Tumgik
fotoortografias · 27 days
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O Filho
João percorria, lentamente, os corredores do supermercado. Gostava de ser metódico nas compras. Tinha a obsessão de percorrer cada um dos corredores do estabelecimento, em busca de algum produto esquecido, de novidades ou de uma promoção inesperada. Era quase um ritual. Além disso era saudável, pois obrigava-o a andar mais, a fazer exercício, de cada vez que ia às compras.
No final do primeiro corredor, quando escolhia gelados na respetiva arca frigorífica, viu uma senhora idosa, que o olhava fixamente. Estranhou, mas como não conhecia a senhora, seguiu o seu caminho, fazendo de conta que nada se passou.
A meio do segundo corredor, enquanto escolhia e pesava a fruta, deparou novamente com a senhora a olhar para si, agora acompanhada de um homem, de idade igualmente avançada, que também o mirava com insistência.
João começou a ficar intrigado com a situação. Quem seria esta gente? Não os conhecia de lado nenhum e no entanto, olhavam-no com tanta insistência, como se fossem velhos conhecidos a quem ele tivesse obrigação de cumprimentar.
Não querendo provocar questões, voltou a ignorar os olhares e seguiu o seu caminho, como se nada tivesse ocorrido. Mas ficou atento aos movimentos do casal, intrigado e esperando alguma iniciativa da sua parte.
Voltaram a cruzar-se na padaria, e o casal de idosos, não só insistiu nos olhares, como lhe dirigiram ambos um sorriso amplo e carinhoso. Não havia dúvida, estavam a confundi-lo com alguém. Se a situação se repetisse, ele iria desfazer o equívoco. Estava a ficar incomodado com o insólito episódio.
Na fila da caixa, a senhora veio finalmente dirigir-lhe a palavra. Desculpou-se pelos olhares insistentes, mas explicou que João lhes fazia lembrar de tal forma o falecido filho, que não conseguiram tirar os olhos dele, até teve que chamar a atenção do marido, que concordou imediatamente com ela, atestando as semelhanças.
Era tal e qual o falecido filho do casal, que tinham perdido há muitos anos e de quem sentiram saudades enormes, em cada dia que viveram depois disso.
Para demonstrar as semelhanças, retirou da mala uma carteira, onde tinha uma dúzia de velhas fotografias do falecido filho, que entregou a João, para que este atestasse os motivos do espanto.
João, sensibilizado, vendo o casal de lágrima no canto do olho, prontificou-se a ver as fotos, curioso com a suposta semelhança do defunto.
Olhou com atenção os retratos e viu um bebé rechonchudo, uma criança de bata na escola, um adolescente gordito e bexiguento, a olhar contrariado para a câmara, mas não viu a mais pequena semelhança com ele, homem feito, de quarenta anos de idade, com o cabelo a ficar grisalho e a barriga a ganhar protuberância.
Sorriu e perguntou à senhora se não teria fotografias mais recentes do filho, pois aquelas eram todas da infância e da adolescência, e ele não conseguia ver a semelhança consigo, naquela idade.
A senhora lamentou-se que o filho faleceu aos quinze anos de idade. Mas que João tinha exatamente o mesmo aspeto que o filho teria, se tivesse vivido até à sua idade. Por isso ficaram tão sensibilizados ao olhar para ele.
João primeiro estranhou a resposta, mas depois sorriu e despediu-se do velho casal, com a ternura de um filho.
2 de Abril de 2024
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fotoortografias · 27 days
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Paragem de Autocarro
João seguia viagem há horas, no autocarro. O percurso parecia-lhe interminável. Lá fora, a paisagem era desoladora, o tempo estava carregado, a ameaçar chuva, e a planície, imensa, refletia a tristeza do céu, deserta, árida, moribunda.
Sentia-se só. Nada o prendia à vida, nem trabalho, nem família, nem amores. Por isso resolveu mudar, fugir, estrada fora, à descoberta de outra vida. A que tinha estava gasta, esgotada, sem rumo.
A estrada sempre o atraiu e agora mais do que nunca. O caminho é uma promessa. Nem sempre cumprida, mas enquanto houver estrada, há esperança. Fé numa vida melhor, num destino, num sentido que lhe parecia faltar, à sua existência.
A monotonia da viagem adormeceu a maioria dos passageiros. João contemplou-os, com estranheza. Rostos vazios, cansados, cinzentos. Vidas gastas, sonhos perdidos. Assim lhe parecia, no seu soturno estado de espírito. Não via crianças, nem risos, nem conversas. À sua volta só havia cansaço, suor, malas e vidas amontoadas. Aquele autocarro era a metáfora perfeita para a planura deserta da estrada. Era uma alma vazia, sem chama, sem vida.
Talvez, como ele, fugissem às agruras do passado. Talvez, como ele, buscassem um tesouro, no final do arco íris, que era aquela estrada reta, imensa, tão plena de esperança quanto vazia de almas.
Ou talvez fosse apenas gente cansada, sem expetativas, sem vida. Numa rotina rodoviária, feita de percursos monótonos, de caminhos de cor e salteado, de caixeiros viajantes, a sobreviver ao tédio de mais um dia na estrada, na existência, sem ninguém à sua espera, nem num lado, nem no outro do itinerário.
Enquanto imaginava os dramas de cada um dos passageiros, João esquecia os seus próprios. A solidão, o desemprego, o desejo de um reinício, no final daquele percurso, longe da vida passada. Uma promessa de trabalho, um salto no vazio, de quem nada mais tem a perder.
Mas a paisagem deserta e a monotonia da viagem deprimiam-no. Faziam-no duvidar da sensatez da escolha, temer o destino que por ele esperava, no final da viagem.
Foi quando, inesperadamente, o autocarro parou. No meio do nada, no escuro da noite, debaixo de um céu carregado.
Alguns passageiros, como por reflexo, começaram a levantar-se, a espreguiçarem-se, a vestir casacos e a dirigirem-se à saída.
João olhou pela janela e não viu nada, lá fora, mas resolveu imitá-los, nem que fosse apenas para desentorpecer as pernas, depois de tanto tempo sentado, no tédio da viagem.
Desceu as escadas do autocarro e reparou que os passageiros se dirigiam para uma pequena cabana de madeira, um pouco adiante, com as luzes acesas e fumo a sair de uma chaminé de pedra. Era o único sinal de vida, numa paisagem, de resto, desoladora, erma e sombria.
Seguiu-os, confiante. Talvez ali estivesse mais confortável. Como lhe saberia bem um café quente, naquela altura da viagem e da sua vida!
Era uma cabana simples, mas acolhedora, com uma lareira acesa, onde se aconchegaram vários passageiros. À volta, meia dúzia de mesas, desgastadas pelo uso, e um balcão, onde uma jovem servia café e biscoitos caseiros, aos viajantes sonolentos, que renasciam lentamente para a vida, com o calor da fogueira e do café a percorrer-lhes as entranhas.
Também João se chegou, primeiro à lareira, para aquecer o corpo, e depois ao café, para aquecer a alma.
As cadeiras estavam vazias, acotovelando-se os clientes em pé, ao balcão, fartos de estarem sentados, no autocarro. João, no entanto, preferiu beber o café sentado, por isso arrumou-se num canto, numa mesa solitária, admirando o espetáculo.
Foi quando reparou, verdadeiramente, na jovem que estava atrás do balcão.
Pouco mais que adolescente, com longos cabelos loiros e um sorriso franco nos lábios, servia café e biscoitos como quem distribui alegria, à pequena multidão que se aglomerava à sua volta.
Sem mãos a medir, ninguém ficou por servir, nem reclamou do serviço. Ela fez o milagre da multiplicação dos cafés e da ressurreição dos mortos de cansaço, da viagem. A alegria invadia os rostos tristes, que João vira no autocarro, à medida que o calor lhes penetrava os corpos e os fazia renascer para a vida.
Uma aura de beleza emanava daquela jovem sorridente que, sozinha, no meio do nada, numa noite fria e chuvosa, dava vida ao mundo, com uma cafeteira de café nas mãos e um sorriso amável nos lábios.
João não conseguia tirar os olhos dela. Parecia-lhe um sonho, um espírito puro, belo e esplendoroso, como nunca tinha visto na vida. Havia algo de sobrenatural na sua juventude, na simplicidade dos modos, no carinho que dedicava a todos. Aquela rapariga era um anjo da guarda, colocado no meio do deserto, para reanimar os pobres peregrinos da vida, que por ali paravam, meia dúzia de vezes por dia.
Até o café lhe soube pela vida. Nunca tinha bebido um café com tanto prazer. Seria do cansaço acumulado, do frio, da monotonia da viagem, do aconchego da lareira, da beleza da estalajadeira. Ou seria apenas porque o café era muito bom. A verdade é que repetiu e sentiu-se renascido, reconciliado com a vida, após beber aquele líquido milagroso.
Aos poucos, a freguesia foi abandonando o estabelecimento e regressando ao autocarro, pronta a seguir viagem. João foi dos últimos a sair. Estava hipnotizado pela jovem serviçal. Foi poisar a chávena no balcão e ela agradeceu-lhe, com o mais belo sorriso do mundo. Tão belo, que João teve dificuldade em sair.
O que faria uma jovem deslumbrante sozinha, no meio daquele deserto?
Seria real ou teria João imaginado tudo, idealizado um paraíso à beira da estrada, depois da travessia do deserto, rumo ao desconhecido?
Era o pensamento de João, enquanto subia os degraus de acesso ao autocarro. As portas fecharam-se e o motor roncou, ao mesmo tempo que a chuva começou a cair, com alguma intensidade.
Estranhamente, o autocarro tardava em arrancar. Seria da chuva, da azáfama dos passageiros, no regresso aos seus lugares, dos preparativos do motorista, para a etapa seguinte da viagem?
Quem visse o autocarro da rua, parado sob a chuva intensa que começou a cair, não saberia responder. O certo é que o veículo permanecia imóvel, de motor a trabalhar, como se também ele estivesse hesitante em abandonar aquele oásis de conforto, rumo ao deserto da estrada.
Eis quando as portas se reabrem e um vulto desce lentamente as escadas, de mala na mão.
Dá dois passos em frente, debaixo da chuva intensa, rumo à cabana.
É João que regressa, confiante no seu destino, enquanto o autocarro finalmente se afasta, em direção ao desconhecido.
2 de Abril de 2024
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fotoortografias · 1 month
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Mistérios da Vida
João acordou e olhou para o relógio. Eram nove horas e dez minutos. Demasiado cedo para um domingo. Virou-se para o outro lado da cama e dormiu mais um bocado.
Sonhou. Aventuras estranhas, com gente desconhecida, em terras ignotas, mas onde sempre espreitava um perigo, a cada esquina. Não era um pesadelo, nem sentiu sobressaltos, daqueles que fazem saltar da cama, num ápice, com o coração aos pulos e uma enorme sensação de alívio, por tudo aquilo se ter passado apenas num sonho e não na realidade.
Era antes um ambiente hostil, desagradável, que lhe causava um ligeiro, mas permanente, incómodo, como uma sensação de culpa. Uma angústia de quem estava ali, enfiado na cama, em vez de estar lá fora, na rua, a conviver com o mundo.
Passado algum tempo voltou a abrir os olhos. Mirou novamente o relógio, que já marcava onze e meia, e decidiu que era tempo de acordar.
Não necessariamente de levantar-se, mas de começar a habituar-se à ideia. Pegou no telemóvel e verificou as novidades, nas redes sociais. O que andariam os amigos a fazer? A verem posts ridículos seguramente. A colocarem memes ao desafio, como numa competição absurda, em que o vencedor seria quem mais likes recolhesse, dentro do grupo.
Não lhe agradava aquela sociabilidade à distância, feita de futilidades, na maioria das vezes partilhadas mecanicamente, quase inconscientemente. Alguém recebe uma mensagem e reencaminha para os outros, por vezes sem sequer perceber a piada. Alguém que me explique, mais tarde, por favor.
A intercomunicação passa por fazer like, isto é, carregar repetidamente no botãozinho em forma de coração, para dizer aos outros que se gosta um bocadinho deles, que se está a prestar atenção àquilo que fazem, que publicam, que se sabe, no fundo, que eles estão no mundo, sem que isso faça grande diferença, verdade seja dita, salvo no ego do autor.
Decidiu que era melhor dedicar-se a coisas mais interessantes, às artes, às fotografias, à literatura. Preferia partilhar obras e novidades artísticas com desconhecidos, do que conversas banais, com os amigos e colegas da escola. Não que procurasse retorno ou popularidade, apenas o prazer de colecionar belas pinturas, fotografias de um passado distante, muito anterior ao seu nascimento, de ouvir músicas novas e ler livros que enriquecessem o seu espírito e conhecimento. Pouco lhe importava se as suas publicações eram vistas por muitas ou poucas pessoas. Apenas queria ver e colecionar beleza, aquilo que mais falta sentia na vida e que não encontrava entre os seus amigos.
Após alguns minutos dedicados às pinturas, às fotos e à leitura de mais um capítulo de um livro eletrónico, resolveu, enfim, levantar-se e abrir o estore da janela do quarto. Estava um dia de sol esplendoroso. As pessoas circulavam pela rua, para cima e para baixo, atarefadas, bem dispostas, como se quisessem aproveitar, ao máximo, o sol daquele domingo de primavera, depois de tantos dias de chuva.
Pensou que também ele deveria fazer o mesmo. Depois de uma manhã inteira, perdida na cama, depois do almoço, teria que sair um pouco e sentir na pele o sol primaveril.
Ouviu a irmã a gritar, - acorda dorminhoco, está um dia maravilhoso, já estou farta de brincar, lá fora, com as minhas amigas, enquanto tu estás aí fechado, no quarto, agarrado ao telefone e a ler.
- Depois do almoço eu saio, respondeu-lhe o João. - Hoje é domingo, tenho o direito de me levantar mais tarde, ou não?
A pequena nem o ouviu. Só tinha vindo a casa buscar alguma coisa e daí a poucos minutos estava na rua outra vez. Já o João, apesar de levantado e de estore aberto, estava ainda com pouca vontade para se vestir. Deitou-se preguiçosamente no sofá, a ler um livro, enquanto aguardava pela hora do almoço. Que, aliás, já nem deveria tardar, pois, com tudo isto, já passava do meio-dia.
Leu mais alguns capítulos, na tranquilidade do seu quarto, enquanto esperava que a mãe e a irmã regressassem a casa, para o almoço.
Nem o banho tomou. Já era tão tarde que não valia a pena. Amanhã era dia de escola e por isso, tomaria o banho matinal habitual.
Almoçou em família, como de costume, e começou a pensar como poderia ocupar a tarde, aproveitando o belo sol de primavera que brilhava na rua.
Enquanto pensava nisso, a mãe informou-o que estava um dia magnífico e que, por isso, iria fazer uma visita, juntamente com amigos, a um palácio histórico, situado não muito longe de casa. Se eles quisessem ir também, seria uma boa oportunidade para fazerem uma visita cultural interessante, usufruir do belo sol domingueiro e, bem assim, da companhia sempre divertida, dos amigos da família. João gostou da ideia e aceitou a sugestão, ficando à espera da hora combinada.
Entretanto, como ia sair, lá se vestiu com as roupas da véspera, aguardando as instruções da mãe. Até lá, pegou no livro e leu mais um capítulo.
Na verdade, nem era o mesmo livro. João era um daqueles leitores compulsivos, que lê muitos livros ao mesmo tempo. Naquele momento tinha três livros começados, na mesa de cabeceira, e mais alguns espalhados pelos dispositivos eletrónicos de leitura. Nem sabia exatamente quantos. Por vezes, esquecia-se de algum livro, a meio, e quando o reencontrava, alguns meses mais tarde, retomava a leitura, como se a tivesse interrompido na véspera, pois lembrava-se perfeitamente onde tinha ficado a história.
Além da leitura também gostava de escrever. Tinha um caderno diário, onde todos os dias juntava alguns pensamentos, alguns ensaios, alguns poemas, até alguns pequenos contos, inspirado no que lia, vivia e partilhava nas redes sociais.
Já a irmã era precisamente o oposto. Nunca parava em casa. Tinha sempre coisas para fazer, pessoas para encontrar, conversas urgentes para trocar, com a enorme quantidade de gente que com ela se cruzava na vida. As amigas, as colegas, as vizinhas, até desconhecidos, porque todos os dias conhecia novas pessoas, através dos seus múltiplos contactos. Adorava conviver. Por isso, para ela, cada dia era uma surpresa, e um dia de sol, como o de hoje, um bem precioso que ela usufruía, de manhã à noite, sempre na rua, sempre acompanhada, sempre à descoberta de novas amizades e conhecimentos.
João era muito mais caseiro e solitário. Sair e conviver não lhe eram naturais. Preferia ficar em casa, a ler um livro, a ver um filme, a organizar as suas fotos e os seus pensamentos no telemóvel ou no computador, a trocar informações pelas redes sociais. Para sair de casa, precisava de um pretexto. Teria que ter algo combinado, uma marcação, uma visita agendada, uma reunião programada. Não saia à toa, em busca de aventuras ou de conversa fiada, com amigos ou vizinhos, muito menos com estranhos. Não frequentava cafés, nem a casa de ninguém. Ia por vezes ao cinema, a um concerto, a um almoço fora, com os colegas, geralmente numa pizzaria ou hamburgueria da cidade, onde as suas preferências gastronómicas coincidiam, na perfeição, com as parcas disponibilidades financeiras.
Eis então que a mãe lhes anuncia que a visita ao palácio teria que ficar para outro dia, porque os amigos dela hoje não estão disponíveis.
Se o João recebe a notícias com indiferença, recolhendo ao seu sofá e à sua leitura, por pouco tempo interrompida, já a irmã exulta com a novidade e parte, de novo, em busca das amigas, para pôr em dia as conversas, bruscamente suspensas, pela hora de almoço.
João coloca uns auscultadores na cabeça, para ouvir música, enquanto lê, e nem dá pelo tempo passar.
Às tantas o dia começa a escurecer, o sol despede-se do domingo e o João, finalmente, apercebe-se que o dia se esgotou e ele nem oportunidade teve de ver o sol, que brilhava lá fora.
Olhou pela janela, contemplando o fim do dia, e sentiu uma vaga nostalgia. Às vezes gostaria de ser um pouco mais como a irmã, de gozar a vida com alegria, na rua, no meio das outras pessoas.
Mas a verdade é que, de cada vez que se propunha imitá-la, ir para a rua conviver com os outros, acabava invariavelmente sozinho, no seu canto, a ler um livro, a ouvir música, a ver um filme. Ele gostaria de ser mais como ela, mas definitivamente não era. As outras pessoas cansavam-no. De cada vez que imaginava ir ter com os colegas, ouvir falar de futebol, de automóveis e de outras coisas que pouco ou nada lhe interessavam, fazia como quando acordava cedo, aos domingos, virava-se para o outro lado da cama e lia mais um capítulo do livro.
Mas ao domingo seguia-se a segunda feira, dia de escola, e o fim de semana passara, sem que ele pusesse os pés na rua.
Não saiu porque não quis. Mas essa falta de vontade, deixava-lhe um estranho sentimento de culpa no espírito.
A sua esperança era que, um dia mais tarde, quando fosse adulto, quando tivesse a sua própria família, quando a maturidade lhe permitisse ultrapassar estes medos e inseguranças da adolescência, as coisas seriam diferentes. Ele teria vontade de sair e conviver com a mulher e os filhos. Teriam, talvez, casais amigos, com crianças da mesma idade, com quem se reunissem periodicamente. A sua agenda social seria, provavelmente, muito mais preenchida. Pelo menos assim esperava.
Mas, quem sabe. Aqui fechado em casa, sem vontade nenhuma de conviver com ninguém, não será fácil arranjar uma companheira, nem constituir família. Mas não vale a pena preocupar-se, para já, com isso. O tempo tratará de lhe encontrar um rumo para a vida.
A maturidade resolverá o resto, até porque conhecimento e sabedoria não lhe faltarão, depois de tanta leitura e dos bons resultados escolares, que ele acumula, mesmo sem se esforçar muito para isso.
Só espera que, ao longo desse caminho, que a vida lhe traçar, e que se augura recheado de sucessos, consiga encontrar a alegria, escondida nalguma esquina do percurso.
Porque será que tudo está tão mal distribuído, nesta vida? O que abunda em alguns escasseia noutros. As alegrias de uns fazem as tristezas de outros. Os desejos também podem ser receios e os sucessos, esconder infelicidade.
Melhor será ler mais alguns livros, para tentar compreender o quão complexa e plena de mistérios é esta vida.
Parece que já tem programa definido, para depois do jantar.
18 de Março de 2024
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fotoortografias · 3 months
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O Purgatório
R. abriu os olhos e não reconheceu o local onde se encontrava.
Tudo parecia muito vago na sua cabeça. Estava coberto de sangue, mas a hemorragia, onde quer que fosse, estava curada. Não sentia dores, apenas estava incomodado e com uma longínqua lembrança, de uma pancada forte na cabeça, que o teria feito perder os sentidos.
Estava sentado num banco, numa sala apinhada de gente, mas onde, estranhamente, tudo se mantinha silencioso. Parecia uma sala de espera de uma repartição pública, repleta, demorada no atendimento, mas em que ninguém, curiosamente, tinha pressa ou reclamava.
Havia leitura abundante disponível, música ambiente também, calma e que parecia aquietar os presentes. Havia até uns pequenos dispositivos, semelhantes a telemóveis, que alguns usavam, sem que R. percebesse para quê.
A iluminação era agradável, não demasiado forte, e as pessoas à sua volta estavam tão ensimesmadas, que nem repararam na sua roupa ensanguentada. Aliás, outros exibiam semelhantes propósitos, vestindo roupas sujas de lama, de sangue e de outras viscosidades, de natureza duvidosa, mas fortemente desagradável, sem que ninguém se preocupasse com isso. Por muito mal tratada que estivesse a vestimenta, não se ouvia queixume de qualquer incómodo ou reclamação da aparência, própria ou do vizinho. Entretinham-se sozinhos e calados, como se nada mais existisse, além deles próprios.
R. reparou então numa brochura, pousada numa mesa à sua frente, cujo título lhe chamou de imediato a atenção; "Bem vindo ao purgatório, guia prático para o recém chegado".
Não resistiu e pegou no folheto, que estava escrito em português. Virou a página e leu, com espanto, o seguinte: "Se você está aqui é porque esgotou a vida e será sujeito ao juízo particular da sua alma, que determinará a união com Deus, no paraíso celeste, caso seja aprovado, ou a entrega ao reino das trevas eternas de Satanás, se for reprovado."
R. esboçou um sorriso. Um juízo particular da alma? Ele não acreditava em nada daquilo. Beliscou-se, receando estar a ter um pesadelo.
E o panfleto continuava assim: "Lembre-se que nada está decidido ainda, pode arrepender-se, com sinceridade, dos seus pecados e, dessa forma, ganhar um lugar junto de Deus. Só o pecador que se recuse a um arrependimento sincero, está condenado ao Inferno. Todos são pecadores, mas aqueles que se confessarem, com verdadeiro arrependimento e intenção de nunca mais pecar, esses serão salvos e encontrarão o seu lugar junto de Deus".
Confessar? O quê e a quem? Não estava numa igreja, não via sacerdotes de nenhum credo, apenas um segurança, fardado e sentado numa pequena secretária, com várias senhas na mão, e uns guichês onde figuras anónimas pareciam atarefadas, sem no entanto atenderem ninguém.
Decidiu levantar-se e dirigir-se ao segurança.
- Bom dia, pode explicar-me onde estou e o que devo fazer?
- Tem marcação? - respondeu de imediato o segurança.
- Não faço a mínima ideia. Acordei aqui e não sei onde estou nem o que fazer.
- Está no purgatório, mas só pode ser atendido com marcação. Sem marcação tem de ficar à espera de alguma desistência, mas não lhe garanto nada. Se tivesse vindo mais cedo, eu ainda teria algumas senhas para distribuir, mas a esta hora é impossível. Só com marcação.
- Então e essas senhas que o senhor tem, na sua mão, não servem?
- Estas são apenas para quem tem marcação. Se o senhor se tivesse confessado, antes de morrer, se tivesse jejuado ou praticado atos de caridade significativos, se tivesse recebido a extrema unção e pedido perdão sincero para os seus pecados, então eu arranjava-lhe uma marcação. Mas no estado em que está, coberto de sangue, sem saber ao que vem, vê-se logo que foi apanhado de surpresa pela morte e não teve tempo, nem vontade, de se preparar. Por isso tem que esperar. Quando houver uma desistência chamam-no.
- E se ninguém desistir ou faltar à chamada, fico aqui para sempre, à espera? - perguntou R. inocentemente.
- Meu amigo, eu não faço as regras, apenas as cumpro e faço cumprir. Se quiser pode reclamar, mas eu não lho aconselho. Demasiada impaciência é vista como impreparação para um verdadeiro ato de contrição dos pecados, pelo que, geralmente, faz aumentar o tempo de espera ou então, nos casos mais graves, em que os utentes são incorretos com os funcionários, pode mesmo levar à condenação imediata, sem direito a recurso, por falta de humildade. Por isso o meu conselho é que se sente e que espere, calado, como os outros, e pelo tempo que for necessário. Aqui ninguém fica esquecido. Pode demorar, mas vai acabar por ser atendido, mais tarde ou mais cedo.
- E acha que vai demorar muito tempo? - suplicou R., já desprovido de argumentos.
- Isso depende do serviço. Há dias melhores e outros piores. Como vê (e aponta para os outros expectantes presentes no recinto) a casa está cheia e chegaram antes de si. É claro que isso não significa grande coisa, o atendimento é feito de acordo com a preparação das almas e não por ordem de chegada. Quanto mais depressa o meu amigo conseguir pôr o seu processo em ordem, mais depressa será atendido.
- O meu processo? Mas que processo? - indagou R.
- Leia a brochura, onde tudo está explicado. Preencha o formulário eletrónico, disponível nos dispositivos, espalhados pela sala de espera, e, por favor, não me faça perder mais tempo, porque há gente à espera para ser atendida.
De facto, atrás de R., perfilava-se já um indivíduo de aspeto exemplar, vestido como se fosse para a missa de domingo e com um envelope na mão, que estendia ao segurança.
- Bom dia, meu bom amigo - dirigiu de imediato ao segurança - eu trago aqui uma carta de recomendação do cónego Bizarro, talvez conheça, que me assegurou ter tratado da minha marcação, junto dos serviços de santidade.
O homem leu a dita carta e o olhos brilharam-lhe, de alegria subserviente.
- Seja bem vindo, senhor doutor. Leve esta senha e dirija-se à porta sete, onde será imediatamente atendido. Folgo muito em conhecê-lo. Faço votos de uma rápida ascensão ao reino de Deus, que tenho a certeza que ocorrerá de imediato, sem grandes demoras.
- Obrigado, meu bom homem - responde-lhe o recém chegado - enquanto se afastava, na direção do corredor Indicado.
O segurança estava em êxtase. Quase parecia que se curvava, em vénia ao ilustre defunto.
R. comentou, com ironia:
- Parece que este senhor tinha marcação.
O funcionário lançou-lhe um olhar fulminante.
- Claro que sim. Tinha mais do que isso, uma carta de recomendação de uma autoridade eclesiástica. Isso garante-lhe, não apenas a marcação, mas também o atendimento preferencial e personalizado - respondeu-lhe desagradado o oficial.
Decididamente não somos todos iguais, nem na terra, nem no céu, pensou R.
E sentou-se, com paciência, disposto a ler o folheto completo e com atenção.
Afinal de contas estava morto. Que mais tinha para fazer?
O panfleto era claro. Quem tivesse marcação deveria dirigir-se à recepção. Quem a não tivesse, teria que aguardar uma vaga e preencher o formulário eletrónico disponível, nos vários dispositivos que se encontravam na sala.
De modo que R. resolveu pegar num dos ditos dispositivos e começar a preencher o formulário.
A primeira pergunta era preocupante. Qual a sua religião? Pareceu-lhe que os procedimentos de admissão se adivinhavam discriminatórios, até pelo bizarro processo de marcação. Escreveu "agnóstico", para não ferir susceptibilidades.
Seguiu-se um juramento sagrado, de responder com verdade ao questionário, e um rol estranho de perguntas. Se cometeu apostasia ou abjurou, se adorou ídolos, se matou alguém e em que circunstâncias, se honrou os pais, se roubou, se cometeu adultério, se prestou falsos testemunhos, se foi casto nos pensamentos e desejos, se cobiçou as coisas dos outros, se usou o nome de Deus em vão, se trabalhou nos dias santos, se fez jejuns e em que circunstâncias. R. sentiu-se um personagem do antigo testamento, pronto a ser fulminado por um raio divino, à primeira resposta errada.
Aceitou o juramento e respondeu negativamente à primeira pergunta. Pois se nunca acreditou em Deus, como poderia abjurar ou ser apóstata. Mas logo de seguida a aplicação quis saber mais, se tinha sido iniciado nalguma religião, se tivera educação religiosa e onde. Parecia-lhe que, afinal, as perguntas estavam para durar e não escaparia facilmente com evasivas. Não fora iniciado em nenhuma religião, pois os pais nunca o batizaram, por isso essa resposta era fácil. Já quanto à educação religiosa, aparte o que aprendeu sozinho, a única que teve foram as aulas de religião e moral, na escola. Será que contam? Respondeu que sim, para perceber o alcance da pergunta e, de facto, pareceu-lhe que contavam, porque de seguida lhe pediam para especificar onde recebeu essa educação religiosa, em casa, na escola comum, no templo, se frequentara escolas religiosas, quais e que níveis de ensino atingiu. Isto era um interrogatório cerrado. Respondeu afirmativamente, mas precisou, apenas na escola comum. Cada resposta abria um universo de novas perguntas. Se o ensino fora ministrado por sacerdote ou leigo, se alguma vez fora à missa ou a qualquer outra celebração religiosa, se comungara, se a educação religiosa que recebeu teve alguma influência no seu comportamento, ao longo da vida. Eram perguntas ora tão específicas, que lhe pareciam excessivamente minuciosas, ora tão vagas, que ele nem sabia o que responder. Como poderia avaliar a influência que as aulas de religião e moral, da sua infância, tiveram na sua vida? Conheceu os princípios básicos da religião católica, alguns praticou, outros nem tanto. Mas será que o seu comportamento foi influenciado por aqueles ensinamentos ou decorreu de outros imperativos, de consciência ou de circunstância. Honestamente não sabia dizer.
Foi respondendo como podia, o mais evasivo possível, sabendo contudo que o questionário tinha pouca tolerância para as evasões, replicando sempre com novas perguntas, de modo a obrigar o inquirido a tomar uma posição clara sobre o que lhe era perguntado. Mesmo quando respondia simplesmente "não sei," o programa insistia com mais perguntas, para indagar as razões do desconhecimento, se tinha procurado saber, se fora mal informado, se esteve de alguma forma impedido de tomar conhecimento, se sabia onde poderia procurar ajuda, para o esclarecer. Enfim, já levava mais de uma hora de questionário e ainda não tinha acabado de responder à primeira pergunta.
Se o questionário fosse igualmente minucioso para todas as questões, teria trabalho para muitas horas.
Curiosamente não se sentia cansado. Nem com fome ou incomodado com o que quer que fosse. Afinal estava morto e a morte deveria ter algumas vantagens. Pareciam desaparecer as necessidades e os mal estares do corpo e nascia uma paciência infinita, para responder a um questionário tão minucioso quanto este, sobre os assuntos mais íntimos e pouco esclarecidos da sua vida.
Quanto chegou à parte dos ídolos, a aplicação ia ao pormenor de perguntar se tivera paixões por músicos ou atores de cinema ou televisão, considerando, aparentemente, idolatria as paixões de adolescência por grupos de rock ou atrizes sedutoras. Apetecia-lhe responder que não tivera paixão, mas muita tesão, por algumas daquelas sex simbols da sua adolescência, mas depois pensou que as alusões sexuais seria melhor deixá-las para as perguntas sobre a castidade de pensamento e desejo. Mal podia esperar por essa parte. Os pecados seriam tantos que o questionário deveria estender-se interminavelmente. Será melhor responder, para já, que não, interpretando esta paixão num sentido místico, ao qual não era manifestamente atreito.
À pergunta se matou alguém, respondeu obviamente que não, pensando que, pelo menos esta questão, seria rapidamente despachada. Pura ilusão. Ao peremptório "não" da resposta sucederam, em vaga, perguntas bem mais difíceis de replicar. Se tinha pensado em matar alguém, incluindo ele próprio, ou se tinha desejado a morte de alguém, se tinha deliberadamente causado sofrimento a outra pessoa, se fora bondoso com os animais, se tinha morto animais com raiva ou ódio. Nesta altura só se lembrou das melgas, que o impediam de dormir, nas noites de Verão, na casa de férias dos pais. O prazer com que matou aqueles bichos imundos, que lhe roubavam o sono, sugando-lhe o sangue e deixado babas comichosas, por todo o corpo! Aparentemente devia ser pecado, a crueldade para com as melgas. Mas ele, honestamente, só se arrependia das que não tinha conseguido apanhar. Pelo andar da coisa tinha o inferno por destino e se o castigo fosse coerente e proporcional, deveria estar infestado de melgas!
Se honrou os pais? Que raio de pergunta é essa. Não lhes faltou ao respeito, mas isso é honrar? Haveria que prestar algum culto à progenitura, uma obediência cega e suicida, como o filho de Abraão, que de boa vontade se deixaria sacrificar pelo pai, em obediência a Deus? Sei lá o que é honrar os pais. Respondeu que sim, apenas para descobrir que ficou, provavelmente, muito aquém dos seus deveres filiais. Haveria que os ter visitado muito mais vezes, que lhes dar atenção e fazer companhia na velhice, que lhes levar flores ao cemitério com regularidade, depois de mortos. Mas em que mundo viveu esta gente? Quem é que faz romaria aos cemitérios, nos dias que correm? A maior parte opta pela cremação dos seus mortos, precisamente para evitar obrigações e encargos futuros. Atiram-se as cinzas ao mar ou ao rio e está o caso resolvido. Acaba-se logo o luto e os gastos com floristas, marmoristas e gatos pingados.
No que respeita ao furto também respondeu que não. Mas a aplicação parecia que era omnisciente e insistia, a testar-lhe a memória ou a honestidade. Veio com perguntas sobre o pagamento de impostos, sobre pecadilhos de infância com doces ou brinquedos, livros não devolvidos aos amigos, coisas que ele já nem se lembrava. Um horror. Terminou o questionário com uma terrível sensação de culpa. Parecia-lhe que tinha sido um aldrabão toda a vida e continuava a se-lo, tentando enganar a aplicação com meias verdades ou mentiras descaradas.
O mesmo aconteceu com os falsos testemunhos. Ele que nem testemunha fora, em toda a sua vida, era agora confrontado com todo o género de mentiras, falsidades ou omissões culposas à verdade, que teria praticado ao longo da vida. O céu devia estar reservado apenas para os santos, só podia ser. Quem nunca contara uma mentira piedosa na vida ou omitiu um facto desconfortável, para evitar confrontos ou discussões. Parece que tudo isso conta como falsos testemunhos e que tinha muito para se arrepender, neste particular. Logo ele, que se considerava uma pessoa séria, honrada e de palavra. E era prezado, como tal, por todos os que o conheciam e com ele privavam quotidianamente. Quase se sentia ofendido, com tantas perguntas e tanta beatice incongruente implícita no questionário. Ninguém poderia estar à altura de tamanhas exigências, nem Deus!
Foi então que chegou à parte mais temida, o adultério e sobretudo a castidade de pensamentos e desejos. Nunca cometera, de facto, adultério, por isso por aí estava descansado. Mas em matéria de pensamentos e desejos impuros, não havia praticamente nada que não lhe tivesse passado pela cabeça. Pelo menos nunca foram mais do que isso, fantasias, fantasmas luxuriosos que o ajudaram a viver a vida, um pouco mais feliz. Será que haveria clemência para um devasso de pensamentos, como ele? E a verdade é que não se arrependia de nada.
Não é que a aplicação lhe começou a perguntar detalhes da sua vida sexual, mesmo a conjugal? Onde fizera, como fizera, se sentira prazer na luxúria, com que frequência fazia, se pensava noutras pessoas quando o fazia, se imaginava atos de sodomia, se ativos ou passivos, se vira pornografia, de que género, se tinha desejos não naturais com animais, indo ao pormenor de exemplificar espécies e cores. Um tormento inacreditável!
Terminou o capítulo completamente suado, enojado com todo e qualquer ato sexual e com uma vontade enorme de ter nascido anjo, sem sexo, nem desejo sexual. Para que teriam as pessoas sexo e desejo sensual, se tudo lhes estava, aparentemente, vedado, menos a procriação. Mas mesmo essa, teria que ser imaculada, sem desejo, sem prazer, sem sexo. Um sopro divino, que concebesse sem pecado. Ridículo. Cada vez estava com mais vontade de ir para o inferno. A fazer fé naquele questionário, a ascensão ao reino de Deus deveria ser um tédio absoluto, sem nada que proporcionasse prazer a um homem, só orações, jejuns e pensamentos imaculados.
Já estava tão cansado e farto daquele interrogatório hipócrita, que as últimas perguntas já as respondeu quase por instinto, sem refletir muito nas respostas. Queria lá saber, perdido por cem, perdido por mil. O que queria era despachar aquilo e seguir para onde o mandassem. Se fosse para o inferno tanto pior. Também não devia ser muito diferente daquilo por que estava a passar, naquele momento, questionado nas suas convicções mais profundas, desacreditado na sua honradez, despido na sua intimidade, sem qualquer pudor, e reduzido à insignificância da sua imperfeição humana, com o propósito, aparentemente saudável, de o levar ao arrependimento. Mas arrependimento de quê? De ter nascido homem, de ser imperfeito, de ter desejos e necessidades, como todos os outros. Se fora Deus que o criara assim, então porque motivo, para o pôr à prova? Que Deus sádico seria esse, que nos fazia exatamente ao contrário do que deveríamos ser, só para nos obrigar a pecar a vida inteira e sujeitar à humilhação suprema do arrependimento, na hora do julgamento final? Isso não era um Deus, mas um carrasco. Recusava a misericórdia de um ser assim tão desprezível. Antes o inferno. Sofrer por sofrer, antes no corpo que na alma.
Foi no decurso desta crise, que o levara ao desespero, que R. ouviu chamar o seu nome, ao guichê número seis.
Pronto, está tudo decidido, pensou. Os pecados foram tantos e as blasfémias de tal ordem, que a sua sorte estava traçada. O seu irado desejo iria ser cumprido. Chamaram-no ao guichê número seis, só podia significar uma guia de marcha para o inferno.
Foi então que reparou que já tinham passado mais de seis horas, desde que ali chegara e começara a preencher o questionário. Não era pois, de admirar, o seu estado de desespero. Ninguém aguentava uma sessão tão longa e minuciosa de introspecção. Mais algum tempo e ficaria louco, com certeza. Mas não deixou de reparar que era outro seis. Estava a ficar perigosamente perto da Besta, segundo a tradição cristã.
Pensou, contudo, que talvez fosse esse o objetivo. Que seria possível que a contrição dos pecados passasse precisamente, por um período de confronto consigo próprio, com os seus erros e omissões, para renascer mais clarividente, com uma noção mais próxima da verdade e da humilde condição humana.
Uma confiança renasceu no seu espírito. Talvez ainda existisse uma esperança para si.
O guichê número seis era um cubículo apertado e escuro, com uma velha senhora, extremamente baixa, com uns óculos grossíssimos, sentada numa pequena secretária, cheia de papéis.
- Entre por favor e sente-se naquela cadeira - dirigiu-se-lhe a senhora, apontando para uma velha cadeira manchada, num canto do gabinete.
R. sentou-se, sem abrir a boca, e esperou pacientemente pelo veredito.
- Olhe que você é dos teimosos - atirou-lhe a velha - então mesmo no purgatório e sujeito ao julgamento das almas, você declara-se agnóstico? O que queria ver mais, para ter a certeza? Queria talvez ser recebido pessoalmente, por Deus nosso Senhor?
- Perdão - replicou R.- na verdade, nem pensei nisso, quando comecei a preencher o questionário. A verdade é que tudo isto é tão surreal, tão parecido com uma repartição pública, com condições lamentáveis, aliás, tão pouco celestial, que eu ainda estou na dúvida se tudo não será um sonho, ou melhor diria, um pesadelo.
- Acha? Agora imagine se tivesse que trabalhar aqui todos os dias, como eu! Nessa altura pensaria que era o inferno e não o purgatório - respondeu-lhe a idosa.
Tem sentido de humor a velhota, pensou R.. É seguramente um bom sinal. Talvez ainda haja esperança para este pecador.
- Peço perdão pela minha curiosidade, mas o que esperam de mim agora? Arrependimento? Ainda tenho algum poder sobre o meu destino, ou a decisão já foi tomada e estou aqui apenas para dela ser notificado? - perguntou R.
- Eu não tomo decisões, limito-me a instruir o processo. - respondeu a velha - Todas as almas podem ser salvas pelo arrependimento sincero, até ao último momento. A decisão final é de Deus e de mais ninguém, muito menos de uma velha funcionária, a sonhar com a reforma, como eu - completou a senhora, por detrás dos seus óculos garrafais.
- Pois então estou ao seu dispor, pergunte-me o que for necessário, para instruir o meu processo. Confesso que estou bastante combalido, com o rigor do questionário a que fui sujeito. Nem dei pelo tempo passar, mas a verdade é que terminei exausto, ensopado em suor e com uma vontade enorme de acabar com este processo e chegar rapidamente a uma decisão. Já estou por tudo, como se costuma dizer - acrescentou R. - parece que nem na morte se encontra paz.
- Essa sua exaustão, na entrega ao questionário, foi positiva. Isso mesmo me fez chamá-lo. É um sinal que está pronto para enfrentar os erros cometidos e assumir a remissão dos pecados - respondeu a funcionária.
- Acha que sim? - replicou admirado R. - pois a mim parecia-me exatamente o contrário. Até comecei a sentir uma forte revolta.
- Exatamente. Esse é o momento ideal para receber as almas exaustas e deixá-las descansar um pouco, libertarem-se dos seus pecados e reencontrarem o caminho da verdade. Não se sente melhor agora? - perguntou a anciã.
- De facto. Como lhe disse, sinto-me aliviado das culpas e angústias, que me atormentavam, ainda há pouco. Confesso que, enquanto caminhava para este gabinete, senti uma nova esperança, até pensei se tudo não seria um método de nos humilhar e desse modo extrair um mais sincero arrependimento aos pecadores - acrescentou R.
- Você é mais esperto, afinal, do que parece. E então, o que concluiu? Está, de facto, sinceramente arrependido dos seus pecados? - perguntou a senhora.
- Acho que sim, mas confesso-lhe que sempre tive muita dificuldade com essa questão dos pecados. Como nunca fui religioso, sempre fui mais recetivo à ética do que à moral, por isso sempre achei que existia uma elevada subjetividade no pecado. Afinal, o que é pecado para umas religiões não é necessariamente para outras. E nem tudo o que é pecado é ilegal, existindo até ilegalidades que não são consideradas pecado, por várias religiões. Como pode um pobre mortal, lançado numa luta diária pela sobrevivência, encontrar um rumo imaculado, neste emaranhado de princípios que envolvem a ética e o pecado. Não tenho dúvidas que sou fraco e que pequei, seja qual for o critério de aferição do erro. Mas serei assim tão culpado? Se Deus existe e me criou, criou-me imperfeito e fraco, incapaz de resistir ao pecado. Mesmo assim, tenho consciência que não cometi pecados de enorme gravidade. Cometi pecadilhos, como a maioria dos mortais comete, ao longo da vida. Não pretendo ser exemplo para ninguém, mas conheci gente muito pior do que eu e, talvez seja pretensão minha, mas não acho que esteja no grupo dos piores mortais, em matéria de ética e moral - argumentou R.
A velha soltou uma enorme gargalhada.
- Você foi advogado em vida e continua a exercer a profissão depois de morto, mesmo em causa própria! - ironizou, por fim.
- Desculpe - acrescentou R. - é talvez deformação profissional, mas olhe que acredito seriamente naquilo que acabei de lhe dizer. Não sou, nem nunca fui, um fala-barato, o que argumento faço-o por convicção e não apenas por conveniência - completou R.
- E dá-lhe muito jeito quando as duas coisas não são incompatíveis, não é verdade - voltou a ironizar a velha.
- De facto sim, mas isso não me abala a convicção, só a reforça - respondeu R.
- Já decidiu se o seu lugar é com Deus ou o Diabo? - rematou a senhora.
- Não pensei que a decisão fosse minha - respondeu R. - não estarei aqui para ser julgado pelos meus pecados?
- Assim é, mas você além de advogado também mostrou talento para ser juiz em causa própria. Não se indignou com um Deus que o humilhava e desejou entregar-se ao Inferno, só para se livrar desse tormento? Não pretendeu recusar a misericórdia divina, porque preferia o sofrimento do corpo ao da alma?
R. sorriu com a falácia do argumento e replicou prontamente:
- Assim foi, no culminar do interrogatório terrível dos meus pecados. Mas não me disse que esse era o procedimento adequado para a expiação da culpa das almas? Que foi precisamente por isso que me chamou, por ter chegado ao ponto culminante, em que as almas se libertam do pecado e encontram o caminho da verdade? Se já julguei a minha própria causa, então o que faço aqui? Acaso estou no Inferno e a senhora é Lúcifer, em forma de pessoa?
A velha baixou os óculos com espanto e soltou uma nova gargalhada.
- Gosto de si. É dos que dá luta. Está convencido que até do inferno consegue escapar, com a argumentação adequada. Trabalho aqui há séculos e nunca ninguém me perguntou se eu era Lúcifer em pessoa! Dessa não me vou esquecer nunca. Mal posso esperar para a contar às minhas colegas - desabafou a idosa.
- Pois eu também simpatizei consigo - retorquiu R. - sobretudo porque não me toma por parvo. Confesso que, depois do tratamento que levei lá fora, do segurança e do questionário, estava muito longe de encontrar tamanha franqueza, neste interrogatório.
- E quem lhe disse que eu estou a ser franca consigo? Se calhar é tudo um truque, para testar a sinceridade do seu arrependimento. Para o levar a reincidir no erro e no pecado do orgulho - refutou a anciã.
- Estou entregue aos seus cuidados - reconheceu R. - para o bem e para o mal. A menos que insista que a decisão é minha.
Nessa altura entrou outra funcionária no gabinete, com um papel vermelho na mão, que prontamente entregou à velha senhora.
R. sentiu um calafrio. Vermelho é a cor do diabo, do inferno, do sangue, um papel assim trará seguramente noticias nefastas e o réu ali era ele.
A senhora leu atentamente o documento, trocou breves impressões em voz baixa, inaudível, com a colega e acabou por a dispensar.
De seguida, de papel na mão, olhou para R. e sorriu.
- Afinal, parece que esbanjou em vão os seus argumentos. A sua hora ainda não chegou. Este papel vermelho, cor que identifica a urgência da comunicação, diz-me que o senhor ainda não está morto. Está apenas em coma e prestes a acordar. Foi um erro dos serviços tê-lo trazido, extemporaneamente, para o purgatório - explicou.
R. fitou espantado a senhora e teve ainda tempo para lhe responder:
- Tem a certeza disso? Os serviços do purgatório cometem erros grosseiros, como esse? Será que esse papel não é antes a minha sentença, ditada superiormente?
Nesse preciso momento acordou, e viu-se numa cama de hospital, cheio de fios e tubos por todo o lado. À sua beira estava uma velha enfermeira, de óculos grossos, garrafais, e com um papel avermelhado nas mãos, com resultados de testes médicos.
- Bem vindo, de regresso, ao mundo dos vivos. Tem estado em coma induzido, há várias semanas, mas agora, finalmente, os resultados positivos nos testes permitiram reanimá-lo. Tenho a certeza que tudo correrá bem, de agora em diante.
16 e 17 de Janeiro de 2024
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fotoortografias · 1 year
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O Cartaz
Dois muito jovens amigos interrompem a brincadeira para contemplar um insólito cartaz cinematográfico exibido numa vitrine, na rua principal da cidade.
A atenção foi captada no preciso momento em que alguma atividade física, própria das tenras idades da efebia decorria, pois um braço de um repousa sobre o ombro do outro, num abraço imprevisto, justificado pela urgência do espanto.
O cartaz, típico da produção cinematográfica do tempo, mostra um enorme autómato segurando nos braços uma mulher, de vestido justo e da mesma clareza da sua pele, aparentemente inconsciente, de longos cabelos loiros pendentes, seios fartos e pernas esculturais tombadas, terminando nuns provocantes sapatos de salto alto.
O título do filme combina na perfeição com a atraente visão, chama-se o Planeta Proibido, local onde robóticos pesadelos se apropriam de sonhos eróticos de juventude.
Entre o extraordinário elenco figura mesmo, em assumido destaque, Robby o Robô, ao lado de estrelas como Walter Pidgeon, Anne Francis e Leslie Nielsen. Exibe-se ainda, em sentido oblíquo para melhor captar a atenção, a palavra Amazing, como se as imagens insólitas não chegassem para suscitar o espanto dos espectadores.
Não posso, contudo, deixar de pensar que, se ao público mais maduro, a escultural e sugestiva donzela em apuros será o mais espantoso atrativo do cartaz, já para os juvenis espetadores, Robby o Robô terá constituído a fonte principal de tamanho êxtase contemplativo.
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fotoortografias · 1 year
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A Vassoura
Do corredor da escola, uma menina espreitava, junto à ombreira da porta, para o refeitório comum.
É uma criança de ar saudável e bonito, de longos cabelos claros, olhos redondos, abertos em expetativa, vestido curto, aos losangos, de manga igualmente curta e gola abotoada, soquetes brancos e sapatos negros, de pala.
Na parede ao fundo, bicolor, branca de cal em cima e colorida de ocre, em baixo, com almofadas desenhadas em baixo relevo, surge um quadro de motivo doméstico, com um moinho de café, uma cafeteira e uma tigela almoçadeira, entre alguns frutos indeterminados, por estilo ou imperícia do artista, que tanto podem ser castanhas, como nozes ou até pequenas ameixas escuras.
Mas mais insólito que o quadro, pendem de cavilhas, espetadas na parede branca, instrumentos diversos, de cabo alto, uma escova, uma vassoura, um rodo de borracha e, surpresa absoluta, uma corda de saltar, pendurada a meio, com duas pegas de madeira colorida, em forma de maracas. A menina olha hesitante, vigilante, como se estivesse indecisa, entre o trabalho e a diversão, entre a escova e a corda de saltar.
Ou, quem sabe, talvez sonhasse trepar na vassoura de palha, reminiscência do tempo das bruxas e das assembleias de sabá, e voar pelos céus afora, rumo à liberdade que a sua infância exige e lhe parece negada.
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fotoortografias · 1 year
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A Cruz dos Afogados
A poucos metros da costa, em frente ao areal branco da praia, existia um pequeno ilhéu escarpado. Nada de surpreendente, pois ilhéus como aquele, proliferavam na longa costa de arribas, que por quilómetros se prolongava naquela região, enfrentando o oceano furioso e perdendo, ano após ano, a batalha, fosse engrossando os areais costeiros, fosse ainda largando pedaços de rocha agreste, por entre as ondas do mar, baluartes resistentes, por mais alguns séculos, numa guerra, aparentemente, perdida.
Este era mais um escolho, destroço de antigas pelejas entre a terra e o mar, troféu capturado pelo oceano à rocha, refém dos infindáveis combates.
Mas tinha uma particularidade, que o distinguia de todos os outros. Uma singela cruz de ferro, postava-se no topo, de aspecto vetusto e origem incerta, que o povo apelidava, ominosamente, de cruz dos afogados, sem que ninguém tivesse memória de quem estes fossem, ou sequer o autor daquela singela homenagem.
Amaro passava férias ali, desde que nasceu. A família tinha uma velha casa na encosta, que passou de geração em geração, até chegar à sua. Em pequeno, veraneava naquela casa, na companhia dos pais e irmãos e ainda dos avós e dos tios, que também por lá andavam frequentemente, com os primos, com quem Amaro tantas vezes brincou, naquele areal. Após a morte dos avós, a casa ficou, em partilhas, para o pai e depois para Amaro, por morte daquele, pelo que o edifício estava indelevelmente associado às mais antigas memórias da sua vida, que associava invariavelmente à infância e aos seus antepassados, reunindo nela, ainda hoje, ocasionalmente, a sua parentela contemporânea, em almoços evocativos das memórias comuns da família.
Mas também Amaro, apesar da sua antiga e profunda ligação à freguesia, desconhecia a história da funesta cruz dos afogados, que, tão lugubremente, pairava sobre o belo areal da praia, no topo daquele ilhéu, recortado ao sol veranil.
Curioso e apaixonado pelo local, decidiu investigar as origens da cruz, consciente, contudo, das dificuldades da missão assumida.
Começou por contactar o município, em busca de escritos antigos, sobre a povoação e a cruz. Disseram-lhe o que ele já sabia, que a mesma seria homenagem a alguém que se teria afogado, naquele local, há séculos atrás, mas de quem não conheciam a identificação, podendo mesmo tratar-se de uma simples lenda. Era uma história ocultada pelo mistério do tempo. Não satisfeito, Amaro fez buscas na biblioteca municipal, sem que daí tenha resultado esclarecimento adicional, ao pouco que já conhecia.
Um dia, numa taberna da aldeia, um velho pescador meteu conversa com ele, sobre a cruz dos afogados, pois toda a gente conhecia já, nessa altura, as pesquisas de Amaro junto das autoridades municipais, sobre o Ilhéu sinistro.
Era um velho desdentado, há muito ultrapassado dos oitenta anos de idade, que ali vivia desde que nasceu e se chamava Albertino, por todos apelidado, carinhosamente, por Ti Tino.
Pois Ti Tino lembrava-se, em criança, de ter ouvido alguém comentar, entre os velhos de então, que a cruz dos afogados era uma homenagem a um padre, que ali teria morrido, há muitos anos atrás.
Com esta nova pista em mente, Amaro foi conversar com o pároco local, que, de tão jovem que era, nunca tinha ouvido falar nessa história do padre afogado. Mas disponibilizou-lhe a consulta dos registos paroquiais e, melhor do que isso, deu-lhe os contactos do arquivista da diocese, onde poderia encontrar, não só muito mais informação para a pesquisa, como também um auxiliar precioso, conhecedor profundo da história da diocese e das várias paróquias que a compõem. Foi então que Amaro conheceu o cónego Faustino, historiador e arquivista da diocese, a quem expôs longamente a sua história e os objetivos da pesquisa.
O clérigo tinha conhecimento da existência da cruz e de uma velha história de um padre afogado naquela praia, oriundo, segundo ele, de um seminário local, entretanto encerrado. Mas não tinha os pormenores de memória. Ficou de recolher documentação sobre o facto e reunir com Amaro, passados alguns dias.
No dia marcado, Faustino surgiu com dois velhos volumes, manchados pelo tempo e a humidade, e uma longa história para contar, que Amaro ouviu avidamente. Parece que, no século XVIII, existia um pequeno seminário naquela praia, dedicado a Nossa Senhora do Carmo. Na verdade, era uma mera dependência do seminário maior, instalado na sede episcopal, onde os jovens seminaristas iam veranear. Uma espécie de colónia de férias, onde se deslocavam durante a canícula, juntamente com os professores, para prosseguirem os estudos em ambiente mais saudável, que por vezes incluíam exercício físico e banhos de mar, na praia.
O local terá ainda sido usado, em tempos pestilentos, para afastar os seminaristas dos eflúvios deletérios da cidade e permitir-lhes continuar os estudos em local arejado, junto ao mar, onde o ambiente era muito mais saudável.
Sucedeu contudo, no Verão de 1782, um grupo de jovens seminaristas mais irrequietos, a banhos na praia, lembrar-se de trepar ao ilhéu, para daí mergulharem no mar, provavelmente numa prática recorrente, que nunca tinha dado problemas anteriormente.
No entanto, dessa vez, um deles ficou ferido na queda. Um dos professores, douto mestre em latim e bom nadador, tentou salvá-lo, enquanto o jovem se debatia, provavelmente com dores, incapaz de nadar.
O resultado foi funesto, porque não só o professor não conseguiu resgatar o enfermo, como se deixou envolver pela força da desesperação do rapaz, sendo ambos engolidos pelo mar. Os corpos só terão sido recuperados vários dias volvidos, a muitas léguas dali.
O episódio foi tão marcante que, não só foi mandada erigir aquela cruz, no ilhéu maldito, abençoando a alma dos falecidos e relembrando, aos vivos, os perigos daquele rochedo, como o próprio seminário foi abandonado, vendido entretanto a leigos.
Amaro ficou curioso com o nome do seminário, pois a velha casa da sua família chamava-se Casal do Carmo, e pediu ao cónego se era possível determinar a localização do velho seminário. Este abriu um dos velhos volumes e mostrou-lhe desenhos do edifício e a descrição da localização do mesmo, junto a uma capela, dedicada a Nossa Senhora do Carmo, nas arribas perto da aldeia.
Era precisamente o local onde estava instalada a sua velha casa de família. A capela ainda existia, embora estivesse fora dos limites da propriedade. Mas não era por acaso que a habitação se chamava Casal do Carmo, porque terá tido, na origem, o edifício do antigo Seminário, junto à capela do mesmo nome.
Entusiasmado com a descoberta, Amaro recolheu toda a informação que pôde, sobre o seminário e o triste evento relatado, decidido a escrever um livro, contando a história da sua casa, do seminário que a precedeu e das funestas circunstâncias que levaram ao seu abandono e venda à família, sendo ele o atual proprietário de tão antigo edifício, carregado de tradição, e fazendo assim renascer a memória da velha cruz dos afogados e dos nomes das vítimas, reassociadas ao local e à história da freguesia.
15 de Março de 2023
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fotoortografias · 1 year
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Ameaça
Singelo quadro pintado a branco e a sombra.
Uma parede caiada, com o sol a exaltar-lhe a alvura, com uma abertura térrea, de onde pendem tiras, de material indefenido, que impedem o acesso à obscuridade e à frescura do interior, quer aos insetos, abundantes na canícula, quer aos olhares indiscretos, como o meu.
Mais acima, uma varanda perfeitamente rectangular, erigida em barras de ferro, de negro pintadas, sobre uma pequena base de alvenaria, exibe um estranho pavilhão, de longa folhagem seca, que esvoaça à brisa ligeira.
Por detrás das grades, uma porta de madeira crua, com duas portadas duplas, uma fechada e outra aberta, para uma completa escuridão.
Em baixo, junto às farripas da insólita abertura rente, destaca-se uma figura feminina, totalmente vestida de negro.
Enverga um longo vestido preto, pregueado, e cobre os ombros com um xaile da mesma cor, de onde pendem, sobre os braços, longos fiapos.
Cabelo igualmente negro, apanhado numa longa trança, que mal se vê, sobreposta à mantilha.
Uma das mãos é levada à parte inferior do rosto, num gesto de quem projecta um grito, um chamamento à distância, ou então apenas acena a quem permanece invisível, para nós.
A outra permanece oculta, mas segura uma intimidante barra de ferro, curvada na ponta, assemelhando-se a um pé-de-cabra.
Esse pequeno detalhe, que quase passa despercebido, ao primeiro olhar, traz uma inquietação inesperada, ao que parecia ser uma imagem pitoresca e pacífica, de uma terra seca e solarenga.
Ficamos a desejar que seja apenas o instinto defensivo da mulher, a induzir o carrego de tão inusitado instrumento e que nenhuma ameaça real paire, sobre tão bucólica imagem e tradicional personagem.
04/03/23
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fotoortografias · 1 year
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Raiva
A simplicidade da miséria num retrato a preto e branco.
Uma criança negra, de farta cabeleira e género indefenido, solitária, no meio de um campo de algodão, com o cabo de madeira, de um instrumento de trabalho, nas mãos, cuja natureza permanece oculta, por entre a plantação.
Olha a lente, ou o seu portador, com um misto de curiosidade, de desafio e de raiva.
Veste uma grande camisa branca, quem sabe se do mesmo algodão que a cerca, muitos números acima do seu. É uma camisa de adultos, trespassada, em segunda ou terceira mão, para o seu jovem corpo, cobrindo-lhe até às mãos. Sobram as falanges à vista, por entre o tecido amontoado.
Nas pernas, umas largas calças pretas, tão grandes que quase poderiam passar por uma saia, não fosse prolongarem-se até aos tornozelos, onde se escondem finalmente, por entre as folhas do campo, mantendo assim, num ligeiro mistério, a sua natureza.
Os pés adivinham-se descalços.
04/03/23
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fotoortografias · 1 year
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A Festa
Numa rua popular, de um bairro operário, onde se sucedem dezenas de casas iguais, umas coladas às outras, a perder de vista, montou-se uma longa mesa de festa, provavelmente constituída por tábuas corridas, dispostas em cavaletes improvisados e cobertas por toalhas de várias cores e padrões.
Sobre ela, há um interminável rol de vitualhas, umas mais facilmente identificáveis que outras.
Há sanduíches com fartura, com recheios indeterminados, mas provavelmente variados. Há pratos cheios, com o que podem ser panquecas ou crepes, com amplos conteúdos sobrepostos, de natureza indecifrável, mas abundante. Há copos cheios, de sumos ou refrigerantes. Um recipiente parece conter um bolo, à espera de inauguração. Outro esconde o recheio, que pode ser de batatas fritas ou então do misterioso ingrediente, que coroa as alegadas panquecas. Há também pequenos bolos, com cobertura em açúcar glacé, que repousam em sobra, nalguns pratos, mas enchem sobretudo as mãos e as bocas dos comensais.
À volta deste improvisado banquete, há dezenas de crianças, de ambos os sexos e variadas idades, que dividem a atenção entre a comida que têm nas mãos e na boca, a que repousa expectante na mesa, os copos repletos de sumos, as iniciativas uns dos outros e sobretudo, as ações e recomendações das mulheres que os rodeiam.
Enquanto as crianças repousam sentadas, à volta da mesa, há uma boa dezena de mulheres jovens, de aspeto manifestamente maternal, em pé, assistindo a refeição. Enchem os pratos e os copos das crianças, asseguram a ordem entre os jovens convivas, atendem pedidos e reclamações choramingadas, dos mais pueris, perante o olhar afetuoso de outras mulheres, mais velhas, as quais, afastadas dos afazeres do repasto, permanecem sentadas, atentas à azáfama ou de pé, trocando infindáveis conversas, de dia de festa.
Por sobre a mesa, ligando os dois lados da rua, vêem-se cordas esticadas, com pequenos triângulos coloridos, assinalando a ocasião festiva.
Só uma criança, de óculos e lenço na cabeça, parece descortinar, desconfiada, a lente que capta a cena, para a posteridade.
04/03/23
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fotoortografias · 1 year
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Diálogo Insólito
Num quintal térreo, cercado de madeira, com uma casa ao fundo, de idêntico material, eleva-se uma mesa, também ela de pau, mas coberta por uma toalha florida.
Sentada, num banco corrido, uma idosa camponesa, de lenço branco na cabeça e longa bata pintalgada, amassa com os dedos grossos, dos muitos anos de trabalho, uma substância indeterminada, num recipiente de plástico.
À sua frente, um galo emproado e vistoso, empoleirado num banco de madeira, contempla os afazeres da camponesa, como se com ela trocasse impressões, ou debatesse as técnicas de melhor preparar, o que pode muito bem ser a sua próxima refeição e das suas súbditas, no reino da capoeira.
As galinhas depenicam, pelo chão do quintal, de rabos espetados, indiferentes ao diálogo e ao provável banquete que se prepara.
A mulher, porém, olha afavelmente o galináceo, parecendo apreciar-lhe a conversa e a companhia, apesar do ar arrogante do macho.
Por entre uma abertura na cerca, vê-se a aldeia rústica, totalmente alheia a este estranho diálogo.
03/03/23
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Expressões Tristes
Duas figuras sui generis destacam-se, num invulgar retrato de idade provecta.
Ambas são muito jovens, uma é infante de tenra idade, aparentando ter adquirido, recentemente, a destreza do caminhar, pelos seus próprios meios. A outra é um pouco mais velha, com ar de quem já exerce funções, muito além do que a sua idade, ainda infantil, poderia supor, mas que a experiência e a necessidade, inquestionavelmente, aperfeiçoaram.
À primeira vista, dir-se-iam duas meninas, de aspecto rural, mas de imaculada limpeza, deixando adivinhar dia de festa.
Na verdade, não é só a limpeza que denuncia a ocasião excecional, mas a própria riqueza e exuberância das vestimentas.
A mais pequena usa uma touca, ricamente trabalhada, em bordados e rendas, uma camisa de mangas em balão, em tecido floreado, coberta por um colete, de pele trabalhada, com rosáceas na frente e nas ilhargas. Enverga ainda uma grossa saia rodada, que deixa vislumbrar, na fímbria, outra saia interior, em bordados e arrendados. Nos pés uns pequenos e coçados botins infantis, em pele rústica.
A maior traja mais simples. Um manto negro cobre-a, da cabeça à cintura, com um carrapito no topo. Lenço florido enrolado na cabeça, escondendo integralmente os cabelos. No pescoço vêem-se colares de contas, enrolados em sucessivas voltas, sobre uma camisa bordada, que mal se vê, sob o manto. Uma longa saia pregueada, aos quadrados, completa a vestimenta, sem deixar vislumbrar o calçado.
A menina envolve carinhosamente a criança, que por sua vez, lhe agarra as mãos avidamente, como se sentisse medo ou vergonha.
Ambas exibem uma expressão de tristeza, claramente contrastante com a riqueza das vestes e a aparente festividade da ocasião.
A explicação pode esconder-se no facto, insólito, da criança, alegadamente, se chamar António.
03/03/23
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fotoortografias · 1 year
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A Vendedora de Milho
Uma mulher dorme, exausta, numa tenda de venda alimentar.
À sua frente vêem-se espigas de milho assadas, em cima de uma grelha e ao lado das brasas, já cinzas.
Mais ao lado, algumas espigas, manifestamente não passadas pelas brasas, repousam noutra grelha, colocada no topo de uma grande panela, de ar desgastado pelo uso.
Uma lâmpada nua e acesa, com um cordão pendente, para accionar o interruptor, está suspensa do teto da tenda, bem por cima da mulher adormecida.
Vê-se ainda um caos de sacos, meio cheios ou meio vazios, um banco de pernas para o ar, em cima deles, e roupas visivelmente usadas, pendendo de improvisados cabides, feitos de estantes metálicas ou de carrinhos de transporte de volumes pesados.
Junto às espigas assadas, destacam-se dois recipientes de condimentos, prestes a serem usados, por qualquer cliente, faminto da especialidade exposta.
Ao fundo da tenda, pendurados na lona, dois objetos se destacam, denotando justas cautelas ou apenas obrigações regulamentares, um pequeno extintor de incêndio e um kit de primeiros socorros.
A mulher, de feições ameríndias e longos cabelos negros, provavelmente jovem, mas aparentando meia idade, desgastada pelo trabalho e pela pobreza, de mãos entrelaçadas e caídas sobre o colo abundante, descansa de olhos fechados, enquanto a festa parece decorrer, no exterior da tenda.
Enquanto os clientes permitirem, enquanto o milho não escoar, enquanto o sonho durar, a festa fica no exterior da tenda e a paz recobra o cansaço, de quem dela só conhece o trabalho.
03/03/23
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fotoortografias · 1 year
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A Valsa
No amplo salão soava uma estranha valsa, que deixava muitos indiferentes, mas não uma menina, de oito anos de idade, chamada Heloísa.
Está, como por magia, ficou enfeitiçada por aquelas notas doces e envolventes e rodopiou, sozinha, ao ritmo dos andamentos da valsa, até junto do pianista.
O homem olhou a criança, com olhar terno e grato. Amava a música e custava-lhe tocar para o desinteresse geral, como se fosse um mero ruído de fundo para harmonizar conversas fúteis.
O seu sonho era tocar num grande auditório, para um público silencioso de milhares de ouvintes, usufruindo de cada nota, com o mesmo prazer que ele tinha ao tocá-las.
Infelizmente não conseguia encher auditórios, o melhor que fazia, era tocar para restaurantes e bares, razoavelmente compostos de publico.
Era contudo um público ingrato, que tomava a música como mero ambiente, quantas vezes lamentando a sua intrusão, por entre as conversações vivas de cada repasto, em casal, em família, em negócios.
Só os solitários apreciavam o trabalho do pianista e genuinamente ouviam, agradecidos, a música que lhes era ofertada, em complemento à refeição. Os solitários e as crianças.
Na verdade, as crianças eram, frequentemente, as mais atentas ouvintes da música interpretada. Talvez pelo insólito de terem um estranho a tocar piano enquanto comiam, ou pela desculpa, que proporcionava, para as afastarem da mesa e da companhia chata e trivial dos pais, ou até pela simples quebra das regras, da banalidade quotidiana, da rotina.
Mas Heloísa não era como as outras crianças. Não era apenas a novidade ou a curiosidade que a impeliam para junto do piano e da música. Era o encanto sincero, pela harmonia daquelas notas musicais, que se entranhavam no seu espírito, como um feitiço. Um toque de magia que a embalava e fazia rodopiar, sonhando com grandes salões de baile e príncipes encantados, como aqueles dos filmes da criança que ela era.
A menina dançou, dançou e o pianista, também ele maravilhado pelo desvelo e ternura da sua jovem ouvinte, tocou e tocou, acompanhando os movimentos instintivos da menina na sala, à roda do piano.
Parecia-lhe que tocava só para ela, que aquela jovem alma delicada, era a destinatária final das suas notas, da música que tanto amava e que tinha o privilégio de partilhar, com outros seres sensíveis, como aquela menina.
No final, não resistiu em cumprimentar a sua devota ouvinte. Cumprimentou-a com deferência, como se fosse a princesa, que efetivamente era, nos sonhos da menina. Esta agradeceu encarecida, fazendo uma graciosa vénia de agradecimento, devolvida com todo o rigor pelo pianista.
Carinhoso, explicou a Heloísa que aquela música era uma valsa, escrita há muitos anos por um senhor chamado Bill Evans, chamada Valsa para a Debby, que era uma menina como ela, sobrinha do compositor.
A menina imaginou Debby como uma princesa, com um longo vestido rodado, orgulhosa por ter um tio compositor, que escrevia valsas tão bonitas e lhas dedicava.
Sentiu mesmo um bocadinho de inveja, dessa Debby. Também ela gostaria que alguém escrevesse uma música tão bonita para ela, que ficasse para sempre a lembrar o seu nome, enquanto outras dançavam apaixonadas, aquela valsa romântica.
Nunca mais esqueceu aquela noite, do pianista e da valsa.
Vinte anos depois, Heloísa mulher, foi a um clube de jazz com as amigas e, para seu espanto, ouviu uns acordes familiares que lhe despertaram de imediato memórias.
Era a sua valsa, tocada agora de modo muito diferente, mas igualmente atraente, com a vantagem de aqui, o ambiente estar silencioso, apreciando o talento dos músicos, na interpretação daquele clássico do jazz.
As notas levavam-na de volta àquele salão barulhento onde, vinte anos antes, um pianista otimista, tocara aquela mesma valsa para ela. Só lamentou não poder levantar-se e rodopiar, como fez em criança, entregar-se ao doce embalo das notas melosas que a encantaram tanto em mulher, como em criança.
No final do set não resistiu a ir cumprimentar o pianista e agradecer-lhe, ter tocado aquele tema que tanto a apaixonara, desde criança. Contou-lhe mesmo a história desse dia, vinte anos atrás, em que dançara sozinha aquela valsa e em que invejara aquela Debby, a quem fora dedicada tão maravilhosa composição.
Ele agradeceu-lhe também o interesse e sobretudo o bom gosto, porque era de facto uma composição lindíssima e uma das suas favoritas. Ficou encantado que lhe tenha agradado e convidou-a para ficar para a segunda parte, onde iriam tocar outras excelentes músicas, que ela não iria deixar de gostar.
No começo da segunda parte o pianista pegou no microfone e informou o público que gostaria de voltar a tocar a Valsa para a Debby, mas que desta feita, seria dedicada a uma senhora muito especial, chamada Heloísa, que se encontrava no público e que, desde criança, tinha uma paixão por este lindíssimo tema de Bill Evans.
Então, contrariando o alinhamento do concerto e para surpresa dos outros músicos, repetiram a Valsa Para Debby, que desta vez passou a ser a Valsa para Heloísa, nesta sua nova versão.
Heloísa, emocionada com a dedicatória, não resistiu a levantar-se e dançar, perante o público e os músicos, aquela mesma valsa que a levava de volta à infância e seus oito anos de idade. Dançou, imitando, tanto quanto se lembrava e lhe permitia a exiguidade do espaço, os movimentos que fez em criança, ao som daquela valsa.
Desta noite encantada nasceu um amor incondicional, entre o galante pianista e a encantadora Heloísa. Amor esse coroado com um casamento e dois filhos, alguns anos mais tarde.
Casaram ao som da Valsa para Debby, tocada pelo noivo, e chamaram Débora à primeira filha e Guilherme ao segundo, em homenagem à Debby da valsa e ao seu compositor Bill/William Evans.
E um dia o pianista escreveu uma bela valsa, que gravou em disco e tocou repetidas vezes, como um dos seus temas de maior sucesso, chamado a Valsa para Heloísa, baseado precisamente no mítico standard, do imortal Evans.
1 de Março de 2023
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A Vendedora de Castanhas
Todas as manhãs, Dionilde saía de casa, à mesma hora, para fazer as compras do dia.
Às 9 horas em ponto, a senhora, com oitenta e cinco anos de idade, mas com aparência salutar e discernida, descia as escadas do seu modesto apartamento, no centro da cidade, e dirigia-se primeiro à leitaria da esquina, para tomar um pequeno almoço, que consistia, impreterivelmente, de um chá e um queque, e depois à mercearia, um pouco adiante, onde se abastecia de duas ou três peças de fruta e alguns legumes para a sopa do dia. Comia pouca carne e peixe. Comprava de vez em quando um frango, que lhe dava para múltiplas refeições, ou uma posta de bacalhau, nalgum dia especial.
No regresso, parava sempre, para dois dedos de conversa e meia dúzia de castanhas assadas, na D. Engrácia, a vendedora local, com o seu típico fogareiro assador ambulante.
Na verdade, as castanhas eram um vício pouco adequado à sua idade e saúde odontológica. Dionilde escolhia sempre as mais tenras, mais compatíveis com a sua frágil dentição. Aliás o hábito diário, fazia com que Engrácia já tivesse o cuidado de preparar, cuidadosamente, meia dúzia de castanhas, mais tenras, para a sua mais fiel cliente, que, por volta das dez horas da manhã, sempre lhe aparecia, para comentar as conversas do dia, acompanhadas de meia dúzia de castanhas.
O ritual tinha por pressuposto não apenas a velha paixão de Dionilde por castanhas assadas, que já vinha de infância, mas sobretudo o conforto que lhe dava aquela presença diária, do fogareiro em brasas, do fumo e do cheiro a castanhas, na rua. Era um ponto acolhedor, no frio da rua, como uma lareira, no caminho de regresso a casa, onde se podia aquecer, no conforto de uma conversa com a vendedora, entre algumas castanhas mordidas.
Mesmo nos dias de chuva, Dionilde tentava manter o ritual. Se, à hora costumeira, o tempo estava impeditivo, ela a contragosto, esperava pela primeira aberta, para cumprir o périplo diário. Nem que fosse de fugida. Mas não conseguia ficar fechada em casa. Precisava daquela rotina para viver.
Várias vezes comentou, com Engrácia, que eram as suas castanhas que a mantinham viva. Enfim, não propriamente as castanhas, mas o hábito, a rotina, o prazer daqueles momentos de convívio social, que constituíam o pouco que lhe restava, na sua vida solitária e limitada pela idade.
No Verão, Engrácia trocava as castanhas pelos gelados, mantendo a atividade, no seu canto habitual.
Dionilde, embora preferisse o calor do braseiro e o cheiro e sabor das castanhas à frescura dos gelados, não deixava de parar, para a conversa diária com Engrácia. Esta, à falta de castanhas, lá a convencia a provar um sabor ou outro de gelado, mas a senhora não fazia mais do que provar. O frio é inimigo dos velhos, mesmo no calor do Verão.
Felizmente que a estação dos gelados não durava mais que três meses. O resto do ano era das castanhas, do fumo e das brasas acolhedoras.
Dionilde comentava com Engrácia a solidão em que vivia, com os filhos longe, viúva há décadas e entregue aos dramas televisivos e aos medicamentos, amenizada apenas por aquele passeio higiénico, nas manhãs no bairro. Engrácia retribuía-lhe com os seus dramas familiares, o marido desempregado, aos caídos, os filhos desencaminhados, nos vícios das grandes cidades, e ela, único suporte e sustento familiar, a trabalhar, sem parar desde a infância, para quem não o merece. Não fossem as clientes, como Dionilde, a quem queria com amizade, e a vida seriam só tristezas.
E Dionilde pensava que ninguém está bem neste mundo, cada qual com a sua cruz para carregar. Mas se não fossem as tristezas, de que falariam as pessoas, sobretudo as velhas como ela? Tudo tinha lugar nesta existência, para que o equilíbrio se mantivesse. Sem a tristeza, não haveria como apreciar uma boa conversa, com a sua amiga Engrácia, trocada entre meia dúzia de castanhas roídas, ao calor do fogareiro. Deus escrevia direito por linhas tortas. Dava a solidão e a tristeza, para que as pudéssemos curar, uns com os outros.
E assim passava os dias Dionilde, enganando a morte e a solitude.
Até que um dia, no seu périplo diário, não encontrou a vendedora de castanhas. Estranhou a falta, perguntou aos comerciantes da rua, mas ninguém sabia dela. Estaria talvez doente.
Dionilde lamentou nunca ter trocado contactos com Engrácia. A presença dela era uma tão grande certeza, na rotina das suas manhãs, que nunca precisaram de um contacto. Bastava aparecer, que ela sempre ali estava, com o conforto do fogaréu ou da banca de gelados e da sua companhia. Agora gostaria de lhe telefonar, de saber da sua saúde, das razões da ausência, e não conseguia.
Lembrou-se, ainda, das vezes que com ela comentou, que eram as suas castanhas e sobretudo a sua companhia, que a mantinham viva. Por isso interrogou-se, se não teria chegado a sua hora?
Três dias depois o fogareiro das castanhas voltou a acender-se, na esquina da rua de Deonilde, mas já não por Engrácia. Esta tinha falecido, no dia da sua ausência, vítima de um fulminante enfarte agudo do miocárdio. Agora era o viúvo quem assava as castanhas na rua.
Mas Dionilde já não deu pela troca. No mesmo dia em que faleceu a sua amiga, deitou-se preocupada com a ausência dela e da falta de notícias da sua saúde, para não mais voltar a acordar.
27 de Fevereiro de 2023
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O Livro
Dalila tinha o enorme desgosto de ter perdido a mãe demasiado cedo.
Teve a felicidade de uma infância e adolescência acompanhadas pela mãe, recheadas de carinho e compreensão. Mas quando finalmente chegou à idade adulta e gostaria de lhe retribuir todo o amor e cuidados que recebeu, na infância e juventude, esta faleceu precocemente, de doença fulminante, e Dalila viu-se órfã de mãe, com um enorme remorso, por não ter tido tempo suficiente, para dar à mãe toda a atenção que esta merecia.
Os pais tinham-se divorciado na sua infância, tendo o pai constituído nova família. Pelo que o relacionamento com o progenitor, embora não fosse propriamente conflituoso, era, no mínimo, frio. Razão pela qual Dalida se sentiu verdadeiramente órfã, após a morte da mãe.
Deu consigo a recordar, cada momento passado com a mãe, as brincadeiras de criança, os ensinamentos maternais, os gostos partilhados, as viagens juntas, as velhas amizades.
Havia um longo processo de luto a fazer, cada uma dessas recordações era um passo determinante, para aceitar a morte prematura da mãe e reconciliar-se pacificamente com a sua memória.
Dalida percorreu os livros da mãe, em busca de memórias comuns, de histórias contadas em criança, de obras recomendadas pela mãe, que ela nunca chegara a ler e que agora, finalmente, se predispunha a arranjar tempo para a leitura. Até descobriu livros seus, de infância, a que tinha perdido o rasto e que agora reapareciam, por magia, entre os pertences da mãe.
Era uma chuva de memórias, muitas vezes dolorosas, que frequentemente levavam Dalida às lágrimas. Mas nestas alturas o choro faz falta, ajuda a fazer o luto, a interiorizar a perda e a aceitá-la, eventualmente.
Ao percorrer todos aqueles livros, lembrou-se de um, em particular, que a mãe lhe contou ter lido na infância e a ter marcado muito, chamado o Escaravelho do Diabo.
A mãe por diversas vezes quis ler-lho, mas nunca o conseguiu descobrir na sua colecção, tendo-se convencido que o teria perdido, ou emprestado a alguma amiga de infância, que nunca mais lho devolveu.
Também Dalida revolveu tudo, em busca dessa obra perdida, mas sem qualquer sucesso.
Um dia, passando por uma livraria, perguntou por alguma edição recente da obra, mas disseram-lhe que, há muito, não era editado em Portugal, apenas no Brasil, sendo por isso necessária a sua encomenda e importação do Brasil.
Não se deu ao trabalho, por ter tantas outras coisas mais importantes e urgentes, na altura, para fazer. Dar conta do espólio, deixado pela mãe, pois tinha seis meses para entregar a casa ao senhorio e não sabia o que fazer a tanta coisa, ainda por cima com elevado valor sentimental.
Felizmente contou com o apoio do companheiro e de algumas amigas, que muito a ajudaram naqueles momentos difíceis.
A pouco e pouco foi selecionando as coisas, levando para sua casa o que tinha maior valor, económico ou sentimental, vendendo muitas coisas e oferecendo outras, às amigas ou familiares.
Foi um período traumático, para Dalida. Os efeitos da perda da mãe exponenciaram-se, naquela exposição quotidiana ao passado, aos objetos pessoais e íntimos da mãe, às memórias de uma infância distante, perdida para sempre.
Quando finalmente terminou o trabalho e entregou a casa ao senhorio, Dalida sentiu um enorme alívio, como se tivesse acabado de cumprir uma pena ou sido achada curada, após uma doença grave e prolongada.
Sentia que, finalmente, começava a fazer o luto da mãe. Agora já poderia concentrar-se nas boas memórias, nas recordações felizes, nas lembranças pacíficas, que lhe aqueciam o coração. Esquecer a doença, o funeral, a casa cheia de recordações, de tralha para remover.
Sucedeu, passados alguns meses, Dalida deslocar-se à feira do livro, como era seu hábito. Ao passar pelo corredor dos alfarrabistas, lembrou-se do velho livro do Escaravelho do Diabo e tentou descobrir um exemplar, entre os muitos livros expostos.
Perguntou a um expositor pela obra e ele disse-lhe ter um exemplar na loja. Se ela quisesse passar por ali no dia seguinte, ou deslocar-se á sua loja, poderia comprá-lo.
Dalida ficou extremamente feliz. Finalmente teria oportunidade de ler aquela obra, que a mãe tanto lhe falava, e que marcara, indelevelmente, a infância materna.
Combinaram reencontrar-se, no dia seguinte, no mesmo local.
No dia e hora combinados, lá estava Dalida, impaciente, em busca do Escaravelho do Diabo. O homem não se esquecera. Estava ali, separado e embrulhado, à sua espera.
Dalida pagou e não resistiu a abrir de imediato o embrulho, para desfolhar aquela obra desaparecida, que tanto impressionara a mãe.
Era um livro antigo, uma edição manifestamente manipulada e usada por muitas crianças, ao longo de cinquenta anos ou mais.
Ao abrir as primeiras páginas, viu mesmo escrito a caneta, com letra de criança, o nome de Aurora.
As lágrimas vieram-lhe imediatamente aos olhos.
Era o nome e a letra da mãe.
Aquele era precisamente o exemplar perdido, que a mãe lera em criança, que tanto buscaram, ao longo dos anos, e que, por algum motivo, viera parar às mãos daquele alfarrabista, décadas depois.
25 de Fevereiro de 2023
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O Quadro
A loja de Duarte era um velho armazém, cheio de antiguidades, à espera de descoberta.
Longe do glamour dos salões de exposição, em antiquários de luxo, com artigos brilhantemente restaurados ou de assinalável raridade, a preços especulativos, na loja de Duarte havia de tudo um pouco, geralmente à espera de restauro ou do comprador ideal, capaz de se apaixonar por uma peça coberta de pó e de lhe restituir o brilho, esquecido no tempo.
No entretanto, acumulavam-se umas junto das outras, num labirinto que podia ser um paraíso, para quem gosta de descobrir raridades no meio do caos, mas também um pesadelo, para os outros, sobretudo os alérgicos ao pó ou ao cheiro a mofo.
Duarte contava-se, obviamente, no primeiro grupo. Por isso nunca deitava nada fora, acumulava no armazém, juntamente com espólios que ia comprando, geralmente de herdeiros apressados a transformar em dinheiro, o recheio das casas de velhos falecidos, e que ele guardava religiosamente, à espera da altura e do cliente ideal, para vender cada peça.
Havia coisas banais, consideradas lixo pela maioria, mas que passadas décadas, se tornavam ouro, procurado por colecionadores saudosistas. E sempre aparecia alguma coisa de valor, no meio da tralha. Algo que, só por si, pagava a compra por atacado. O resto era bónus.
Entre os artigos, constantes daquele enorme bricabraque, estavam muitos quadros, por vezes retratos de pessoas, desconhecidas para Duarte. Obras do tempo em que era fino encomendar um retrato a óleo do próprio e pendurá-lo na casa de jantar. Dava um toque aristocrático, um chic muito característico do novo-riquismo da belle époque.
A maioria destes quadros estavam amontoados, pelos cantos do armazém, incapaz de absorver tamanha variedade pictórica, nas suas paredes. Mas alguns estavam expostos, apenas aqueles que Duarte mais apreciava, que exibiam assinaturas de algum pintor consagrado ou que mais facilmente poderiam ser vendidos, na sua experiente opinião.
Entre eles, havia um quadro que Duarte muito gostava e que dispôs em lugar de destaque. Era uma pintura a óleo de um importante industrial, falecido há algumas semanas, num aparatoso acidente de automóvel, numa famosa curva da marginal da capital.
As circunstâncias da morte do retratado, o facto de ser uma figura conhecida, nos meios colecionadores, e também a assinatura de um pintor em crescente valorização no mercado, levaram-no a destacar a obra, na esperança de encontrar rapidamente um comprador, disposto a pagar um justo preço, por aquela tela de excepção.
Infelizmente, ainda não tinha aparecido, mas Duarte tinha a certeza que, mais tarde ou mais cedo, o quadro seria bem vendido e iria enriquecer a coleção de algum museu ou coleção privada.
Até lá, contemplava, com admiração crescente, a obra, à medida que se ia cruzando com ela, expectante do resultado da sua aposta, numa breve e excelente valorização.
Sucedeu um dia, Duarte passar pelo quadro e estranhar as feições do retratado. Não lhe parecia a mesma pessoa, estava mais novo, de expressão mais triste. Tudo o resto era igual, a vestimenta, o cenário, até a pose. Apenas as feições mudaram.
De repente, pensou que alguém teria substituído o seu quadro por outro. Mas após verificar a assinatura do artista e o certificado de autenticidade, no verso, concluiu que era impressão sua. Mas ficou intrigado com a situação.
Passados mais alguns dias, voltou a olhar espantado para o quadro, pois este tornara a mudar as feições do retratado, de forma evidente.
Voltou a verificar o certificado de autenticidade da obra, mas não satisfeito, decidiu fotografar a tela, para comparar com documentos anteriores.
Descobriu, na documentação da compra, fotos do quadro na altura. Ao compará-las com a nova foto, verificou, sem qualquer dúvida, que a pessoa retratada era diferente.
Não sabia o que pensar, deste estranho fenómeno.
Alguém teria trocado o quadro, era a única explicação possível, mas já por duas vezes, pois tinha a certeza que, entre as duas fotos, viu ainda um terceiro rosto retratado, que não chegou a fotografar.
E tudo isto, sem alterar mais nada no retrato, além do rosto, sem qualquer alteração na assinatura do artista e sem que o certificado de autenticidade se mostrasse alterado ou violado. Era um mistério.
Resolveu contratar um perito, para analisar a obra e aconselhar-lhe o que fazer.
No dia agendado, Duarte constatou com surpresa, que o retratado já tinha um rosto diferente.
Fotografou mais uma vez a tela e mostrou ao técnico as três versões do quadro, que já tinha fotografado, existindo ainda uma quarta que ele, infelizmente, não chegou a fotografar.
O homem ficou pasmado, com o fenómeno. A primeira versão do quadro, comprada por Duarte, era do seu conhecimento e estava devidamente catalogada, na obra do autor. Já as outras, designadamente a que tinha à sua frente, eram-lhe completamente desconhecidas. Parecia uma brincadeira de mau gosto.
Sugeriu levar o quadro para testes químicos, de modo a confirmar, indubitavelmente, a sua autenticidade e perceber que materiais eram aqueles, usados na sua elaboração, que pareciam mudar as feições do retratado, periodicamente.
A obra foi devidamente embalada e levada, cuidadosamente, para o laboratório. O perito quis estar presente na altura dos testes, intrigado com aquele estranho fenómeno.
Para sua enorme surpresa, quando o quadro foi desembalado no laboratório, para a realização dos testes, já mostrava, inquestionavelmente, um rosto diferente dos anteriores, documentados em fotografia.
Tirou a foto ao novo retratado, para memória futura, e deixou os técnicos trabalharem, incapaz de encontrar uma explicação lógica para o sucedido.
Após a realização de provas minuciosas, à idade e qualidade dos materiais e técnicas do artista, a conclusão era desconcertante. O quadro era autêntico e com a idade que deveria ter.
Quanto às mudanças permanentes, no rosto do retratado, a perícia não conseguia encontrar nenhuma explicação plausível.
A tinta da zona do rosto tinha a mesma idade que a do resto do quadro e era de qualidade totalmente uniforme com o resto. O mesmo se diria do estilo, perfeitamente consentâneo e enquadrado com as técnicas do autor.
Tanto quanto era possível detectar nos exames, não existia absolutamente nada de especial no rosto daquele quadro, muito menos que justificasse as mutações verificadas.
Duarte ficou desiludido com os resultados. Seguramente, algo lhes estava a escapar.
Passou a documentar, minuciosamente, cada nova alteração de feições, do rosto do quadro, e contratou um investigador, para descobrir quem eram aqueles rostos, que surgiam na tela, e bem assim, para recolher todas as informações existentes sobre aquela obra, desde que foi pintada, até ao presente.
Passadas algumas semanas, o investigador concluiu o seu relatório e veio apresentá-lo a Duarte. Segundo ele, os rostos eram todos de pessoas falecidas em acidentes de viação, precisamente na mesma curva da marginal da cidade.
E o mais estranho é que, ao falar com empregados do industrial que encomendou o quadro, descobriu que há muito o mesmo tinha fama de amaldiçoado, pois não só o fenómeno já era conhecido dessas pessoas, a mudança súbita de feições, à medida que alguém falecia naquela fatídica curva, como a mesma tinha sido o local de morte quer do dono da obra, quer ainda do seu autor, alguns anos antes.
Razão pela qual a família vendeu, mesmo barato, aquele quadro maldito.
Duarte não acreditou naquela história fantástica. Achou que o investigador tinha excesso de imaginação e ameaçou mesmo, não lhe pagar o serviço, a menos que apresentasse uma explicação plausível.
No entanto, passada uma semana, ao circular pela fatídica curva da marginal, durante a noite, foi abalroado por um carro, despistado em sentido contrário, e perdeu a vida de imediato.
Nem pôde assim ver o seu rosto aparecer no quadro, que tantas preocupações lhe deu, desde que o comprou, um ano atrás.
24 de Fevereiro de 2023
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