mesmo sua fala carregada amesquinham o humano como traje de palhaço."
da névoa originária da sede de vida, não se pode demandar que emerja um objeto claro e distinto, nem uma pessoa clara e distinta; ao contrário, é nos objetos e nas pessoas claras e distintas que se deve procurar onde se esconde a névoa originária. mas parece que as pessoas se dão conta disso muito tarde; o que me lembra que ainda não falei do segundo céu não fotografado. foi ao fim da tarde, e esse, ao contrário do primeiro, era assustador porque exuberante, quase intrusivo; me dei conta num pulo do abóbora trágico que contrastava fortemente com a palidez asséptica e morosa do meu quarto e me senti convocado, fui até a varanda, como se estivesse assistindo, daqui da minha reclusão confortável, a um pedido de socorro ou ao anúncio de um crime exposto ao silêncio de todos. desde o início do caos, eu me perguntei se alguma ficha ainda estava para cair — sabe quando o senso de catástrofe tão pulsantemente familiar enfim inexiste em uma situação gritantemente inadequada, e você fica na dúvida sobre se é auto-engano ou se de fato chegou a saciedade? e parece que, sim, algo estalou essa semana; não o senso de catástrofe, mas o sopro de uma saudade ativa ligada aos sentidos, ligada ao resvalar de paisagens opacas, à matéria, à pele. e ela não é só um éter juvenil e inútil e ela não desemboca inexoravelmente na mediocridade ou no pior que agora nos ameaça. ao contrário, ela é a última que morre, como se diz corretamente. no fim das contas, não precisamos parar de ouvir ariel pink, e até é preciso conceder algo ao vermelhão torpe. contudo, ali, naquele degradê não-sexy do céu na ponta do seu dedo, se pronunciou muito mais cortante a sensualidade da pergunta fundamental. a aristocracia silenciosa daquele violetamarelo alojado entre os prédios era repleta de camadas sutis de vidas passadas e presentes que é preciso saber descamar, e que estão lá, acessíveis a todos, mas cuja delicadeza só se mostra a quem está atento e tem, como nós, alguma sorte. não há nenhuma escassez de coisas assim no mundo para que cada uma delas precise de propaganda, pois é uma mesma tensão de partilha comum que se acha em cada uma delas. não é verdade que, sem anúncio na internet, nós nos encontramos na rua?
com saudades, b.
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paralavrar · 3 years
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até pensei em cantar na televisão
O efeito mais visível dos traços aristocráticos do capitalismo brasileiro é o oligopólio da televisão. Dez minutos passando pelos canais abertos convencem de que there is no alternative. No entanto, às vezes o arbítrio baronal permite que caprichos aberrantes de playboys herdeiros, nivelados instantaneamente pela igualmente injusta justiça de mercado, dessem lugar a algo mais. Em seus vinte e poucos anos de existência, a MTV Brasil, que começou como brinquedinho do filho menor de Roberto Civita, não resultou em nada para o poderoso Grupo Abril além das perdas financeiras que o levaram à bancarrota — o último mérito do canal. De qualquer modo, enquanto incubava o fascismo com a publicação da revista Veja, o dinheiro Civita também foi responsável pela única vez em que houve algo como televisão radical no país. O paradoxo não é acidental. A MTV Brasil foi, efetivamente, a última tentativa de retomar nossa versão tropical do popular modernism, como dizia Mark Fisher, que, já nos anos 60 e antes dos ingleses, havia alcançado qualidade superior e audiência de massa, mas que foi massacrada pelos militares. Contudo, junto às retomadas da redemocratização, retorna o mesmo impasse. Bem ao gosto de Caetano Veloso — que presenteou a emissora com o insulto que, caetanizado, foi convertido em slogan — a história do canal deve ser vista como uma alegoria da República de 88.
Tomando o melhor da versão gringa, a linguagem já fragmentária dos videoclipes — cuja função original, é claro, era apenas a de captar o ouvinte com quantidade maior de estímulos — era intensificada até mudar de sinal pelas vinhetas e produções visualmente toscas que misturavam animação surrealista e edição mutiladora até que todo sentido colapsasse. Algo como um F for Fake para as massas. Então, enquanto essa loucura seguia no fundo de chroma-key de baixa qualidade, os ‘video jockeys’ introduziam a última canção do Nação Zumbi ou do Sonic Youth com amplo conhecimento de fã, pouco roteiro e alguns palavrões. Antes da internet, o alto preço do disco era proibitivo inclusive para a classe média; além de uma ou outra boa estação de rádio, a transmissão de música e de informação sobre o mundo musical internacional se restringia aos deprimentes videoclipes do Fantástico. De uma vez, o rock gótico ou o rap nova-iorquino, embalado na bizarrice agressiva de uns jovens malucos, ameaçava a sala de estar da família brasileira.
Não conheço no mundo outra emissora aberta e de alcance nacional que tenha chegado tão perto do ideal de uma anti-televisão. Enquanto as autocaricaturas de sempre apresentavam os programas de auditório de fim de semana, Luiz Thunderbird rodava uma boneca sexual contra a pélvis e gritava com sua dicção retorcida: “Nada presta na televisão brasileira! É tudo lixo disfarçado! Só eu tenho o autêntico lixo!”, ao que o anúncio de Contos de Thunder, programa de filmes trash independentes, rematava: “Filmes escrotos em péssima companhia. Você não vai ver a hora de terminar!” Um dos ápices da corrosão foi o momento em que, nas horas de maior audiência, uma vinheta exclamava: “Tédio. Falta de criatividade. Confusão. Burrice. Conformismo. Desliga a televisão e vá ler um livro!”, e a última frase ficava estampada na tela acompanhada por um barulho infernal por não menos que quinze minutos, pois não era só uma piada. E em vez de a parodização total degenerar em autocontentamento cínico, como é costume entre os americanos, não raro a negatividade era reconduzida a discussões que, na época e ainda mais hoje, são estritamente proibidas na televisão. Além das arrojadas campañas de informação sobre a AIDS e os conselhos sexuais meticulosamente obscenos de Penélope Nova, o Barraco MTV introduzia, com uma canção dos Minutemen, discussões barulhentas e caóticas sobre o movimento estudantil, a inutilidade do exército brasileiro, e depois, renomeado de MTV Debate, a legalização das drogas e do aborto.
Este programa passou a ser apresentado por Lobão, que em 89 tinha sido banido da Globo por pedir votos para Lula ao vivo. Mas já era o único programa crítico e disruptivo do canal, que, em meados dos anos 2000, enquanto a esquerda eliminava os últimos vestígios de aspirações radicais, também começou a moderar-se e a apostar em reality shows e boy bands insuportáveis. Pelo que se sabe, o Civita menor amadureceu e percebeu o rombo no orçamento. Como era previsível, além de a capitulação não conquistar público novo, resultou na debandada dos fiéis. Logo começaram os boatos sobre o fim da emissora, que participava do crescente mal estar nacional. Coincidiram com a repentina conversão à extrema direita do Lobão, que publicou um manifesto fascista dois meses antes dos protestos massivos que colocaram a nação em uma encruzilhada histórica em 2013. Em setembro do mesmo ano, quando as massas já caminhavam em direção ao pior, acabou a MTV Brasil.
No entanto, quando a morte foi anunciada, os diretores criativos decidiram chutar o balde e fazer um giro para a programação mais radical da história da MTV. Clipes experimentais de oito minutos, notícias da cena alternativa internacional e especiais sobre bandas cult dividiam espaço com os programas de comédia absurdista ao estilo do antigo Hermes e Renato. Mesmo que não tenha resultado em recuperação financeira, produziram momentos memoráveis para uma nova geração — como o último dia de transmissão, em que tomou conta do prédio da emissora uma festa alucinada que contou com invasão de uma multidão fans, tentativa fracassada de interrupção pelos bombeiros e a trindade sexo, drogas & rock ‘n’ roll. “Os piores sempre vencem porque os bons desistem antes”, declarou ao vivo um festeiro, aparentemente sem contexto.
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paralavrar · 4 years
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o cisne (baudelaire)
I
Andrômaca, só penso em ti! esse fio d'água, pobre e triste espelho onde antes resplendia a imensa majestade de tuas dores de viúva, esse Simeonte mendaz que aflora de teu pranto, fecundou-me de repente a memória fértil, quando eu cruzava o novo carrossel. a velha Paris já não é (a forma duma cidade muda mais rápido, oh, que o coração de um mortal); só no espírito vejo esse campo de tendas, pilhas de colunas de esboço indeciso e barris, a relva, os pedregulhos com musgos nas fendas, e, brilhando no azulejo, a miscelânea confusa. ali havia um circo ambulante; ali eu vi, uma manhã, na hora em que sob o céu frio e claro o Trabalho desperta, em que a poeira levanta um sombrio torvelinho no ar silencioso, um cisne que havia escapado da gaiola e, com suas patas roçando na laje áspera, sob o sol grosseiro arrastava sua plumagem branca. Junto a um córrego seco, a besta abrindo o bico, Banhava aflita suas asas no pó, e dizia, com seu belo lago natal no coração: "agua, quando choverás? quando soarás, trovão?" eu vejo esse infeliz, mito estranho e fatal, ao céu, às vezes, como o homem de Ovídio, ao céu irônica e cruelmente azul, com seu pescoço convulso esticar sua cabeça ávida, como se lançasse uma reprimenda a Deus!
II
Paris muda! mas nada na minha melancolia mudou! novos palácios, andaimes, lajedos, velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria, e minhas queridas lembranças pesam mais que pedras. também diante do Louvre uma imagem me oprime: penso em meu grande cisne, com seus gestos loucos, como um exilado, ridículo e sublime, e roído de um desejo sem trégua! e logo em ti, Andrômaca, arrancada dos braços de um grande homem, gado vil na mão do soberbo Pirro, aos pés de uma tumba curvada em êxtase; viuva de Heitor, oh! e mulher de Heleno! penso nessa negra, mirrada e enferma, pés na lama, procurando, com o olhar febril, os coqueirais ausentes da soberba África por trás da muralha imensa do nevoeiro; em todo aquele que perdeu o que não se recupera nunca mais, nunca mais! nos que mamam da Dor e das lágrimas bebem como loba voraz! nos magros órfãos, que definham como flores! assim, na floresta onde meu espírito se exila, uma velha lembrança ressoa plena como o sopro da trompa! eu penso nos marujos esquecidos numa ilha, nos cativos, nos vencidos!... e em outros mais!
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paralavrar · 4 years
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a janela me informa, às seis da manhã, que já não é mais possível dormir. o tempo está fechado. o céu nublado às seis da manhã já não têm a extensão elusiva dos momentos intersticiais às quatro da manhã e da tarde, mas também não tem nenhuma clareza. são imagem da expectativa e da apreensão. primeiro foi a fernanda, que me repreendeu duramente porque eu chorei e eu não podia ter chorado. o risco constante de que algo iria, poderia, deveria acontecer sob os céus eternamente nublados e a palmeira gigantesca e acinzentada que agora me vigia à direita da janela e gargareja sob a nuca do sonho. e sentar molhado sob qualquer parca proteção da chuva, como se resgatado, como se na pausa de uma desventura; a vida como os vetores do movimento de ataque contra uma massa na qual se houvessem gatos nem tudo seria assim tão cinza. a vida como o guarda chuva de quadrinhos americanos em preto e branco da minha tia americana que vestia um blazer preto quando na infância me levaram a um restaurante muito chique e isolado numa autoestrada em meio a uma tempestade. o tempo fechado é também o alívio de quem acaba de chorar.
***
para que seja possível uma atenção proustiana ou até uma poetagem belmiriana descompromissada, é preciso um mínimo de disciplina. é preciso que o mundo seja rígido o suficiente pra escorrermos viscosos pelos seus ângulos. destrói a capacidade de se ater e de se desprender quem se deixa rasgar constantemente por ambos impulsos contrários. destrói a poesia quem sorve violentamente a clausura de um céu nublado que nada diz empurrando um café e um cigarro enjoativos para uma cena forçada, encenação de solidão controlada seguida de ânsia de vômito. se negando a dormir, dois nervos apontam para metas nebulosas apenas para que um tropece em uma obrigação mais urgente e o núcleo duro do momento presente se concentre pelas tensões espedaçantes.
***
quando pequeno, eu deitava a cabeça rente ao canto da parede na qual a cama se encostava. naquele mínimo espaço eu me imaginava minúsculo, percorrendo a pequena imensidão. só ali.
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paralavrar · 4 years
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escuridão (byron)
eu tive um sonho, que em nada era sonho. o sol claro se extinguiu, e as estrelas erravam escuras pelo espaço eterno, sem raio, sem rumo, e a terra gélida rolava cega enegrecendo no ar sem lua; veio e foi-se a manhã — e veio, sem trazer dia, e os homens esqueceram suas paixões no horror desta desolação sua; e os corações estremeceram mesquinhos rogando por luz: e eles acenderam faróis — e os tronos, os palácios de reis coroados — as cabanas, as habitações de toda coisa que mora, eles queimaram por feixes; cidades consumiam-se e eles congregavam-se em seus lares ígneos para ver outra vez o rosto um do outro; feliz quem morava dentro do olho de um vulcão, e sua tocha montanhosa: pávida expectativa era o que tinha todo o mundo; florestas ardentes — que hora a hora esvaneciam — troncos crepitantes que extinguiam-se com estrondo — tudo era negror. à luz agonizante, os cenhos dos homens pareciam de outro mundo ao baixarem sobre eles clarões espasmódicos; alguns se prostravam, cobriam os olhos e choravam; alguns até pousavam os queixos sobre as mãos cerradas, e sorriam; e outros lançavam-se cá e lá, combustível para piras funerais, e levantavam os olhos loucos e irrequietos ao céu turvo, o manto do mundo findo; e outra vez maldições os derrubavam no pó e eles rangiam dentes, ululavam; pássaros guinchavam e, com terror, voejavam pelo chão, e batiam asas inúteis; os brutos mais ferozes vinham mansos e trêmulos; e víboras rastejavam e enrolavam-se na profusão, sibilando sem presas — abatidas e devoradas. e a Guerra, que em um momento já não era, fartou-se novamente: refeições compravam-se com sangue, e cada um saciava-se soturno à parte empanturrando-se no breu: não restava amor; toda a terra era uma ideia —  que era morte imediata e inglória; e a fisgada da fome roia as entranhas  — gente morta, sua carne e ossos insepultos; os tíbios pelos tíbios devorados, até os mestres pelos seus cães, exceto um, que foi fiel a um corpo, mantendo as aves e animais e gente esfomeada longe, até a fome agarrá-los ou desfalecentes achegarem magras mandíbulas; abnegava-se comida mas com penoso e perpétuo ganido, e, num breve e desolado gemido, lambendo a mão que não respondia carinhos — ele tinha morrido. a turba esfomeava-se aos poucos; mas dois de uma enorme cidade sobreviveram e eram rivais: depararam-se ao lado das brasas mirradas de um altar onde os escombros de uma missa sagrada tiveram profano uso; eles rasparam, arrepiando as mãos frias e esqueléticas, as cinzas débeis, e seu débil fôlego soprou vida pouca a uma chama que era um escárnio; então ao clarear levantaram os olhos e atinaram seus semblantes — viram, guincharam e morreram — a par de sua mútua hediondez morreram, sem saber quem era este em cujo cenho a escassez escrevera estranhez. o mundo ficou oco, populoso e poderoso, era um caroço, sem era, sem erva, sem lenho, sem homem, sem vida — caroço morto — um caos de barro duro. rios, lagos e mares, todos inertes sem nada a atiçar de suas fossas silentes; naus sem marujo jazem podres no mar, e seus mastros desabaram lentamente: caíram dormidos no abismo para não ressurgir — as vagas morreram; as marés estavam na cova, a lua, sua senhora, já havia expirado; os ventos mirraram no ar estagnado, e as nuvens pereceram; a Escuridão dispensava sua ajuda — Ela era o Universo.
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paralavrar · 4 years
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vaneios
desde que os eventos determinados foram suspensos e sua significação sem forma é encenada somente nas cores do céu, as impressões se tornaram sentimento direto da passagem do tempo e sua viscosidade. todos os encontros passaram a ser, primariamente, encontros com um espelho, e a disciplina antes exigida pelo dar-se a ver perdeu o mistério da visão em primeira pessoa, sua geometria multifacetada se reduziu a um plano de planejamento tedioso. o período do trabalho, o período do lazer e o período do sonho não tem mais demarcações de local e se dissolvem em um aposento que se comporta como console imediato do corpo. mas, se o mundo é a extensão do braço, não há braço e não há mundo, o espaço foi abolido, e a praticidade do alcançar já não dissimula o caráter inventado do corpo. também a consciência, por sua vez, já não merece esse nome, a atenção esmaecida não ordena o que é imagem, raciocínio, intenção. não tem razão de ser as suas delimitações, exercidas pela moralidade, pela vergonha e pelo nojo. estes critérios viraram, junto com todo o resto, uma coisa só.
do sumo de indistinção que flui intranquilo, emergia uma ideia bela que se esforça pela especificidade; era um alguém. tinha havido conversas, ideais. ele era desejado. mas acontecia, pelas costas, algo da ordem de uma exibição depravada, algo que feria os critérios mesclados. então, um encontro inesperado e um olhar cheio de explicações. por fim, uma entrega mútua com os tons de culpa ardorosa da audácia.
mas não foi, não houve, não aconteceu. embora esteja atestado o valor único no seu desenho inespecífico, essa graça não pôde ser salva da frustração. esse furinho é um ralo sorvendo o tempo.
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paralavrar · 4 years
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as bolsas para ciências humanas são mesmo inúteis
sempre que o governo corta verba da pesquisa pública, nós das ciências humanas deixamos a comissão de frente para os institutos das ciências exatas e naturais desfilarem os resultados espetaculares que produzem: máquinas, medicamentos, coisas profundamente úteis para todos e, por isso, obviamente muito importantes. nós ficamos orgulhosos, com razão, da nossa universidade e do brasil, mas nos damos o direito de ficar atrás tocando o pandeirinho.
pois bem, agora outra vez o corte das bolsas de iniciação científica cai apenas sobre nós e ficamos desorientados. alguns tentam se defender com os resultados frágeis das ciências humanas, geralmente das áreas mais práticas. não aprendemos a responder outra coisa contra a 'austeridade', que diz que o dinheiro está escasso e que somos um despesa supérflua, senão que pensar é tão básico como a fome — mesmo quando os 'austeros' em questão são glutões asquerosamente escandalosos da estirpe de paulo guedes e do veio da havan. mas é evidente que uma pessoa precisa estar de barriga cheia para depois poder pensar.
não deveria ser uma novidade que os filósofos morais não constroem prédios nem os historiadores da arte curam câncer. o essencial das nossas pesquisas não é produzir coisas úteis, e se até nós mesmos sentimos vergonha desse fato, se nós mesmos não sabemos nossa razão de ser num mundo de resultados práticos, luminosos e imediatos, então paulo guedes está certo e devemos converter as faculdades de letras em fábricas imediatamente.
mas antes disso, podemos fazer um pedido. confira o extrato do cartão de crédito desses empresários que foram à mídia dizer que é um luxo fazer quarentena. tenha certeza que a maioria dos gastos dele é luxo, a diferença entre útil e supérfluo é, para ele, ela mesma supérflua. acontece que a suposta necessidade de separar o útil do supérfluo é a mentira que mantém os explorados brigando entre si pelas migalhas que caem da prataria. enquanto isso, os rios de riquezas do brasil, que é um país imensamente rico que tem a oferecer a todos, continuam em vez disso fluindo para o capital. ora, já dissemos por que as ciências humanas são importantes sem serem úteis: para entender por que, em meio à abundância, nós aceitamos viver de migalhas úteis.
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paralavrar · 4 years
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tenho uma sugestão para a assim chamada mídia alternativa: criar um dispositivo de gerar falas do lula automaticamente, na mesma linha do gerador de lero-lero: o Gerador de Lulices™. o algoritmo teria que dar conta de articular três temas em recorrência cíclica e infinita: 1. como eu sou uma figura histórica importante (premiações internacionais, fofocas sobre líderes mundiais, etc); 2. como a miséria absoluta não é assim tããão legal (variações de “temos que incluir os pobres no orçamento”); 3. como eu sou muito do povo (referências jocosas, tipo falar de bar ou futebol, ou histórias tristes pessoais).
o resultado seria alguma coisa como: “na época da guerra do iraque, o jorge bush me ligou, queria que o brasil participasse daquilo. eu lembrei quando a gente era criança, não tinha comida na mesa e via a televisão só falando de guerra. eu disse pro bush: companheiro, a minha guerra é contra a fome.” o algoritmo deveria evitar resultados do tipo: “com o aumento do salário mínimo foi possível o nelson mandela me chamar para uma cachacinha.” mas não é preciso se preocupar muito com erros, pois seria difícil a máquina alcançar a exuberância criativa que os delírios megalomaníacos do próprio lula alcançam. como ontem quando, falando da páscoa, ele articulou os três temas numa tacada se comparando sem pudores com JESUS CRISTO.
se juntar o Gerador de Lulices™ ao mecanismo da voz do lula no waze, os lulistas acríticos poderiam se retirar de uma vez e de fato se entregar 24/7 a esse imenso prazer que é "ouvi-lo". aí, talvez, sobraria tempo pra chamar o lula pra alguma coisa que se pudesse chamar de debate.
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paralavrar · 4 years
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não consigo pensar condição mais basal que a de uma sede de conversa; e para destacá-la da paisagem da sensibilidade quis escrever marasmo, mas o que se escreveu foi masmorra. se revelou abruptamente o quão mais enredado o sedento está naquilo de que pretende libertar-se, seu engano escorrendo o curso das palavras para secá-las mais embaixo. é da natureza esterilizante da sede sorver até destroçar o bagaço, como uma gota que ao tocar a aridez some sem deixar rastros. é curioso que freud tenha tomado justamente essa imagem, a da sublimação, para dizer daquilo que se permite não extinguir aqui e agora; o que não deixa de criticar a solidez como única imagem possível da perenidade: a próxima palavra como nuvem elusiva onde reimergir-se depois. mas aqui se trata de uma secura que não preserva o mistério na rarefação, de um ato de avidez que, se vingando do otimismo sorrateiramente idealista de lavosier, antepõe ao úmido o seco e anula até mesmo sua ausência; que decreta: a partir de agora, nunca foi possível. abobado pelo ritmo das estações, o pensamento tem uma grande dificuldade de levar isso a sério e posiciona toda esterilidade como obstáculo para o florescimento garantido desde o princípio. qualquer ensaio de boca só começa realmente a falar com a consideração da possibilidade de que, por causa da fala, o oblívio resulte primaz.
e, assumindo esse risco, é imperativo que a boca persiga a orientação inexorável a molhar-se. assoladas as gengivas até o fundo do esôfago, a ponta da língua ressecada sonha estar boiando no mar junto a alguém e lança adiante o último pingo.
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paralavrar · 4 years
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cem anos depois, o lema do fascismo espanhol foi ouvido outra vez, dessa vez no país certo. “viva a morte!”, a deixa foi dada pelos neoliberais anunciando o nome da verdadeira liberdade na sala de estar de todos os brasileiros. e nós inundaremos as ruas dando abraços de morte e beijos de morte num festim de morte ritmado pela inexorável máquina de liberdade que os nazistas chamavam trabalho. é que os velhos são com isso celebrados, celebrados por nos lembrarem de que a morte é certa e de que, seja como for, é sempre possível esquecer toda uma vida, toda uma história. e todos contribuiremos para um monumento a essa graça na forma de massas de corpos vazando das janelas dos hospitais e cargas de caminhão. abraçaremos os cadáveres com asco extático, chorando de alegria, ávidos por participar. o muco humano, quando espalhado por todo o território, pesará o chão, e o ponto mais baixo da mórbida depressão geográfica será o espelho perfeito para o crescimento dos gráficos da bolsa, que se erguerão por si próprios ao norte como torres colossais na medida proporcional do abismo, esgarçando até romper a linha do equador. e então, na paz final do necrotério continental, terá acabado toda a ideologia, toda a vagabundagem, toda a mamata, todos estarão igualmente corrompidos em podridão, e, à sua maneira, poderão contemplar com orgulho no céu estrelado a ordem e o progresso realizados. a obra brasileira estará completa.
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paralavrar · 4 years
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a quarentena já foi decretada há anos não sei quando eu descobri em 2012 quando eu saí a procura podia ser de um bar talvez, um que fosse lustroso como uma suposição e no canto descascado da rua não havia convite ou recusa só achei lacan, e um canal de esgoto só o mesmo canal de esgoto todo dia por anos a fio onde à noite eu ainda chafurdo nu e bobo.
no século XIX o dandy byron se dividiu para o público entre seus poemas e sua dieta.
não há debate, não há nada a ser respondido entre 220 milhões de pessoas que são contadas incansavelmente e giram em falso ao modo dos milhões de loops de cinco segundos em 144p que berram e despertam brutalmente as coisas inanimadas e procuram , como sempre procuraram, procuram , como nunca antes na historia desse etc, procuram inflar o espírito magro de suposições lustrosas e para dizer isso ficou a palavra conteúdo e o conteúdo bota dentro de mim e bota dentro de mim e bota que nem um ventilador até eu ficar cheinho de luzes bruscas e de tesão triste bem empanturrado a pele esticada plana separando o ar com virus, o ar sem virus, serão cada vez menos milhões a contar.
alguém catou a rua pelo canto com a unha e arrancou tudo depois botou papel contact.
hoje eu encontrei meu amigo no portão um pouco para poder ser 'empolado', diria o dandy proust, é o que me restou, mas senti estreitar a fronteira do mundo a pressão contra o chão estufando como que fazendo uma barriga no asfalto fechando pela beirada da minha pequena e delicada rua na qual em 2012 eu poderia ter procurado suposições lustrosas antes de ela ser pisoteada em 2013 pisoteada em 2014 pisoteada em 2015 pisoteada em 2017 pisoteada em 2018 pisoteada em 2019 e será de novo para acabar com toda barriga até a esfera ficar plana.
mas atrás da upa tinha uma loja de discos vazia numa galeria vazia onde um dia foi um cinema vazio e no subsolo, tinha uma porta que dava a um minúsculo espaço aberto para o céu entre paredes rochosas de musgo e ladrilhos coloridos. era porque ninguém nunca foi até lá.
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paralavrar · 4 years
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no arquivo, o escrivão estava com tesão e os gatos lá fora miavam da sua cara. no tempo do rei, era o meirinho seu avó, que recorreu ao preto sujo e nu dançando em círculos tentando pensar que era a escada do condomínio ou um dos processos, coitado. as putas risonhas roçavam nos postes da cidade nova e ele chorava ereto até ser promovido a juiz. aí esmagou uma a uma sob o prédio da prefeitura. o concreto ainda quente por séculos jogava badminton com seus corpos sujos e nus, e elas tiveram que lamber as feridas até miarem. finalmente, o escrivão chegou a juiz da 13ª vara e, no julgamento final, após enumerar as leis e enumerar as leis e enumerar as leis e enumerar até ser TOMADO, "apoplexo, sua excelência saltou em meio ao juri" e foi roçar no rodapé do tribunal, coitado. todos correram menos o gato sujo e nu.
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paralavrar · 4 years
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escolher contra a vida
camus está certo ao defender que não há como argumentar que escolher viver é melhor que escolher não viver, que essa é uma escolha absoluta. o que lhe escapa é que essa questão é totalmente diferente da questão sobre se é melhor para um indivíduo escolher ou não o suicídio. embora a era neoliberal se esforce por reduzir a vida a fórmulas bioquímicas e esquemas cognitivos facilmente manipuláveis e obliteráveis, com o triplo benefício de modelar a força de trabalho enquanto pode com isso vender-lhe soma ou genocidá-la, seu fracasso em dominá-la vem à tona nas exigências cada vez mais custosas que os suicídios cobram, geralmente nos lugares de maior atividade desse dispositivo de contenção da vida, com imolações, massacres e bombardeios em shopping centers, escolas e supermercados. tais eventos e a infinita exposição e circulação que eles ganham nos meios de comunicação deixam óbvio que aquele que se mata continua vivendo; e vive em situação muito pior. entre os que escolhem o suicídio, há o que diz não suportar mais ser si mesmo e coloca em si mesmo a razão do seu suicídio; com isso, admite que o suicídio é uma maneira de desistir de mudar, logo, de permanecer sendo o que é e abomina. um outro, mais astuto, poderia objetar dizendo que seu problema não é o que ele mesmo é, mas como são as coisas ao seu redor, as pessoas com quem convive, por fim, tudo que experiencia. ele diz que gostaria de ter a escolha de, ao mesmo tempo, deixar de experienciar a vida e preservar a si mesmo, mas que a ele não é dada essa escolha e, assim, que prefere a aniquilação de si a continuar experienciando-a. de fato, nisso ele seria bem sucedido se escolhesse o suicídio; no entanto, apesar de já ter confessado que sua existência tem com ela relações inquebráveis, o suicida persiste imaginando que o suicídio o liberta desfazendo-as. essa imagem romântica da morte como escape cai por terra se nos ativermos ao fato dessa ligação inescapável. comer uma torrada, ser acometido de ideias intrusivas, ler um romance, topar o dedinho numa quina, ser rejeitado pelo amado — enfim, experienciar a vida é essencialmente experienciar os afetos que o mundo provoca em si mesmo e as reações desse si a isso, portanto, experienciar o que o si mesmo é como coisa que afeta e é afetada. não há um si mesmo individual mais fundamental, mais interior, mais essencial do que o que participa de relações e reage a elas. quando o suicida adere separa na imaginação, de um lado, o que experiencia e, de outro, si mesmo, ele adere ao pior cristianismo, porque o que está efetivamente separando são os vínculos que o definem e a capacidade transformá-los; então, escolhe aniquilar essa última. inversamente ao que ele havia dito, também ele se suicida para continuar a vida que lhe é miserável. o romântico sem dúvida dirá que essa é apenas uma opinião cruel, um preconceito que mata mais uma vez um indivíduo cujo ato final não resume toda sua 'vida interior' — esse oxímoro. é muito difícil abrir mão da ilusão da interioridade individual absolutamente apartada do mundo, principalmente para aqueles cuja imaginação de tal interioridade é a única barreira que os afasta de experimentar o horror permanente. no entanto, os que não quiseram existir continuarão existindo, suas vidas continuarão produzindo efeitos; como todos os outros mortos, eles não estarão a salvo, mas terão assinalado contra a vida. para que uma única pessoa deixasse de viver, tudo deveria acabar; não apenas a vida inteligente ou mesmo a orgânica, mas todas as coisas e seus nexos teriam de ser reduzidos à atomização generalizada com o desaparecimento dos átomos mesmos, ao nada que não é nada de nada. de fato, essa é uma tendência que pulsa nas leis da termodinâmica como nas da psique, e é nesse plano que se justifica e no qual podemos encontrar o sentido real da problemática de camus: o capital, este triturador no qual os viventes e suas relações transitórias são esmigalhados em coisas substituíveis, em átomos indiferentes a si nas suas especificidades desvanecidas, é o suicídio do mundo, para o qual o indivíduo suicida inevitavelmente presta defesa. é em opor-se a isso que consiste toda a violência atribuída à dialética pelos seus adversários, que ironicamente a consideram demasiado triste; sua única arbitrariedade é forçar o mundo a viver.
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paralavrar · 4 years
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sonhando os peitos (anne sexton)
Mãe, estranho rosto de deusa sobre meu lar leiteiro, aquela clínica delicada, eu te devorei toda. Minha carência toda derrubou você que nem refeição.
O que você deu eu lembro num sonho: os braços sardentos me atando, o riso algures sobre meu chapeu de lã, os dedos sanguíneos amarrando meu sapato, os peitos pendurados como dois morcegos e então me dardejando, me curvando.
Os peitos que eu conhecia à meia-noite pulsam como o mar em mim agora. Mãe, eu pus abelhas na boca para não comer mas não adiantou. No fim, eles deceparam seus peitos e o leite escorreu deles na mão do cirurgião e ele os abraçou. Eu os peguei dele e plantei.
Coloquei um cadeado em você, Mãe, querida humana morta, para que seus grandes sinos, aqueles queridos pôneis brancos, possam galopar, galopar, onde quer que você esteja.
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