Tumgik
quartadeficcao · 3 years
Text
Azar Não Custa – Parte 3
Os ingénuos acreditam que Deus descansou no sétimo dia, mas não, foi no oitavo. Porque no sétimo ele estava ocupado dizendo: “Que haja o deus da porrada.” E aí eu surgi.
Foi muito bom ter jogado aqueles socos nos ossos do Edu, se não fossem eles, não teria tido a punição com ele e não teríamos desenvolvido nossa amizade. Mas, confesso que nunca desejei que eu fosse o Edu naquele dia, ninguém merece receber tanto desses punhos brutalmente habilidosos.
— Minhas notas melhoraram tipo um milagre desde que começamos a andar juntos — falei para o Edu enquanto nos sentávamos num banco da escola. — Te agradeço muito.
Era onde nos sentávamos na maior parte do tempo. Sempre que saíssemos de intervalo, ficávamos ali conversando e nos tornávamos carne e unha.
— Não precisas agradecer, mas há algo que podes fazer por mim — respondeu Edu, que tinha um sorriso estranho estampado no rosto. — Isso ia ajudar-me a recuperar minha reputação, apesar de termos mudado de escola, eu ainda tenho a fama de ser um saco de pancada.
— O que você quer que eu faça? — olhei para ele, eu faria qualquer coisa por ele ter mudado as minhas notas, ou melhor, minha vida. Edu ia para minha casa e me ajudava nas matérias. “Você não é burro, apenas não se empenha.” Dizia sempre que eu demorava captar alguma matéria. Aquilo me motivava porque, em casa, meu pai, sempre que mergulhava nos barris da Tina, o que era frequente, me chamava de burro por estar a repetir a mesma classe pela segunda vez. Graças ao Edu, eu já estava na oitava classe.
Quando eu perguntei o que o Edu queria que eu fizesse para ele, sua timidez reapareceu. Aquilo me era estranho, eu havia ensinado ele a não ser um mimado, e era ainda mais estranho porque quem estava ali com ele era somente eu.
— Fala logo o que você quer — falei em um tom impaciente. — Se quiser ajuda com a Kátia, eu posso dar.
— Você me deixa eu encher a sua cara de porrada? Acho que isso pode fazer-me recuperar o respeito que os meninos perderam por mim.
Por que ele se importava tanto com os meninos se as meninas continuavam a gostar do jeitinho dele? Eu era o deus da porrada e ele era o deus delas.
— Tá falando sério? Mas que respeito é esse que você está a falar dele? Sempre te acharam um mimadinho.
— Ser um mimadinho é mil vezes melhor que ser visto como um fraco.
Olhei para o Edu, primeiro pensei em como eu ia fazer aquilo, depois pensei no respeito que as pessoas já iam perder por mim, eu podia até aceitar que uma menina desse-me porrada, mas para o Edu, seria muito humilhante. Porém, pensei em tudo o que ele havia feito por mim, a autoestima que meu pai tirara de mim, ele devolvera.
— Isso não é uma forma de você provar aos outros ser algo que não é novamente? Não precisamos fazer isso. Todo mundo já sabe que nós somos amigos. Andamos sempre grudados.
— Sabe sim, mas podemos deixar de ser.
— Pode me falar como isso vai acontecer?
Edu começou a me explicar. Nós íamos fingir que não éramos mais amigos. Ficaríamos duas semanas sem conversar, na escola, e só íamos nos encontrar às escondidas — se possível. Aceitei o plano e começamos a executá-lo enquanto sentávamos no banco. A nossa amizade perderia a vida aí mesmo.
— Não venha mais na minha casa — gritou Edu se esbravejando.
Levantei-me do banco e olhei para ele. Alguns meninos se aproximaram de onde estávamos, mas a exibição do grande show não seria naquele dia.
— Eu é que não quero mais andar com um mimado como você — falei também. Aquilo era ridículo para mim que, quase soltei um riso. Saí andando enquanto Edu se mantinha sentado.
Enquanto eu caminhava, Kátia se aproximava até onde Edu permanecia e a sua irmã irritante, foi até mim.
— O que se passa com as vossas pessoas? — perguntou ela seguindo a mesma direção que eu.
— Por que você precisa saber? Pensei que você ficaria feliz, afinal, uma vez provocou uma luta entre nós os dois.
— Sei e mil perdões por isso, mas vocês andam grudadinhos e do nada começam a parecer arquirrivais. Isso não faz sentido nenhum, está mais para teatro.
— E somos arquirrivais, você nunca viu o Batman tomando cerveja com o curinga? Quem merece brincar com o Edu. Perdi boa parte dos meus três anos pensando que fôssemos amigos, não sabia que ele falava mal de mim às costas.
— O Edu não é desse tipo.
— Você não pode ir cuidar da sua vidinha por um instante, menininha?
— Vou cuidar é do Edu, seu brutamonte sem coração. — Karla saiu andando. As irmãs tinham um carinho enorme por Edu, apesar de a Kátia sempre implicar com ele.
Naquele dia, enquanto estava em casa, tive vontade de sair para a casa do Edu, mandei uma mensagem para sua mãe usando o celular da minha, dizendo para nos encontrarmos, porém, estava firme no plano. Disse que não era uma boa ideia, alguém podia nos ver, pois ainda eram 15 horas.
Eu não tinha outro amigo para além de Edu, logo que comecei a brincar com ele, achava que os que eu andava com eles não me ajudavam em nada no que prestasse, talvez queriam simplesmente a minha amizade para se sentirem protegidos. Andar comigo era sinônimo de estarem livres de qualquer abuso. Tentei fazer alguma coisa naquele dia, mas nada me fazia não ter saudades do Edu. Eu nunca havia me sentido daquele jeito.
Às 19h30, minha mãe entrou no meu quarto anunciando a chegado do Edu. Ele apareceu em casa de um sobretudo que possuía um capuz do tamanho do mundo. Fiquei feliz por vê-lo, mas não quis demonstrar que sentia sua falta.
— Como deixaram você vir aqui a esta hora? Não vai desmaiar vestido com isso neste calor infernal?
— Eu fingi estar a regar o jardim e fugi, não vou demorar muito, precisamos falar do plano. E este é o meu disfarce. Esqueceu que somos inimigos de mentira? A Karla e a Kátia são nossas vizinhas e a Karla tem uma boca enorme, pode espalhar a nossa farsa na escola.
— O plano, sei — sentei-me na cama e comecei a ouvi-lo, falava todo empolgado com as suas fantasias infantis. Depois de muita falação, eu apenas concordando, saímos caminhando.
— Valeu, Yuki — disse ele colocando o capuz gigantesco e se afastando do nosso portão fazendo um andar idiota de disfarce. Com aquele sobretudo parecia um pinguim mendigo.
Ficamos a partir daquele dia sem conversar, comecei até a aturar a Karla. Uma vez ou outra conversava com ela, tendo que também suportar a insuportável da sua amiga Bionda. Tinha que ter alguém com quem passar o tempo. Eu e o Edu não nos encontramos mais, nem apareceu em casa disfarçado de suas idiotices. Vivíamos apenas nos lançando olhares fuzilantes na escola.
Quando o dia combinado para a luta chegou, acordei sem ânimo. No fundo eu não queria que aquele dia chegasse, mas também não queria magoar o Edu e a mim mesmo, que me sentiria um lixo por não retribuir um favor a um amigo. Mas, depois daquilo, como seria a nossa amizade? Aquele favor para Edu fazia nosso relacionamento parecer que era apenas baseado em troca de favores.
Cheguei na escola enquanto Edu entrava na casa de banho. Corri para dentro, mas não como se fosse atrás dele e, quando entrei, ele já estava saindo, enxugando suas mãos nas suas calças.
— Tem a certeza de que quer continuar com isso? — perguntei.
— Mais que a certeza que dizem ser absoluta. Podemos começar aqui mesmo — disse ele enquanto me empurrava para fora da casa de banho e começou a gritar para chamar a atenção de todos. Tive que cambalear falsamente fazendo seu empurrãozinho parecer forte.
— Vou quebrar esses seus ossos, não estamos mais na escola primária — gritou novamente e ao nosso redor já estava cheio de alunos. Eu olhava para ele, que estava sendo uma coisa que não era. De tão ridículo, aquilo já estava me irritando. Edu fazia movimentos de um boxeador com aqueles punhos de mulherzinha.
Afastei-me para trás e fechei os meus punhos, vestindo a fantasia que o Edu queria que eu vestisse. Não demorou muito para as duas irmãs aparecerem.
— De novo isso? — perguntou Kátia enquanto se aproximava. Mas, chegou ali num momento errado. Quando ela se aproximou, Edu estava a lançar um soco para mim, esquivei habilmente e ele atingiu a Kátia bem no rosto. Ela caiu quase desmaiada.
Edu ajoelhou-se com uma cara de arrependimento. Mas o soquinho dele, fofo que de uma criança com dentes de leite, não causou quase nenhum dano à Kátia.
— Me desculpa, Kátia — falou.
— É, desculpa ele. Acho que todo mundo precisa saber do que está acontecendo aqui — falei e Edu me lançou um olhar de quem implorava: “Por favor não.”
Apenas falei isso, eu não queria que o Edu ficasse embaraçado. Ficaria, se eu tivesse dito que aquilo era um plano dele só para provar que não era a pessoa fraca que era. Mas, de fraco, o Edu só tinha o físico.
Aproximei-me à Kátia e disse : — Desculpa o Edu, ele só não tem coragem de dizer que gosta de ti e tenta fazer isso de formas que podem lhe humilhar. É um idiota apaixonado.
Kátia levantou-se, Edu também. Ela olhou para ele e deu-lhe uma chapada de um furacão, que sem cerimonias, envermelhou seu rosto. Aquele acontecimento me fez pensar que Edu nasceu com o azar grudado nele, que o fazia levar até de mulher.
Kátia segurou na mão de Edu e arrastou ele daquele lugar.
- Escrito por Vanildo Maposse
0 notes
quartadeficcao · 3 years
Text
EU SOU UM MONSTRO
O homem é predestinado. E, muitas vezes, não se trata de predestinação divina, mas sim destruir as nossas próprias vidas e das pessoas que mais nos amam ou amamos.
— Eu quero que um dia ele entenda que nós fomos feitos um para o outro. — Eu desejava aquilo freneticamente, falei enquanto abraçava minha namorada. Um abraço que a sufocava e esmagava seus inocentes ossos.
— Ele vai te aceitar um dia, meu pai é um homem bom.
— Quando é que esse dia vai chegar? — perguntei. Eu admirava a fé que a Kim tinha em relação ao pai, que um dia estaríamos juntos recebendo sua total bênção. Mas, eu via a forma como ele olhava para mim e não dava sequer gota de esperança. Sua cara sempre exibia tons de desprezo. Eu era um pobre ser humano e ele fazia questão de me mostrar com o seu olhar, que eu fazia parte das pessoas não dignas de estar perto de pessoas como a sua filha.
— Eu sou filha única, tenta entender ele. Somos muito apegados um ao outro. Ele sempre foi pai e mãe para mim.
Era difícil eu entender aquilo porque não havia crescido com alguém com aquele tipo de vínculo. Eu era um ser sozinho que andava com algumas pessoas que provavelmente não se importavam realmente com a minha pobre existência. A única pessoa que estava na minha vida e eu sentia que a fazia ter sentido, era a Kim.
— Entendo, mas estou cansado disso. Podemos fugir daqui para termos uma vida longe disso tudo. Apenas eu e tu. Felizes para sempre.
Começamos entusiasmadamente a imaginar como a nossa vida seria. Até que ela estava na vibe daquilo.
— Viveríamos um conto de fadas. Mas ninguém sobrevive só de amor nesta vida.
Kim estava apaixonada pelo que eu era, não pelo que eu tinha. Até porque eu, nada tinha.
— Farei de tudo para colocar comida na nossa mesa, confia em mim — falei enquanto dava o último abraço feliz que dei na Kim.
Enquanto eu ia para a casinha onde eu morava, que estava àlguns dias sem pagar a renda, me encontrei com o meu melhor amigo, Ângelo. Eu conheci Ângelo nas ruas. Num certo dia, ele corria de alguém que o seguia por estar com a sua carteira. Me choquei nele enquanto ia em minha direção. Quando gritaram para pegar o ladrãozinho, eu saí correndo porque também havia cumprido com a minha missão.
Coremos em mesma direção e, quando chegamos num certo ponto, ofegantes, começamos a rir um para o outro e uma grande amizade brotou. Viramos a partir daquele dia, vendo apenas filmes e séries de ladrões, muito habilidosos em nosso trabalho.
— Para onde vais?
— Para a minha toca — respondi enquanto meu punho batia no de Ângelo. Era assim como nos cumprimentávamos. Voltei a enfiar as mãos nos bolsos.
— O que você vai fazer hoje?
— Podia sair com a Kim, mas o pai não deixaria ela estar comigo. Para nos vermos, tem que ser de vez em quando e, muitas vezes, às escondidas. Então nada.
— Relaxa — disse me animando. — Eu tenho algo que podemos fazer hoje.
Eu queria não ter perguntado o que faríamos. Às vezes nos arrependemos por apenas termos dado atenção a uma coisa num momento em que devíamos ter optado por ignorar. Falamos um sim que devia ser não. Concordamos enquanto devíamos discordar.
Depois de 10 minutos, Ângelo falando, me perguntou se estava dentro ou não.
— Isso é muito merda, eu não posso fazer nada disso com a Kim — disse para eu mesmo, mas ao Ângelo respondi: — Estou dentro.
Eu precisava fazer aquilo, ou melhor, o estado em que eu me encontrava dizia para fazer. Se eu não tivesse me encontrado com o Ângelo depois da conversa que tive com a Kim, acho que não faria. Me sentia pressionado.
Saímos de onde estávamos parados enquanto conversávamos sobre a nossa ação não virtuosa, até chegarmos na casa do Abel. Logo que chegamos, vimos na piscina de Abel várias moças que estavam quase desvestidas. Tenho a certeza que elas não estavam ali por puro desejo, mas pelo chamamento de dinheiro. A insanidade do ser humano o leva a fazer tudo por um simples papel e, eu também estava ali por ele, em frente ao Abel, que enrolava em seus braços, duas moças enquanto se deitava no meio delas.
— Raposa — disse Ângelo. Era assim que ele era chamado.
Afastou as moças e ordenou brutamente que elas saíssem dali. Saíram andando enquanto eu traía a Kim lançando o meu olhar fornicante para elas. Abel, ou melhor, Raposa, ergueu-se e levantou-se. Não falou nada para o Ângelo. Deu uns passos até mim e me abraçou.
— Meu menino — disse enquanto deixava de me abraçar e colocou suas mãos em meus ombros, olhando para os meus olhos com o seu olhar frio de pessoa sem alma. — Há quanto tempo? Andou muito ocupado, eu sei. Ocupado com a riquinha. Mas deixando isso de lado, a que se deve a sua visita depois de ter ficado longe de mim durante tanto tempo?
— Ele veio para o plano de hoje.
Logo que disse aquilo, a cara do Raposa mudou instantaneamente e ele foi até Ângelo, o agarrou pelas camisas que, quase as rasgava.
— O que você acha que está fazendo, seu idiota — disse Raposa enquanto fervia aos nervos.
Fui até ele, eu tinha que acalmá-lo. Raposa sempre teve um carinho por mim, então segurei num dos seus braços com as mãos que espremiam sem misericórdia o peito de Ângelo.
— Está tudo bem, raposa, eu é que insisti em estar aqui. Eu quero fazer parte disso. Estou a precisar de algum dinheiro.
Raposa me entendeu. Largou o Ângelo e o afastou agressivamente para trás, cambaleou que quase que caía.
— Não pense que te perdoei, Ângelo. Eu não gosto de pessoas espalhando os meus assuntos por aí — disse enquanto continuava bravo, apontava raivosamente para o Ângelo, com o seu indicador, este, que organizava a sua camisa amassada.
— Me desculpa — disse Ângelo em um tom humilde e oprimido.
— Você fica aí — disse Raposa e foi até mim. Abraçou-me pelo ombro e começou a caminhar. Eu estava colado a ele, então, não havia nenhuma escolha. Caminhamos em silêncio no seu jardim, para lugar nenhum, até que ele parou, me soltou, e olhou nos meus olhos.
— Owen, és uma boa pessoa, eu sempre vi uma alma pura por trás das suas ações impuras. — Acenei para ele, em silêncio. — Você não precisa fazer essas coisas com a sua vida. Você é diferente de todos nós. Posso saber dos porquês de querer se meter nisso?
Eu tinha que inventar uma desculpa perfeita.
— Eu preciso desse dinheiro. Quero voltar a estudar. Quem sabe saio desta vida de uma vez por todas!?
— Eu sabia que a sua ambição estava além de simplesmente ter poder e dinheiro. Você quer ser alguém na vida e eu sempre quis ajudar alguém próximo a mim para isso. Seria como realizar-me, mas usando uma outra pessoa. Eu vou pagar a escola para si.
Pagar a escola significava ele me dar algum dinheiro mensalmente. Aquilo não se comparava nada com o que eu ia ganhar se entrasse no seu esquema.
— Eu não quero ficar te devendo.
— Ninguém deve a ninguém quando se dá de coração. Eu estarei a ajudar de coração.
— Prefiro fazer as coisas por mim mesmo. Preciso me orgulhar por ter conquistado as minhas coisas pelo meu próprio suor.
Raposa ficou uns minutos me lançando seu olhar frio.
— Eu não aguento com essa sua teimosia. — Colocou a mão na minha cabeça e fez algo que eu não gostava no meu cabelo. Desarrumou ele como se fizesse carinho a um cão e disse: — Mas o que eu não faria por ti? Você está ciente dos riscos? Acha que isso faria bem à sua perfeitinha namoradinha?
— Fará — falei convicto, imaginando a vida que eu e a Kim teríamos se aquilo desse certo.
Saímos andando e chegamos até onde Ângelo se encontrava e Raposa disse: — Vamos entrar, fofoqueiro. — Um sorriso sutil de perdão se estampava em seu rosto.
Entramos na casa de Abel e fomos até uma sala que era o seu ginásio. Encontramos dois homens, um forte que carregava um peso de mil quilos deitado na caminha, fazendo peito. E um magro que fumava um cigarro. O forte deixou o peso logo que nos viu e sentou-se. Pegou numa toalha e esfregou o seu rosto suado enquanto se levantava. Para além de forte, tinha uma altura gigantesca.
— Venham, precisamos atualizar o plano — disse Raposa. O forte caminhou até nós e o magro deu uma tragada no cigarro e o apagou, o que restava, meteu no bolso traseiro da sua calça. Caminhou até nós enquanto soltava bolas de fumo que lhes expulsava de matar seus pulmões mortos.
— Este é o Owen, vai fazer parte do plano.
O forte olhou para mim com um certo desprezo. Depois de ter-me apresentado, Raposa disse qual seria o meu papel e o dos outros. Ordenou ao magro para me ensinar o resto do que eu precisava saber.
— Como é que uma pessoa da sua idade nunca usou uma arma? — Falou o magro num canto isolado onde eu e ele nos encontrávamos parados um à frente do outro, no ginásio. Disse aquilo como se todo mundo neste universo tivesse que ser bandido. — Mas está tudo bem. Eu vou te ensinar.
Me passou uma arma que eu a segurei como se segurasse num papel, mas o peso dela tirou-me a ilusão de que uma pistola não era uma coisa pesada.
— Essa é a lindona da Beretta Px4 Storm. Com capacidade de até 20 cartuchos com prolongador de carregador, apresenta uma característica muito apreciada em autonomia de tiro...
Eu não precisava ouvir aquilo tudo. O magro era um grande exibicionista. Falou aquilo, mas não me impressionava. Quem se impressiona com ações de bandido é insano.
O magro ficou me explicando tudo. Como me posicionar com a arma, como segurá-la com as duas e uma mão, como travar e destravar, como trocar de munição... me ensinou tudo, mesmo o que eu não precisava saber, até porque para mim, aquela seria a primeira e a última vez a segurar numa arma e, provavelmente nem teria que usá-la.
Não precisei de voltar para a minha toca naquele dia. Fiquei na casa do Raposa a conversar com o Ângelo. Estávamos sentados na beira da piscina, eu dobrava a minha calça e os nossos pês mergulhavam na água azul.
— O que você vai fazer com esse dinheiro? – perguntou Ângelo.
— Não dá azar fazer planos com um dinheiro que ainda não se recebeu? – perguntei. O azar eu já havia carregado, porque os planos em como usar o dinheiro já estavam entalados na minha cabeça.
— Você acredita em superstições por quê?
— Porque algumas fazem sentido — respondi. Eu imaginava a ilusão de vida que teria enquanto olhava para as estrelas. Elas pareciam mais brilhantes e graciosas do que nunca. Representavam esperança de dias melhores ao lado da Kim. — Faz sentido acreditar que estrelas cadentes concedem desejos. Já concederam para mim. Vários desejos. — Falei.
— E se você visse uma estrela cadente agora, o que desejaria? — perguntou Ângelo.
— Se eu dizer, a coisa não acontece — respondi e quando me calei, Raposa apareceu com o grandão e o pequenininho, perito em armas de fogo.
Estávamos no carro os cinco. Ali, apenas eu e o Ângelo estávamos tensos, enquanto que para os outros, aquele, parecia um dia mais que normal e estavam no seu apaixonante hobby. Estacionamos o carro bem perto da loja. Colocamos as nossas máscaras: a do raposa era uma raposa, e nós colocávamos máscaras de ski. Saímos correndo para dentro da loja. Logo que entramos, raposa gritou apontando sua arma para que atendentes que estavam ali, jovens da minha idade, se deitassem no chão.
O magro estava encarregado a vigiar a porta. O fortão controlava os dois no chão, enquanto os apontava as duas pistolas que carregava em cada mão. Eu, o Ângelo e Raposa, estávamos no balcão onde se encontrava o dono da loja já com as mãos voando.
— Nos passa tudo — disse Ângelo enquanto saltava para a parte onde ficava o balconista. Nesse caso, o dono da loja.
— Continue comportado, seu velho — disse raposa.
Ângelo pegou no dinheiro que estava naquele lugar para o lado que paravam os clientes para pagar as suas compras, e começou a despejar várias notas para o nosso lado. Eu e Raposa nos ajoelhamos para meter aquele dinheiro na sacola. Naquele momento, eu já estava a imaginar o meu futuro. Meu sorriso se escondia dentro daquela máscara.
— Rápido, rápido, rápido — gritava Raposa.
Enquanto eu estava apanhando o dinheiro, vi pelo espelho, num canto, que o dono da loja estava prestes a sacar uma pistola que estava no seu traseiro, encaixada no seu cinto. Quando ele estava prestes a apontar a arma para o Ângelo, que estava distraído com o dinheiro, apontei a arma que possuia para ele e fiz sangue jorrar da sua garganta.
Comecei a tremer. Raposa gritou para sairmos dali. Ângelo saltou para fora do balcão de atendimento e me segurou pela mão para que saíssemos. Quase que hesitei, mas, a minha consciência disse que era o momento de fugir.
Saímos dali correndo enquanto os dois estendidos no chão se levantavam em direção ao dono da loja. Entramos no carro. Raposa estava sendo um Paul Walker. O magro e o forte estavam eufóricos e tinham já as máscaras tiradas. Ângelo segurava na minha mão trêmula.
— Que sorte, merda — disse o magro e uivou.
— Sorte dos infernos — disse o forte.
Raposa continuava conduzindo. Chegamos até sua casa e, quando entramos, ele sacudiu para a mesinha de centro aquele todo dinheiro.
— Você vai ficar bem — disse Raposa olhando para mim. Enquanto começava a contar o dinheiro.
Como eu ficaria bem com aquilo? Saí dali e fui para uma das casas de banho da casa do Raposa. Olhava para o meu reflexo, ou melhor, para a máscara que permanecia cobrindo meu rosto. Mirrei para uma coisa que eu não conhecia e não desejava ter sido. Eu queria ser apenas um furtador de carteiras. Se eu tivesse aceite a proposta do Raposa, de receber o seu apoio para os meus estudos, talvez eu e a Kim tivéssemos um futuro bom um dia. Fiquei olhando para o meu rosto mascarado por mais de vinte minutos, sem me mexer.
Meu celular tocou e, quando tiro ele do bolso para atender, vejo que é a Kim ligando.
Chora e eu também choro silenciosamente. E, por fim, ela diz:
— Assassinaram meu pai, uns monstros mataram ele.
Fiquei em silêncio sem saber como reagir às palavras da mulher que eu amava.
-
Escrito por Vanildo Maposse
0 notes
quartadeficcao · 3 years
Text
AZAR NÃO CUSTA - Parte 1 e 2
Você deve ter ouvido isso eternas vezes. Eu servi como prova.
Estava sentada em cima de uma casinha de contador de água que as pessoas da minha cidade constroem para protegê-los de ladrões. Caí depois de a minha irmã ter avisado que eu cairia.
Foi uma bela caída. O chão seduziu-me com tamanha sensualidade, e a minha plateia não poupou nos aplausos, ou melhor, nas rizadas.
— Um dia isso vai acontecer consigo — falei para a minha irmã e ela deu uma daquelas respostas só dela.
— Sim, mas agora é a sua vez — disse enquanto ria. — Que peninha.
— Desde quando você sente pena das pessoas?
— Não tenho pena de você, tenho pena do chão — gargalhou idiotamente.
Estava pronta para responder-lhe a altura, quando se levantou de supetão e sorriu grandemente. Chegava até a assustar, pois ela não era alguém de muitos e longos sorrisos, então, sempre que ela sorria, mais parecia uma careta.
Levantei-me também, querendo saber o motivo daquele sorrisão-careta e, quando virei o meu belo rosto, estampei logo uma careta na cara. Era Eduardo, mais conhecido como Edu: o menino riquinho da cidade. Todas as meninas se ajoelhavam perante ele e, sempre que ele passava perto delas, perdiam sua sanidade. E bem, minha irmã era uma delas.
— Olá, meninas — disse ele, chegando perto, com seu sorrisinho irritante.
Mesmo minha irmã tendo uma pele morena, pude ver um levezinho tom rosado em seu rosto.
Muito patético.
Ela sentia sentimentos por Edu, sorria sempre que via ele (disfarçadamente), mas depois voltava a recuperar a sua cara séria, e destratava o pobre riquinho.
Eu sempre falava para ela ser mais amorosa com ele, pois, não tinha culpa de ter o que tinha. Kátia não gostava nada de pessoas que parecia que o mundo sorria mais para elas. Não gostava de Edu; dos seus pais; ela não gostava até dos pobres mil cães que moravam naquela família.
— Oi, Eduardo — repliquei.
— O que fez você sair de casa, mimadinho mimado?
— Quando é que vai parar de me chamar disso, Kátia?
"Quando você for um pobretão, rico de miséria." Quis eu dizer, mas, a minha mente sana ordenou que eu dissesse:
— Ela vai parar quando você começar a agir feito homem.
Pobre Edu, era um pobre inocente menino de 12 anos. Eu estava dizendo para ele aquelas coisas. Devia ter medido e diminuído a facadas a minha comprida língua de Vennom.
— Eu sou homem.
— Um homem... — bufou minha irmã, fazendo uma careta desdenhosa.
— Prova para ela que você é homem, Eduzinho — falei ríspida.
— Eu não preciso provar nada.
— Pois! Não há como você provar o que não é, mimadinho mimado.
Minha irmã saiu andando. Um andar triunfante, de alguém que havia comprido com a sua grande missão no universo. Nesse caso, fazer Edu se sentir menos do que era.
— Você precisa provar a ela, Edu — falei enquanto corria atrás da minha irmã.
— Você deve parar de tratar o pobre menino assim — diminuí o passo, assim que cheguei perto dela.
— De pobre ele não tem nada, e se você continuar defendendo ele, não falo mais com a Pobre Você. — Saiu empinando o nariz, com ar de superioridade.
— Mas o que a Pobre Eu fez? — gritei indignada, a vendo entrar dentro de casa. Bufei, seguindo os mesmos passos que ela. Jogou-se no sofá da sala, assistindo uma novela qualquer. Não dei tanta importância. Fui em direção à cozinha.
Sempre que estivesse brava, o melhor a se fazer era manter milhas de distância dela.
Quando cheguei, encontrei minha mãe fazendo uns biscoitos achocolatados, cantarolando uma música conhecida por somente ela. Sentei-me à mesa e peguei uma maçã na cesta de frutas e comecei a dar umas mordiscadas gulosas que as de um porco faminto.
— Por que a Kátia encarnou os dragões? — perguntou ela, concentrada nos seus biscoitos.
Dei de ombros, falando que a razão daquilo era o Edu. Ela pareceu ter entendido, pois, perdeu suas falas por um bom tempo.
— Deixe ela! Daqui a alguns minutos estará vindo aqui na maior cara de pau, mendigando atenção.
Um pequeno detalhe: minha mãe não tinha papas na língua. Ela falava o que lhe dava na teia e, mesmo assim, pra mim, soltava daqueles lábios rosados sábias palavras. Nunca entendia muito, e acho que nunca entenderei bem o que sai daquela mente Yodáica.
— Mãe, a senhora sabia que a tia Tininha voltou pra casa da mãe? — perguntei como quem não queria nada, mordiscando, agora angelicamente, mais um pouco da minha maçã. E sim, eu e minha mãe éramos grandes cuidadoras de vida alheia, mas não daquelas que ficam falando mentiras por aí.
— Pois é. Com um marido daqueles, quem aguenta, mesmo? — disse ela, indo pegar uma tigela na gaveta do armário. — Aquilo foi mais um livramento. Ouvi dizer que ela até está com planos de sair do país.
— Por quê?
— Não se sabe — disse dando de ombros, e quando estava pronta pra falar algo, minha irmã entrou na cozinha de cara amarrada, com braços cruzados e tudo, sentando-se na cadeira bem coladinha a mim.
— De quem estavam falando dessa vez? — perguntou, e minha mãe respondeu um "nada", o que a fez ficar com cara de amigo nenhum.
— Estou sendo excluída, meu Deus.
— Nosso Deus, que egoísmo, filha. É nosso Deus.
No dia seguinte, enquanto eu saía de casa para brincar com a minha amiga, Bionda, me esbarei com Edu, me esbarei não, ele tocou em meu ombro. Pulei de susto porque estava distraída.
— Que susto, Edu!
— Desculpa-me, Karla. Você pode me ajudar? Pensei muito bem em o que você disse ontem.
— Eu também pensei, acho que você não precisa fazer isso. Estava de brincadeira consigo, você é um homão.
Eu queria me livrar dele. Eu tinha que me livrar dele. Eu queria encontrar minha amiga. Eu queria brincar de me fantasiar em Sakura, de Naruto, ou melhor, me fantasiar em minha irmã. Nem a Sakura se esbravejava mais que a Kátia.
— Eu quero fazer isso.
— Posso saber dos porquês?
Edu colocou a mão no queixo simulando um raciocínio, mas duvido ter usado seus miolos.
— Eu só preciso provar que sou um homem.
— Que idiota.
— O quê?
— Nada. — Eu havia pensado alto. — Vou te ajudar, há várias opções para provar a ela que você é um homem de verdade.
— Uma delas?
— Você conhece o Yuki?
— Quem não conhece Yuki?
— Você deve entrar numa briga com ele em frente da minha irmã e, sair vitorioso.
— Tá maluca? — perguntou ele, transpirando susto e medo e pânico e terror e morte e o fim do mundo.
— Não tô maluca não, mimadinho mimado — falei isso de mimadinho mimado para criar certa pressão. — Não foi você quem disse que queria provar ser um homem? — disse debochada, o vendo começar a hesitar.
— Me envolver em uma briga não vai me tornar homem — disse ele, começando a usar seu cérebro. Mas, ele havia estragado a minha saída, então teria que aceitar aquilo. Seria bem engraçado até. Ficar convencendo ele a lutar, bem melhor que me fantasiar em Sakura.
— Então eu não tenho como te ajudar, mimadinho mimado — disse eu caminhando, e esbarrando-me em seu ombro propositadamente. Andei despreocupada esperando ele me seguir, e acho que isso vai acontecer em três, dois e...
— Espera, Karla — gritou enfim, correndo em minha direção. Esbocei um sorriso diabólico, me virando pra ele. — Eu aceito o seu plano. — Disse depois de me olhar por bastante tempo, o que me deixou bastante excitada. Até comecei a dar uns pulinhos de alegria.
Andei em direção a ele, juntando meu braço ao dele e caminhando de volta a casa. Da Bionda trataria no dia seguinte, eu apenas queria garantir o meu empolgante entretenimento.
— Bom, querido Eduardo, eu trato de tudo. O senhor só precisa estar em frente à escola depois das aulas.
— No que você está pensando, preciso me preparar para algo específico? — perguntou, o braço dele tremia como se estivesse sendo congelado por um frio de mil graus negativos. Lancei-lhe um sorriso amarelo e disse: — Nada, querido Edu, nada.
Segundas feiras sempre foram pedra no sapato.
Depois de um final-de-semana inteiro brincando, você tem que deixar a preguiça descansar e ir 'pra escola. Algo que eu não queria. Mas quando minha mãe entrou como um furacão em nosso quarto, em plenas cinco horas da manhã, até cogitei a ideia de fingir estar doente, mas não ia funcionar. Depois de tomarmos banho, eu e Kátia botamos algo na boca e nosso pai nos acompanhou à escola. Além do mais, precisava cumprir com o meu plano diabólico.
Eu estava fazendo a quinta classe, e Kátia, sétima, então, nossas salas eram separadas.
Quando chegamos, já pude assistir Bionda com seus cabelos curtos que sempre a faziam parecer uma bruxinha, com sua enorme pasta da Elsa, aquela princesa que canta Lerigó (Let It Go).
— Por que não foste em casa ontem? — perguntou ela quando nos separamos da minha irmã e caminhávamos para a nossa sala.
Expliquei-lhe o que acontecera e, quando chegamos na sala, vi Yuki. Ele era dois anos mais velho que nós, mas reprovou duas vezes.
O que me intrigava em Yuki, é que ele era um monte de ossos, uma ossada ambulante, mas, era muito bom de pancada. E, o belo nele, era que não provocava ninguém. Ele era calmo, apenas não aturava provocações. Eu precisava fazer alguma coisa para que algo acontecesse. Então comecei a bolar o meu plano dos diabos.
No nosso primeiro intervalo, Yuki estava parado em seu canto, quando fui atrás dele, sozinho como sempre, encostado numa das paredes da nossa sala-de-aulas.
— O que você quer, menina? — disse ele. — Você não tem medo de mim como os outros?
Eu tinha medo de falar o que não devia. Mas mantive minha calma, porque bom, Yuki gostava de uma boa luta, porém, não tocava em nenhuma menina, mesmo falando mal do seu pai alcoólatra. Mas, com os meninos, perdia as estribeiras.
Uma vez quis lutar com o próprio tio, por falar mal do seu pai. Aquele alcoólatra desprezível.
Espero que Yuki nunca leia esta história.
— Eu quero te contar uma coisa, Yuki.
— O quê?
— Algo que você não vai gostar, é sobre o Edu.
— Aquele mimadinho mimado? — Yuki perguntou em deboche.
— Sim.
— Manda vir.
— Ele disse que seu pai é um grande idiota, ele vive no bar da Tina, se apegou tanto a ele que, se pudesse, mergulharia num barril de cerveja para nunca mais sair dele.
Yuki já estava gritando o nome de Edu, despertando a atenção de toda a escola.
— Eu te mato, seu mimadinho. Eu mato...
— Isso não é de perdoar, Yuki. Não é não — agitei voando, à procura da minha irmã.
Quando a encontrei, segurei em sua mão e arrastei-a feito uma vassoura, para irmos atrás de Yuki, que estava atrás de Edu.
— Menina, me solta.
— Você precisa ver isso, maninha.
— Ver o quê, sua urubu?
Nem me importei com seu apelido carinhoso. A puxei pra fora da escola, onde um monte de pessoas já começava a se amontoar.
— Apareça, seu mimadinho de merda, e fala isso na minha cara!
Ouvimos o grito de Yuki, e já fui me espremendo entre as pessoas, ainda segurando na mão de Kátia, que pedia desculpa às pessoas e me dizia pra ser delicada.
— Essa será a luta do século. Não, do século não, do milênio — disse sorrindo. Quando chegamos perto de Yuki, seus olhos vibravam de raiva.
— Karla, por que ele tá gritando o nome do Edu? — perguntou minha irmã, com uma cara preocupada.
— Shiii! Só observa — falei, quando na enorme roda começou a abrir-se um caminho.
Dois brutamontes, que eram amigos de Yuki, apareceram carregando Edu pelos braços. Ele se debatia parecendo uma galinha querendo fugir depois de ver uma faca.
— Agora você vai falar na minha cara o que disse! — disse Yuki, parando em frente ao Edu, quando este foi posto em pé no chão.
— E-eu não fa-falei nada — disse tremendo, percorrendo o olhar pela roda e logo se encontrando com os meus olhos.
— Você falou sim, seu... — Mal terminou a sua fala, e Yuki já deu um soco habilmente dado no Edu. Que caiu de bunda no chão fazendo com que um coro de "Oooh" uivasse.
— Tem dedo seu nisso, não é? Meu Deus, vai ajudar ele, Karla — Ouvi minha irmã falar. Dei de ombros. Voltei meus olhos ao Edu, este que começava a se afastar, ainda no chão.
— Ele é homem, consegue se defender — falei debochada, a vendo murchar os braços.
Quando olhei de novo, Yuki deu outro soco no Edu.
— Eu vou deformar tanto esse rostinho que nem sua mãe vai te reconhecer — falou Yuki com raiva, já começando a dar vários socos nele, em diferentes partes do corpo ossudo de Edu.
— Para com isso, Yuki — disse minha irmã, com um soco de Yuki pendendo no ar. Ele lançou um olhar para ela e sorriu diabinhamente. — Está defendendo o seu namoradinho? — Disse isso e soltou o soco que pendia para a barriga de Edu.
— Ele não é meu namoradinho, é um pobre ser humano sofrendo nas suas mãos de ogro.
A multidão uivou. Yuki deu um soco de bacela no rosto de Edu.
Quando Yuki saiu de cima de Edu, minha irmã e eu fomos ter com ele, que se debatia no chão. Seu olho direito estava inexistente.
— Como você está, Edu?
Aquilo havia funcionado, de alguma forma, ao menos minha irmã não havia o chamado de mimadinho mimado.
— Estou acabado, e minha mãe vai me acabar ainda mais quando eu chegar em casa.
Eu olhei para Yuki e disse: — Agora sim, você é um homem, não é, Kátia?
Kátia não respondeu.
Quando eu queria perguntar como Edu se sentia, mas só por perguntar mesmo, eu 'tava nem aí para como ele havia lidado com a porrada, todos começaram a correr e o motivo disso apareceu: vestido em um terno horrível, sapatos pretos caros, mas igualmente horríveis, e uma enorme carranca no rosto.
— Todos vocês, para minha sala, agora! — Gritou firme o diretor e eu senti vontade de revirar os olhos, mas me contive.
— O Edu 'tá machucado, temos que levar ele para casa — disse minha irmã, mas logo fechou o bico com a encarada do diretor.
— Eu não quero saber. Todos vocês na minha sala, agora, antes que recebam uma punição pior.
Disse saindo, depois de nos dar outra encarada. Suspirei, e ajudei Kátia a levantar Edu do chão, com o olhar afiado de Yuki. Esse vai ser um longo dia...
— Eu quero que vocês me digam agora, sem rodeios, por que estavam fazendo aquela baderna? — disse o diretor, e eu quase arranquei meus cabelos. Kátia falou tudo pra ele, mas, omitindo certas partes. Ele não acreditava de jeito nenhum!
Adultos são chatos.
— Eu já disse, diretor. Yuki pensa que Edu falou algo que ele não disse, e saiu batendo nele sem esperar uma explicação.
Olha, o Edu deve fazer um santuário para mim, porque ser defendido pela Kátia é algo raro.
— Eu não disse nada, senhor diretor, juro! — disse Edu, pela quinquagésima vez, já soltando lágrimas, até do bofo dele.
Nojento.
PARTE 2
Que azar não custa eu sei e muitas vezes nós é que vamos atrás dele. Eu fui atrás e lá estava eu, carregado de dores que Yuki havia descarregado em mim, sentado na sala do diretor sendo encarado pelos seus enormes olhos. A Karla foi um diabo em pele de cordeiro. Mas, por que eu a culparia? Nunca somos vítimas de nada quando as escolhas foram feitas por nós mesmos.
Eu falava enquanto lacrimejava e puxando para dentro a gosma que deslizava para fora das minhas narinas. Queria provar que era homem, mas acabei provando que era um bebé chorão e um saco de pancada.
— Eu não mereço essa punição — disse Karla como se não merecesse mesmo. Apesar de ela ter feito apenas o que eu havia lhe pedido, eu achava que ela merecia mais que a punição.
— Por que você acha que não merece, menina? — perguntou o diretor, ríspido.
— A única pessoa que merece punição é você — disse Kátia enquanto apontava para a Karla. Eu agradecia a Deus por não ter uma irmã como a Kátia, que não defendia a sua irmã mais nova.
— Está decidido — disse o diretor. — Eu mesmo vou controlar o que vocês devem fazer.
Saímos daquela sala enquanto eu andava atrás de Yuki, de cabeça baixa, para não encarar os meninos que olhavam para mim e rindo da minha cara. Yuki estava sorridente como se nada tivesse acontecido, ou, como se grande coisa tivesse acontecido. Sua fama de espancador havia provavelmente aumentado.
Chegamos numa porta e o diretor tirou suas chaves do seu casaco e abriu uma sala muito abafada. Ela cheirava ao abandono. Com teias de aranha em todos os cantos.
— Você limpa esta prateleira e você a outra. — disse o diretor apontando para elas. — Não quero ver poeira nenhuma aqui.
— Mas, nós...
Me interrompeu o diretor enquanto eu estava prestes a reclamar pelo trabalho que teríamos que fazer: — Só depois de terminar isso, vocês vão poder ir às vossas casas. — Verbalizou a nossa condenação e saiu andando.
Yuki pegou numa cadeira que estava por ali e sentou-se.
— Você não vai fazer nada? Quem devia estar sentado sou eu, depois que você acabou com os meus ossos — falei numa voz esbravejada.
— Cala a boca, seu mimadinho. Eu não preciso fazer trabalho nenhum, não fui matriculado nesta escola para isso.
— Foi matriculado para dar porrada nas pessoas.
— E você foi matriculado para receber porrada de mim — disse Yuki enquanto jogava-se de costas para a cadeira. Sentando-se num estilo que transbordava arrogância. — Por que você precisava provar a ela que era algo que não era?
— A história da Karla é uma mentira, eu não queria provar nada para ninguém.
Eu tinha que mentir, já bastava ter provado que era um fraco, levando porrada. Não precisava admitir que era um fraco e idiota. Comecei a sacudir dois livros batendo um contra o outro.
— O que você ganha com isso? — perguntou Yuki.
— Isso o quê? — Voltei-me para ele, que continuava sentado na cadeira.
— Se fazer de menino bonzinho. Ninguém merece ser punido por algo que fez fora da escola.
Aquilo fez-me de alguma forma refletir, e sim, por dentro dei razão ao Yuki. Mas nada falei, apesar de começar a olhar para ele como um ser inteligente.
— Deixa disso e vamos nos divertir.
— O que faremos? — Minha cabeça gritava para eu não parar de dar as sacudidas nos livros.
Seja um bom menino, Edu. Sussurrou uma voz dentro de mim, mas decidi não dar corda a ela.
— Que tal começarmos por... — Yuki colocou sua mão no queixo enquanto simulava um raciocino. – Podíamos até ler alguns livros, mas eu não gosto nada disso. — Não gostava mesmo, se gostasse, Yuki não estaria a repetir de classe pela milésima vez. Levantou-se da cadeira e apontou para um gravador de som, velho, que estava naquele lugar.
— Isso não nos vai criar nenhum problema? — perguntei. — Para além do problema que teremos por não fazer o que fomos ditos para fazer?
— Você não precisa ser uma mulherzinha.
Eu já sabia que provar as coisas para as pessoas era algo muito feio de se fazer, mas aquelas palavras serviram para eu querer provar que era um homem de verdade, mais uma vez.
— O que vamos fazer com isso? — perguntei.
— Vamos usar para nos teletransportarmos daqui, idiota. O que você acha que um gravador de som faz?
Havia entendido a mensagem de Yuki com aquelas palavras, então perguntei enquanto me aproximava a ele:
— O que vamos gravar com isso, exatamente? — perguntei novamente e estendi a mão para que Yuki me passasse o gravador, mas não o fez.
— Qualquer coisa. — Yuki já havia começado a gravar o que havíamos conversado e colocou pra tocar.
— Escuta essa menina falando — disse Yuki gozando com a minha voz. — Se parece contigo.
Soltei uma gargalhada, mas voltei a organizar o meu rosto espancado porque sentia dor por esticar os meus lábios.
— A minha voz é mais grave que a sua.
Era verdade, mas já que Yuki era bom de encher pessoas de porrada, talvez achasse que tudo nele era digno de grandeza.
Ficamos ali gravando coisas que não interessavam. O diretor nos encontrou enquanto gargalhávamos e escutávamos o que havíamos gravado. E sim, ele mandou chamar os nossos encarregados de educação por conta da confusão que havíamos causado na escola, e por não ter feito o que ele havia dito para fazermos.
Foi nesse dia que eu e Yuki nos tornamos melhores amigos.
-
Escrito por Vanildo Maposse e Sheinila Pires Cuna
0 notes
quartadeficcao · 3 years
Text
O Corte
Eu sempre quis ser como o resto dos meninos, tipo, querer mesmo. Quem não quer? Qualquer pessoa quer se sentir inserida na comunidade em que se encontra. O obstáculo para isso, eram os meus pais. Superprotectores e possuidores. Eu era uma coisa para eles, é assim que me achava, o seu boneco. Eu tinha que fazer tudo o que eles queriam.
Na escola, eu era motivo de piada para todos os meninos que me viam — estou dramatizando um pouco — quase todos. As calças que cobriam meu corpo eram as que usavam nos anos antes de talvez existir o pano, vivia no século XXI, me sentindo na idade da pedra. Eu era o homem das cavernas diante dos outros meninos.
“Olha, o tio Kelvin. Bom dia, tio” me diziam em gargalhada alguns coleguinhas da minha escola.
“Vão à merda”, dizia Adel.
Eu admirava o Adel, ele era tudo o que ele queria ser. Admirava seus pais, que o deixavam ser o que ele gostava.
— Queria que nos trocássemos de pais, nem que fosse por apenas um dia. Eu mereço ter um momento feliz — falei enquanto voltávamos de mais um dia de escola repleto bullyng para mim.
Adel me fuzilou com os olhos e replicou: — Para de fazer essas piadas. Não aguentarias ficar com os meus pais nem que fosse por apenas 30 segundos.
— Eu ficaria com eles por uma eternidade. Olha para ti — falei apontando para ele com a mão. — Não és tu quem tem que usar essas calças e camisas — olhei para o que eu vestia com enorme despreso. — Aturar as provocações de todo mundo. Você não ia querer ser eu, nem que fosse por um dia.
A vida perfeita que eu teria com os pais de Adel começou a inundar a minha tão fertil imaginação.
— Eu aguentaria ser que nem tu — disse ele enquanto continuávamos caminhando para casa. Seguimos andando e nos separamos.
A velocidade que levava para os pais de Adel atenderem aos seus pedidos, era uma coisa que eu tanto invejava.
No dia seguinte, eu cheguei à escola e, quando olhei para onde sempre encontrava Adel, à minha espera, porque sempre era eu quem se atrasava, não o vi. Pensei que ele estivesse doente — o que seria um grande milagre.
O sino tocou antes de ele aparecer e fomos para a sala.
— Tio Kelvin — disse o menino mais irritante da sala. Ele sempre fazia questão de procurar defeitos nos outros para ficar gozando com eles. Ignorei a sua provocação, caminhando para o meu assento.
A aula começou e, enquanto eu estava tirando os meus cadernos da minha pasta, toda turma começou a rir como nunca. Aquela gargalhada era como se um palhaço, o palhaço mais palhaço do mundo, tivesse passado por aquela sala. Toda a turma havia se posto em pé e, quando eu também me levantei, eu estava caminhando para o meu assento. Confuso, nem? Quer dizer, Adel estava indo sentar no seu assento, fantasiado de mim. As roupas da idade da pedra estavam cobrindo seu corpo.
— Silêncio e sentem-se — gritou a professora Maria. Todo mundo se sentou e ela acrescentou com um sorriso estampado em seu rosto redondo. — Está muito elegante, Adel. Gostei de ver. — A turma gargalhou como antes e, novamente, a professora mandou todo mundo ficar quieto.
— Não devias ter feito isso. — Eu estava constrangido.
— O quê? A professora gostou.
— A professora gosta de tudo o que você faz, v...
— Meninos, a aula começou — disse a professora, lançando um olhar severo para mim e Adel.
O Adel teve o seu dia de fama na escola naquele dia.
Enquanto caminhávamos para casa, pedi que ele não vestisse aquela roupa horrível novamente. Eu não queria ver ele se fantasiando de um falhado como eu. Com pais que demonstravam o amor que tinham pelo filho da forma mais torturadora que existe.
— Vou te compensar por isso.
Eu perguntei como ele faria e ele disse que ia pagar para mim um corte de cabelo.
— Olha este corte, pode ficar bem em ti — disse Adel, apontando para um quadro que tinha várias pessoas com cortes de cabelo incríveis. O barbeiro concordou.
— Meus pais não vão gostar dele.
— É só cabelo, Kelvin . Você não precisa se preocupar com nada. — Eu precisava sim, mas, me sentei e o barbeiro começou a fazer o seu trabalho. Aquela pessoa que eu via naquele espelho alegrava os meus olhos e os de Adel, eu estava sofrendo uma metamorfose. — Ninguém vai te reconhecer. — Disse Adel, enquanto nos levantávamos para casa.
— Bonito corte. — Quando saímos do salão, arranquei um elogio do menino que se cegava as qualidades dos outros.
Caminhamos e me separei de Adel. Eu não tive coragem de entrar em casa daquela forma, então, coloquei meu capuz e entrei logo na casa, pedindo que minha mãe me emprestasse o seu espelho.
— Desde quando você gosta de espelho? — Acho que meus pais já sabiam que o que faziam comigo acabava com a minha autoestima. — Vai levar no meu quarto.
Fui, e quando entrei no meu quarto, tranquei a porta e tirei o capuz. Me joguei na cama, de costas, e comecei a olhar para o meu reflexo, sem dar uma piscadela. Fiquei horas no meu momento narcisista, até quando minha mãe me chamou para o almoço. Almoçamos enquanto eu tinha o capuz cobrindo a minha beleza. Ela não se importou de eu estar à mesa com ele. Mas, quando chegou a hora do jantar, com meu pai já em casa, meu coração pulou pela boca quando ele disse:
— Kelvin, estar de capuz à mesa é muita falta de respeito.
Ignorei como se não tivesse escutado e, minha mãe estendeu a sua mão para mim e tirou o meu capuz. Os dois contemplaram-me fixamente e minha mãe disse: — Que lindo, filho. — Meu pai concordou abanando a cabeça.
Abri um sorriso de engolir o mundo.
— Tens tanto bom gosto que devias começar a escolher suas próprias roupas, Kelvin — disse meu pai. Abri um sorriso novamente.
Aquele era o dia que eu havia esperado em toda a minha existência.
Achou que não ia ler uma história com um final feliz? Achou acertadamente. Tudo aquilo havia ocorrido na minha imaginação. Eu levei uma porrada que nunca vou esquecer na minha vida, e fiquei dias sem dirigir nenhuma palavra ao Adel por ter me feito passar por aquilo. E sim, valeu a pena porque o meu belo corte de cabelo, fez outros meninos não olharem mais para minhas roupas, estarem a elogiar o meu belo corte de cabelo.
Continuei levando porrada porque continuava fazendo aquele corte sem ser consentido.
Ninguém merece ser humilhado enquanto tem uma chance para acabar com a humilhação.
0 notes
quartadeficcao · 3 years
Text
Quando Eu Pisquei O Olho, de Vanildo Maposse
Sinopse
Por causa de a sua “doença” não escolher momentos certos para se manifestar, Felipa sofre bullying por um dos episódios surgir ela estando na escola. Nick, o seu amigo mais próximo, abandona ela depois desse episódio. O abandono causa um enorme trauma nela e, ela não quer mais saber de homens. Anos depois, ela é obrigada a trabalhar num lugar onde é obrigada a encarar os seus demónios, o que consegue com ajuda da sua grande amiga Alice e o seu amigo de infância que reata amizade com ele depois de vários anos o evitando.
Com o retorno de Nick em sua vida, tudo começa a mudar, pois traz com ele drama e confusão.
Como e por que escrevi o livro?
Eu vivia dias tediosos, aqueles dias vazios que a maioria das pessoas vive. Acordar, fazer um trabalho que não gosta, ou um que não há outra opção senão fazê-lo, ou a vida estar muito uma merda que nem algo para fazer parece existir. Acredito que todo o ser humano que cresce neste universo já se perguntou: “Será que vale a pena continuar aqui? Qual é o meu propósito? Pelo que estou vivendo antes de estar perto do abismo e nele me afogar?
Em momentos de depressão nunca sabemos nos responder a essas questões e, quando piscamos o olho, nos vemos como uns seres pequenos não dignos da vida que temos. Algumas pessoas sabem fazer um bom nó, algumas são bons açougueiros e algumas voam sem asas. Mas há quem tem sorte de encontrar umas respostas, e, o mais importante, transformar essas respostas em algo prático.
Sentar e preencher um papel vazio é o mesmo que o que fazemos com as nossas vidas. Nascemos seres vazios e nos preenchemos com o amor, paixão pela vida. Porém, também nos “preenchemos” com mais vazios como o ódio, a inveja, o medo, entre outras coisas.
Eu quis preencher umas páginas em branco e a mim mesmo com amor, usando as minhas palavras não perfeitas, mas cheias de boas intenções. Algumas palavras já me preencheram, já me fizeram sair da rotina, já fizeram com que eu recuperasse o amor que tinha perdido na depressão, medo, e vários outros demónios. Gente que sequer me conhece, devolveu-me a alegria de viver.
Não sendo eu egoísta, decidi então tentar servir àlguns seres humanos (o que acredito ser a nossa grande missão aqui na terra) trazendo algo para eles.
Este livro era para ser um pequeno conto, mas enquanto eu escrevia, não consegui parar pois trazia um tema que vale a pena falar dele. Os traumas.
Todos temos alguns, resolvidos ou não, e ilustrei no livro que muitas das vezes é um quase impossível encarar os nossos mais profundos demónios.
Uma simples palavra ou acto, pode criar um ser que se sente pequeno, não digno, retraído, medonho e sem vontade de viver. Se proteger nas sombras que os seus demónios trazem consigo. Felipa, a personagem principal deste livro, foi uma dessas pessoas. Uma criança ferida que levou os seus ferimentos para a maior parte da sua vida.
Apesar de ser ficção, mostrei neste livro que alguns traumas são reversíveis, com as pessoas certas no nosso meio, podemos voltar a ter a vontade de nos entregar para a vida.
Como ter acesso ao livro?
É importante realçar que o livro está em português brasileiro.
Leia no Kindle
Leia no Wattpad
0 notes
quartadeficcao · 3 years
Text
O PURIFICADOR DA INTERNET
Ainda muito novo, assim como outras crianças, Salvador tinha sonhos. Muitos desses sonhos, nenhum dos seus amigos os tinha, enquanto diziam que queriam ser uns corruptos de merda sendo presidentes, outros médicos, polícias, empresários, etc… Salvador sempre sonhava em ser um artista: ou um cantor, ou um pintor, ou um escritor, ou qualquer outra coisa que envolvesse muita criatividade, mas viveu até os seus 27 anos sem decidir o que realmente queria fazer da vida. Então fazia muitas coisas que envolviam arte, e em tudo mostrava-se talentoso, o que criava nele o paradoxo da escolha.
Salvador criava tudo para ele mesmo, com a sua indecisão, não conseguia expor seus talentos aos olhos do mundo. As pessoas ao seu redor sempre o perguntavam: por que você não manda essa história para a editora x? Por que não começa a expandir a sua música? Mostrar suas pinturas que fazem trabalhos de Picasso parecerem rabiscos de um artista que cresceu pintando merda, mas nunca desistia porque os pais não tinham coragem de dizer: Júnior, você é horrível nas tintas.
Quando chegou aos 30 anos, Salvador, com ajuda de um profissional, descobriu que no fundo, o seu verdadeiro amor eram as palavras. A partir daí se dedicou apenas na escrita. Em menos de um ano, já tinha vários romances, contos, poemas, tudo que tinha a ver com literatura ele havia escrito.
– Quando é que você vai ter coragem de se mostrar ao mundo? Ele precisa ler o que tu escreves. – dizia a namorada que até o momento era sua única leitora.
– Quando chegar o tempo, eu vou – disse ele com toda a insegurança do mundo.
– Vamos fazer assim, você coloca um dos seus contos na internet, se as pessoas gostarem, você não para mais, faremos isso hoje e agora. Negócio fechado? – disse ela estendendo a mão para um aperto.
– Está combinado.
Naquele dia, a namorada escolheu o conto mais interessante que Salvador havia escrito e ele o publicou no seu perfil do Facebook. Não demorou muito para receber chamadas de amigos que haviam gostado do seu trabalho – o afogando em congratulações.
– Eu não disse que eles iam gostar? Daqui em diante você não para mais.
Salvador fez aquilo por vários meses. Começou não só a receber reações dos seus conhecidos, mas também de pessoas desconhecidas.
As coisas estavam indo rápido demais, depois de um ano, Salvador recebe uma chamada:
– Alô, é o Senhor Salvador?
– Sim, como é que posso ajudar?
– Temos acompanhado seu trabalho na internet, você é o Shakespeare da nossa geração – disse a voz do outro lado da linha. – Queríamos saber se gostaria de trabalhar connosco. Somos uma editora que se interessa muito em jovens escritores, talentosos como você.
Aquela era a oportunidade certa para Salvador retirar da gaveta milhares de romances que estavam criando teias.
– Vamos tentar – disse ele.
Passados alguns dias, foi chamado para o escritório da editora. Conversou sobre os termos de publicação, como seria seu pagamento e tudo mais que não importa muito para você que está lendo isto. Depois de 3 meses, publicou um livro de terror com o título O Purificador da Internet que falava de um assassino em série que matava suas vítimas a catanadas. As vítimas eram pessoas que viviam na internet publicando coisas inconvenientes e falando mal dos outros. Dizia ele, estar tornando o mundo virtual melhor.
Nos primeiros dias da publicação do livro, Salvador já era o autor que mais vendeu em menos de uma semana na história da literatura do seu país. Aparecia nas manchetes de jornais, televisão... resumindo, em tudo o que difundia informação.
Como qualquer sucesso tem dois lados, principalmente quando você é um artista, uns apreciam e outros rejeitam sua arte. Por um lado temos aqueles que querem nos ajudar a crescer, por outro, os que querem nos destruir. Não foi diferente com a obra de Salvador, ele não era especial para escapar das pessoas que passam suas vidas de merda não fazendo nada e apontando defeitos no que pessoas que ao menos levantam os seus rabos do sofá fazem.
Muitos críticos apareceram na vida de salvador, pessoas que nunca haviam lido um livro antes, tornaram-se críticos literários. Mas não se importava muito com eles, os via como infelizes desocupados procurando por algo para fazer, que lhes fizesse escapar das suas vidas entediantes.
Havia dias que Salvador dedicava-se a ler os comentários das pessoas que acompanhavam seus trabalhos, agradecendo àqueles que davam um feedback positivo ou aos que davam o negativo educadamente, ignorando os infelizes consumidos pelo tédio. Num desses dias, notou que uma jovem comentava em tudo o que ele publicava, dava todo o tipo de elogio que você daria se tivesse coragem de demonstrar o verdadeiro respeito que tem pelo trabalho das pessoas que admira. Em todos seus comentários ela incluía: “Gostaria tanto de te conhecer pessoalmente.” Visto aquilo, Salvador mandou uma mensagem para ela pedindo seu contacto. Sem demoras já o tinha. Combinaram então, um encontro numa lanchonete da sua cidade.
No dia combinado, Salvador saiu com sua namorada para conhecerem aquela moça. Quando chegaram, acomodaram-se e avisaram que ela os encontraria na mesa 7. Não demorou muito para uma menina dos seus 15 anos chegar até eles. Era bonita, clara, com espinhos de adolescente no rosto, sem mais que 1 e 60, não era magra, nem gorda.
– Oi, meu nome é Janeth. Pode autografar o meu livro? – disse ainda parada na frente do casal.
O livro era O Purificador da Internet.
– Oh, sente-se Janeth – disse Salvador. – Teremos muito tempo para isso.
– Eu não quero correr o risco de você se esquecer de assinar. – Janeth se sentava.
Salvador pegou na caneta que estava no bolso da camisa e deu aquele rabisco de merda que tanta gente quer das pessoas que admira.
– Eu também sou muito fã deste senhor – disse a namorada encostando sua cabeça no peito de Salvador –, mas você me supera. Definitivamente, ele devia escrever seus livros pensando em ti, escrever coisas perfeitas temendo decepcionar pessoas como você.
Salvador queria tanto dizer que os escritores escrevem para eles mesmos, mas não, aquilo podia não ser conveniente. Apenas disse:
– Eu nunca vou te decepcionar, Janeth.
Ficaram ali por mais algumas horas. Salvador pagou um lanche, jogaram conversa fora. Janeth não ficava sem pedir a namorada de Salvador que lhes tirasse umas fotos. Quando ficou tarde, saíram daquele lugar.
Dias passaram e salvador continuava publicando seus contos nas redes sociais e continuando quebrando records nas vendas do seu primeiro livro. Não mais ignorava os infelizes da internet, uma vez a outra, respondia aos seus comentários.
– Senhor salvador, as provas estão contra ti. Tudo aqui aponta que você teve algo a ver com o crime – dizia o delegado.
– Eu juro que nunca vi esse homem antes, senhor.
– Nunca viu, mas temos aqui a prova, você o ameaçou no seu Facebook.
– Ameacei sim, não nego, mas juro nunca ter encontrado esse homem na minha vida. Juro pela alma dos meus leitores.
– Pode recolhê-lo para a cela – disse o delegado.
Um policial levantou Salvador e o acompanhou.
– Ao menos me dê um livro para ler – gritou ele.
Salvador havia sido acusado de assassinar um dos seus críticos da internet. Era um senhor dos seus 44 anos, escritor, que nunca havia dado certo com suas palavras. Ele sempre falava mal dos trabalhos dele. Dias antes do seu assassinato, Salvador havia o confrontado. Salvador comentou: “Estou cansado das suas brincadeiras, o mundo não precisa de pessoas como tu.” Para além dessa ser uma prova, parecia que Salvador tinha entrado no personagem que havia criado, O Purificador da Internet. O escritor infeliz havia sido morto a milhares de cortes que pareciam ser catanadas.
Como a mídia vive de informação, não demorou muito para nas manchetes de jornais e destaques de noticiários aparecerem coisas como: O PURIFICADOR DA INTERNET ENCARNOU-SE NO CRIADOR; UM ESCRITOR CANSA DAS PROVOCAÇÕES DO COLEGA E MATA A CATANADAS. As vendas do livro de Salvador foram suspensas em todo o país, ele perdia seus seguidores do Facebook – a origem do problema. As únicas pessoas que ainda davam suporte a ele, eram a namorada e Janeth, sua fã número 1.
– Eu acredito na sua inocência – disse Janeth em lágrimas, enquanto visitava seu ídolo na prisão.
– Obrigado por ficar do meu lado, mas você não devia estar aqui.
– Minha mãe deixou eu vir, sabia que nunca ia parar de pedir – retrucou ela.
Salvador estava na prisão, embora, ainda não havia sido julgado, mesmo assim não havia nenhuma chance de ele ser inocentado, nada, absolutamente nada, estava a seu favor.
No dia de ser sentenciado estiveram sua namorada, a menina Janeth e outras pessoas. O tribunal estava infestado de fãs e pessoas que odiavam Salvador. Uma mulher que abraçava 4 crianças, estava em prantos exigindo justiça.
O juiz, não tinha mais nada a fazer senão condená-lo. Enquanto começa a ler a sentença, Janeth e a namorada choram, lagrimas inundam o tribunal. Ele de pé, acorrentado como um cão, apenas escutava:
– Salvador Txulo, o senhor está condenado a 10 anos de prisão.
Enquanto o Juiz se arma em Thor e levanta o seu martelinho, Janeth levanta-se e diz:
– Fui eu, fui eu que matei – a sala fica silenciosa, com apenas o som do ventilador que parecia ter séculos sem ser trocado e da voz da criança. – Eu matei, o mundo realmente precisa de um purificador da internet, são muitas pessoas infelizes que ficam por aí comentando algo que não deviam, julgando pessoas que estão trabalhando. Eu o matei, e gostaria de matar mais, matar a todos esses infelizes. Se quiserem as provas de que matei eu vou mostrar, mas não o prendam porque estava apenas fazendo seu trabalho e uma pessoa frustrada da vida queria deixá-lo para baixo.
Salvador ficou perplexo, soltou umas lágrimas. Um policial levou ele para uma sala, enquanto Janeth saía para mostrar as provas de que havia matado.
Quatro horas depois é convocado até a sala do tribunal, dessa vez para ser inocentado. As notícias não demoraram correr.
Janeth havia mostrado a catana que havia usado para matar aquele senhor. Havia digitais dele nela.
2 notes · View notes
quartadeficcao · 3 years
Text
A mulher
— Sabe aquela sensação de impotência, quando você aceita a situação porque já não existe opção, você tem que fazer alguma coisa porque tudo, mas tudo mesmo depende só de si? Suas pernas sem forças, mas você ter que correr?
Ele estava com a pele borbulhando a arrepios, lembrava daquele episódio como se estivesse o vivenciando, seu cabelo pulava da sua cabeça. Queria esquecer, mas as coisas desagradáveis são as mais difíceis de delas se desligar. Por isso nos apegamos tanto a elas que vivemos com a escuridão grudada em nós, por sua vez, ela acaba se apegando às nossas pobres inocentes almas humanas.
— O que aconteceu de verdade, Eric?
— Você vai me chamar de mulherzinha, mas pouco me importo. Eu sei o que eu vi e era real, mais real que o que você acha ser mais real. Aquilo era o cúmulo da realidade, sei muito bem que não era fruto da minha fértil imaginação.
— Então conta logo.
A testa de Eric brilhava mais que um diamante recém-polido, que o sol na estação mais quente do ano; brilhava que cegaria uma pessoa a quilómetros de distância.
— Era uma mulher bonita.
— Desde quando a beleza das mulheres te assusta?
— Calma — disse Eric, secando com a manga da sua camisa velha a sua brilhante testa. Suas axilas estavam ensopadas. Seu suor quase o afogava.
— Não era uma mulher comum, aquela beleza te assustaria. Nem gorda nem magra; nem alta nem baixa. Ela era mistura de todas as raças existentes no universo, criando uma só, mas, tirando tudo de belo que existe em cada uma. O cheiro dela… Ai… Aquele cheiro maldosamente doce me lembrava… Não… Deixa ver… Não me lembrava nada. Era nenhum cheiro que já havia sentido em todos os meus anos consciente do meu Eu. O meu olfacto se alegrava, até escutei ele dizendo: Obrigado, Eric, obrigado.
— Pode ir directamente ao que interessa, Eric…
Deric estava impaciente, sua curiosidade o corroía. Queria saber logo o que havia amedrontado o homem com a coragem que o permitiria enfrentar o Godzila e o King Kong juntos.
— Eu disse calma, Deric — Eric disse ríspido.
— Não temos todo o dia. Você sabe que temos muito trabalho amanhã. O mercado estará muito movimentado, é quarta-feira, Eric. Se você não tivesse saído daqui no meio da noite, não teria voltado com uma cara de quem viu a cauda do diabo.
— Seja paciente, por favor.
— Continua.
Deric abriu um bocejo, engoliu Eric, depois cuspiu ele.
— Então, a mulher estava de vestido azul cor das nuvens. Suas pupilas dançavam a música do vento que alegremente soprava. Quando ela abriu sua boca, senti um aroma… você já sabe, eu não conseguiria descrever. Aí ela disse como se cantasse ópera para mim: — Boa noite, moço, você pode me ajudar?
— E você ajudou?
— Por vezes eu acho que você não foi dado o dom da imaginação — disse Eric. — Agora imagina a Alice te pedindo que a ajudasse a fazer alguma coisa.
— Há muitas pessoas que a Alice pode pedir ajuda nelas. É muito perfeita para pedir um favor a um ser como eu, aquela mulher…
— … Shiii — interrompeu Eric. — Imagina a Alice como um crocodilo agora, diante daquela mulher.
— Um crocodilo perfeito. — Os olhos de Deric ficaram apaixonados pelo crocodilo que ele imaginou.
— Está bem, imagina como se ela fosse a sua Alice, mas mil vezes mais bonita.
— Então tinha muita beleza acumulada. Não acredito que uma pessoa consegue ser mais bela que a Alice. Continua contando.
— Veja, Deric, veja — disse Eric, mostrando o seu braço ao irmão. — Estou parecendo uma galinha humana. Mas uma galinha com a pele suja.
Deric fez uma cara impaciente.
— Então, ela pediu que eu a acompanhasse em casa do grande senhor Abir.
— Mas como você f…
— … Shiii — Eric tapou a boca de Deric com a sua mão de camponês. — Você não queria que eu contasse logo? Então fecha essa sua boca suja e escuta. Eu disse a ela: “Os seus desejos são uma ordem.”
— Mas você teve coragem de acompanhá-la nos Abir?
— Você diria um não à sua Alice?
— Obviamente que não.
— Então agora você me entende, irmão?
— Perfeitamente.
— Eu nunca achei que uma mulher daquelas me pediria alguma coisa. Tinha que agarrar a oportunidade. Eu apenas sou cumprimentado pela incrivelmente mal cheirosa da Francisca, com aquela sua boca… já estou até ficando enjoado por falar daquela…
— … Pare já — interrompeu Deric, furioso.
— Por quê?
— Para de Falar da Francisca. Esqueceu que ainda não jantamos?
— Pode ficar com a minha comida. Perdi o apetite para os próximos três séculos… — disse Eric e continuou a contar: — Eu dei um passo e ela começou a desfilar ao meu lado. Eu olhava para ela lá de baixo. Ela olhava para mim e sorria radiantemente. Eu sorria de volta, exibindo o meu sorriso de galã de cinema Russo.
Deric soltou uma gargalhada e disse em gozo: — Galã. — Riu até fartar.
Eric apenas observava ele, com uma cara desdenhosa.
— Vai me deixar continuar?
— Continua, GALÃ! — disse Deric, tentando se conter. Estava rindo por dentro.
“Solta já essa gargalhada,” lhe disse a sua cabeça. “Não posso, desculpa.” Ele a respondeu.
— Então, irmão, nós caminhamos e conversávamos. Ela me perguntou se eu tinha mulher. Eu disse que sim: uma mulher perfeita quanto ela e dois filhos lindos. Pela cara que fez quando eu disse, acho que ela sentiu ciúmes e queria que eu fosse solteiro. Me pediu até um beijo, você acredita?
— Já vi que você está inventando. Fica com a sua história. Você devia escrever um livro de ficção, Deric. Você tem muito talento para isso. Quem sentiria ciúmes de ti e quem acreditaria que tens uma mulher e filhos. Ainda aproxima, tudo bonito. Te pediu um beijo…
— Calma Deric, desculpa a parte do beijo e ciúmes — disse Eric se ajoelhando para Deric. — Preciso contar isso para alguém. Se eu não contar eu morro. Eu não quero que esse susto me mate sozinho. Você não lembra, Deric? Nossa mãezinha disse para ficarmos juntos até a morte. Por favor, Deric.
— Está bem, irmãozinho. — Deric voltou a se sentar na cadeira de madeira com o encosto morto. — Agora quero ouvir coisa séria.
Eric suspirou de alívio.
— Obrigado… Nós estávamos caminhando e ela me disse que estava com saudades da nossa cidade. “Há anos que eu saí daqui e decidi fazer uma visita, o calor, lá onde eu estava, é intenso” disse ela. “Sua visita será longa?” Perguntei, você sabe, irmão, eu sou muito curioso. Estávamos caminhando lentamente, parecíamos duas tartarugas preguiçosas. Ela respondeu: “Não sei, isso vai depender”. Eu estava gostando da conversa, Deric. Eu nunca havia tido uma conversa com uma mulher, que durara mais de 10 segundos. A não ser com uma no mercado querendo comprar o nosso repolho. O ser humano quer desconto em tudo.
— Eu sei, Eric, continua.
“Vai depender de quê?” perguntei, olhando para aqueles lindos olhos… qual é o nome da cor das folhas de uma mangueira?
— Se não forem secas, verdes.
— Ah, obrigado, Deric, você é a pessoa mais inteligente que eu conheço. Ela disse: “Se alguém quiser que eu fique, eu fico, mas nunca fui uma mulher bem-vinda nesta cidade. As mulheres daqui sempre tiveram inveja de mim.” Eu disse em pensamentos: Obviamente, você é uma mulher para invejar. “Eu quero que você fique”
— Você disse para ela ficar por quê, Eric?
— Se coloca no meu lugar, Deric. Imagina como se ela fosse a sua Alice.
— Está bem, continua.
— Eu queria que ela ficasse para continuar conversando com ela, mas duvido que teria coragem de conversar comigo à luz do dia — disse Eric, tristonho.
— A Francisca conversa consigo de dia — disse o irmão, gargalhando.
Eric ignorou a provocação.
— Aí quando eu disse que queria que ela ficasse, ampliou seu lindo sorriso para mim e perguntou: “Sério que você quer que eu fique?” eu disse: “Obviamente, madame.” Ela perguntou meu nome, eu disse. “Jurra? Você cresceu muito.” Eu fiquei pasmo, ela era mais nova que eu, mas eu não disse nada.
— Deve ser pela sua altura — disse Deric, rindo docemente novamente.
— Engraçadinho. Você só é um centímetro mais alto que eu.
— Um e meio.
— Está bem, um e meio. Agora posso continuar?
— Claro, seu anãozinho.
— Eu perguntei: “Como assim?”, ela disse para eu deixar pra lá. Eu deixei.
Quando estávamos perto de chegar nos Abir, ela disse: “Jura que quer que eu fique.” Eu disse: “Obviamente, juro pelo nome de Deric”.
Deric lançou um olhar não agradável para Eric.
— Brincadeira, só disse obviamente.
— Quando nós estávamos no portão dos Abir…
— Não acredito que você chegou no portão dos Abir. Ninguém se atreve a chegar ali, nem os familiares ainda vivos do senhor Abir. Você está me assustando, Eric, está me assustando.
— E quando chegamos, eu olhei para o lado porque um mocho cantava a música que o diabo canta para os seus demónios quando possuem perfeitamente um ser humano. Quando voltei a olhar para a cara daquela linda mulher, vi ela, Deric, eu vi, Deric. Estava toda queimada; sua cara derretia e cheirava a um pardal assado sem ser depenado. Seus cabelos soltavam chamas. O vestido azul estava todo esfarrapado e pegando fogo. Foi muito assustador, Deric, muito assustador. — Eric lacrimejava e tremia. — Eu corri feito louco, Deric. Corri como se tivesse visto um fantasma.
Deric levantou-se amedrontado e trancou a porta.
Aquela mulher havia sido queimada viva por feitiçaria. Ela matara seus gémeos de apenas 2 meses de idade, cortando seus pulsos à laminadas, e o Abir, o degolou como um frango — um homem muito rico, mas gordo e nada bonito e manco —, matou tudo no mesmo dia quando o homem descobriu que os filhos não eram dele.
Era uma mulher que seduzia os homens com a sua beleza que adquirira através de feitiçaria quando tinha apenas 5 anos de idade. Antes, ela era mais feia que a Francisca; era horrível, era mistura de tudo o que é feio em todas as raças que existem no universo.
— Quem está aí? — Perguntou Deric, quando alguém bateu agressivamente na porta da casinha que acolhia os dois irmãos. Um ar frio entrava pela janela com um vidro quebrado.
— Preciso de Eric.
— Vai embora, Francisca — disse Deric.
— Mas ele disse para eu ficar na cidade, eu não sou a Francisca — disse o fantasma da feiticeira.
0 notes
quartadeficcao · 3 years
Text
Azar não custa
Você deve ter ouvido isso eternas vezes. Eu servi como prova.
Estava sentada em cima de uma casinha de contador de água que as pessoas da minha cidade constroem para protegê-los de ladrões. Caí depois de a minha irmã ter avisado que eu cairia.
Foi uma bela caída. O chão seduziu-me com tamanha sensualidade, e a minha plateia não poupou nos aplausos, ou melhor, nas rizadas.
— Um dia isso vai acontecer consigo — falei para a minha irmã e ela deu uma daquelas respostas só dela.
— Sim, mas agora é a sua vez — disse enquanto ria. — Que peninha.
— Desde quando você sente pena das pessoas?
— Não tenho pena de você, tenho pena do chão — gargalhou idiotamente.
Estava pronta para responder-lhe a altura, quando se levantou de supetão e sorriu grandemente. Chegava até a assustar, pois ela não era alguém de muitos e longos sorrisos, então, sempre que ela sorria, mais parecia uma careta.
Levantei-me também, querendo saber o motivo daquele sorrisão-careta e, quando virei o meu belo rosto, estampei logo uma careta na cara. Era Eduardo, mais conhecido como Edu: o menino riquinho da cidade. Todas as meninas se ajoelhavam perante ele e, sempre que ele passava perto delas, perdiam sua sanidade. E bem, minha irmã era uma delas.
— Olá, meninas — disse ele, chegando perto, com seu sorrisinho irritante.
Mesmo minha irmã tendo uma pele morena, pude ver um levezinho tom rosado em seu rosto.
Muito patético.
Ela sentia sentimentos por Edu, sorria sempre que via ele (disfarçadamente), mas depois voltava a recuperar a sua cara séria, e destratava o pobre riquinho.
Eu sempre falava para ela ser mais amorosa com ele, pois, não tinha culpa de ter o que tinha. Kátia não gostava nada de pessoas que parecia que o mundo sorria mais para elas. Não gostava de Edu; dos seus pais; ela não gostava até dos pobres mil cães que moravam naquela família.
— Oi, Eduardo — repliquei.
— O que fez você sair de casa, mimadinho mimado?
— Quando é que vai parar de me chamar disso, Kátia?
"Quando você for um pobretão, rico de miséria." Quis eu dizer, mas, a minha mente sana ordenou que eu dissesse:
— Ela vai parar quando você começar a agir feito homem.
Pobre Edu, era um pobre inocente menino de 12 anos. Eu estava dizendo para ele aquelas coisas. Devia ter medido e diminuído a facadas a minha comprida língua de Vennom.
— Eu sou homem.
— Um homem... — bufou minha irmã, fazendo uma careta desdenhosa.
— Prova para ela que você é homem, Eduzinho — falei ríspida.
— Eu não preciso provar nada.
— Pois! Não há como você provar o que não é, mimadinho mimado.
Minha irmã saiu andando. Um andar triunfante, de alguém que havia comprido com a sua grande missão no universo. Nesse caso, fazer Edu se sentir menos do que era.
— Você precisa provar a ela, Edu — falei enquanto corria atrás da minha irmã.
— Você deve parar de tratar o pobre menino assim — diminuí o passo, assim que cheguei perto dela.
— De pobre ele não tem nada, e se você continuar defendendo ele, não falo mais com a Pobre Você. — Saiu empinando o nariz, com ar de superioridade.
— Mas o que a Pobre Eu fez? — gritei indignada, a vendo entrar dentro de casa. Bufei, seguindo os mesmos passos que ela. Jogou-se no sofá da sala, assistindo uma novela qualquer. Não dei tanta importância. Fui em direção à cozinha.
Sempre que estivesse brava, o melhor a se fazer era manter milhas de distância dela.
Quando cheguei, encontrei minha mãe fazendo uns biscoitos achocolatados, cantarolando uma música conhecida por somente ela. Sentei-me à mesa e peguei uma maçã na cesta de frutas e comecei a dar umas mordiscadas gulosas que as de um porco faminto.
— Por que a Kátia encarnou os dragões? — perguntou ela, concentrada nos seus biscoitos.
Dei de ombros, falando que a razão daquilo era o Edu. Ela pareceu ter entendido, pois, perdeu suas falas por um bom tempo.
— Deixe ela! Daqui a alguns minutos estará vindo aqui na maior cara de pau, mendigando atenção.
Um pequeno detalhe: minha mãe não tinha papas na língua. Ela falava o que lhe dava na teia e, mesmo assim, pra mim, soltava daqueles lábios rosados sábias palavras. Nunca entendia muito, e acho que nunca entenderei bem o que sai daquela mente Yodáica.
— Mãe, a senhora sabia que a tia Tininha voltou pra casa da mãe? — perguntei como quem não queria nada, mordiscando, agora angelicamente, mais um pouco da minha maçã. E sim, eu e minha mãe éramos grandes cuidadoras de vida alheia, mas não daquelas que ficam falando mentiras por aí.
— Pois é. Com um marido daqueles, quem aguenta, mesmo? — disse ela, indo pegar uma tigela na gaveta do armário. — Aquilo foi mais um livramento. Ouvi dizer que ela até está com planos de sair do país.
— Por quê?
— Não se sabe — disse dando de ombros, e quando estava pronta pra falar algo, minha irmã entrou na cozinha de cara amarrada, com braços cruzados e tudo, sentando-se na cadeira bem coladinha a mim.
— De quem estavam falando dessa vez? — perguntou, e minha mãe respondeu um "nada", o que a fez ficar com cara de amigo nenhum.
— Estou sendo excluída, meu Deus.
— Nosso Deus, que egoísmo, filha. É nosso Deus.
No dia seguinte, enquanto eu saía de casa para brincar com a minha amiga, Bionda, me esbarei com Edu, me esbarei não, ele tocou em meu ombro. Pulei de susto porque estava distraída.
— Que susto, Edu!
— Desculpa-me, Karla. Você pode me ajudar? Pensei muito bem em o que você disse ontem.
— Eu também pensei, acho que você não precisa fazer isso. Estava de brincadeira consigo, você é um homão.
Eu queria me livrar dele. Eu tinha que me livrar dele. Eu queria encontrar minha amiga. Eu queria brincar de me fantasiar em Sakura, de Naruto, ou melhor, me fantasiar em minha irmã. Nem a Sakura se esbravejava mais que a Kátia.
— Eu quero fazer isso.
— Posso saber dos porquês?
Edu colocou a mão no queixo simulando um raciocínio, mas duvido ter usado seus miolos.
— Eu só preciso provar que sou um homem.
— Que idiota.
— O quê?
— Nada. — Eu havia pensado alto. — Vou te ajudar, há várias opções para provar a ela que você é um homem de verdade.
— Uma delas?
— Você conhece o Yuki?
— Quem não conhece Yuki?
— Você deve entrar numa briga com ele em frente da minha irmã e, sair vitorioso.
— Tá maluca? — perguntou ele, transpirando susto e medo e pânico e terror e morte e o fim do mundo.
— Não tô maluca não, mimadinho mimado — falei isso de mimadinho mimado para criar certa pressão. — Não foi você quem disse que queria provar ser um homem? — disse debochada, o vendo começar a hesitar.
— Me envolver em uma briga não vai me tornar homem — disse ele, começando a usar seu cérebro. Mas, ele havia estragado a minha saída, então teria que aceitar aquilo. Seria bem engraçado até. Ficar convencendo ele a lutar, bem melhor que me fantasiar em Sakura.
— Então eu não tenho como te ajudar, mimadinho mimado — disse eu caminhando, e esbarrando-me em seu ombro propositadamente. Andei despreocupada esperando ele me seguir, e acho que isso vai acontecer em três, dois e...
— Espera, Karla — gritou enfim, correndo em minha direção. Esbocei um sorriso diabólico, me virando pra ele. — Eu aceito o seu plano. — Disse depois de me olhar por bastante tempo, o que me deixou bastante excitada. Até comecei a dar uns pulinhos de alegria.
Andei em direção a ele, juntando meu braço ao dele e caminhando de volta a casa. Da Bionda trataria no dia seguinte, eu apenas queria garantir o meu empolgante entretenimento.
— Bom, querido Eduardo, eu trato de tudo. O senhor só precisa estar em frente à escola depois das aulas.
— No que você está pensando, preciso me preparar para algo específico? — perguntou, o braço dele tremia como se estivesse sendo congelado por um frio de mil graus negativos. Lancei-lhe um sorriso amarelo e disse: — Nada, querido Edu, nada.
Segundas feiras sempre foram pedra no sapato.
Depois de um final-de-semana inteiro brincando, você tem que deixar a preguiça descansar e ir 'pra escola. Algo que eu não queria. Mas quando minha mãe entrou como um furacão em nosso quarto, em plenas cinco horas da manhã, até cogitei a ideia de fingir estar doente, mas não ia funcionar. Depois de tomarmos banho, eu e Kátia botamos algo na boca e nosso pai nos acompanhou à escola. Além do mais, precisava cumprir com o meu plano diabólico.
Eu estava fazendo a quinta classe, e Kátia, sétima, então, nossas salas eram separadas.
Quando chegamos, já pude assistir Bionda com seus cabelos curtos que sempre a faziam parecer uma bruxinha, com sua enorme pasta da Elsa, aquela princesa que canta Lerigó (Let It Go).
— Por que não foste em casa ontem? — perguntou ela quando nos separamos da minha irmã e caminhávamos para a nossa sala.
Expliquei-lhe o que acontecera e, quando chegamos na sala, vi Yuki. Ele era dois anos mais velho que nós, mas reprovou duas vezes.
O que me intrigava em Yuki, é que ele era um monte de ossos, uma ossada ambulante, mas, era muito bom de pancada. E, o belo nele, era que não provocava ninguém. Ele era calmo, apenas não aturava provocações. Eu precisava fazer alguma coisa para que algo acontecesse. Então comecei a bolar o meu plano dos diabos.
No nosso primeiro intervalo, Yuki estava parado em seu canto, quando fui atrás dele, sozinho como sempre, encostado numa das paredes da nossa sala-de-aulas.
— O que você quer, menina? — disse ele. — Você não tem medo de mim como os outros?
Eu tinha medo de falar o que não devia. Mas mantive minha calma, porque bom, Yuki gostava de uma boa luta, porém, não tocava em nenhuma menina, mesmo falando mal do seu pai alcoólatra. Mas, com os meninos, perdia as estribeiras.
Uma vez quis lutar com o próprio tio, por falar mal do seu pai. Aquele alcoólatra desprezível.
Espero que Yuki nunca leia esta história.
— Eu quero te contar uma coisa, Yuki.
— O quê?
— Algo que você não vai gostar, é sobre o Edu.
— Aquele mimadinho mimado? — Yuki perguntou em deboche.
— Sim.
— Manda vir.
— Ele disse que seu pai é um grande idiota, ele vive no bar da Tina, se apegou tanto a ele que, se pudesse, mergulharia num barril de cerveja para nunca mais sair dele.
Yuki já estava gritando o nome de Edu, despertando a atenção de toda a escola.
— Eu te mato, seu mimadinho. Eu mato...
— Isso não é de perdoar, Yuki. Não é não — agitei voando, à procura da minha irmã.
Quando a encontrei, segurei em sua mão e arrastei-a feito uma vassoura, para irmos atrás de Yuki, que estava atrás de Edu.
— Menina, me solta.
— Você precisa ver isso, maninha.
— Ver o quê, sua urubu?
Nem me importei com seu apelido carinhoso. A puxei pra fora da escola, onde um monte de pessoas já começava a se amontoar.
— Apareça, seu mimadinho de merda, e fala isso na minha cara!
Ouvimos o grito de Yuki, e já fui me espremendo entre as pessoas, ainda segurando na mão de Kátia, que pedia desculpa às pessoas e me dizia pra ser delicada.
— Essa será a luta do século. Não, do século não, do milênio — disse sorrindo. Quando chegamos perto de Yuki, seus olhos vibravam de raiva.
— Karla, por que ele tá gritando o nome do Edu? — perguntou minha irmã, com uma cara preocupada.
— Shiii! Só observa — falei, quando na enorme roda começou a abrir-se um caminho.
Dois brutamontes, que eram amigos de Yuki, apareceram carregando Edu pelos braços. Ele se debatia parecendo uma galinha querendo fugir depois de ver uma faca.
— Agora você vai falar na minha cara o que disse! — disse Yuki, parando em frente ao Edu, quando este foi posto em pé no chão.
— E-eu não fa-falei nada — disse tremendo, percorrendo o olhar pela roda e logo se encontrando com os meus olhos.
— Você falou sim, seu... — Mal terminou a sua fala, e Yuki já deu um soco habilmente dado no Edu. Que caiu de bunda no chão fazendo com que um coro de "Oooh" uivasse.
— Tem dedo seu nisso, não é? Meu Deus, vai ajudar ele, Karla — Ouvi minha irmã falar. Dei de ombros. Voltei meus olhos ao Edu, este que começava a se afastar, ainda no chão.
— Ele é homem, consegue se defender — falei debochada, a vendo murchar os braços.
Quando olhei de novo, Yuki deu outro soco no Edu.
— Eu vou deformar tanto esse rostinho que nem sua mãe vai te reconhecer — falou Yuki com raiva, já começando a dar vários socos nele, em diferentes partes do corpo ossudo de Edu.
— Para com isso, Yuki — disse minha irmã, com um soco de Yuki pendendo no ar. Ele lançou um olhar para ela e sorriu diabinhamente. — Está defendendo o seu namoradinho? — Disse isso e soltou o soco que pendia para a barriga de Edu.
— Ele não é meu namoradinho, é um pobre ser humano sofrendo nas suas mãos de ogro.
A multidão uivou. Yuki deu um soco de bacela no rosto de Edu.
Quando Yuki saiu de cima de Edu, minha irmã e eu fomos ter com ele, que se debatia no chão. Seu olho direito estava inexistente.
— Como você está, Edu?
Aquilo havia funcionado, de alguma forma, ao menos minha irmã não havia o chamado de mimadinho mimado.
— Estou acabado, e minha mãe vai me acabar ainda mais quando eu chegar em casa.
Eu olhei para Yuki e disse: — Agora sim, você é um homem, não é, Kátia?
Kátia não respondeu.
Quando eu queria perguntar como Edu se sentia, mas só por perguntar mesmo, eu 'tava nem aí para como ele havia lidado com a porrada, todos começaram a correr e o motivo disso apareceu: vestido em um terno horrível, sapatos pretos caros, mas igualmente horríveis, e uma enorme carranca no rosto.
— Todos vocês, para minha sala, agora! — Gritou firme o diretor e eu senti vontade de revirar os olhos, mas me contive.
— O Edu 'tá machucado, temos que levar ele para casa — disse minha irmã, mas logo fechou o bico com a encarada do diretor.
— Eu não quero saber. Todos vocês na minha sala, agora, antes que recebam uma punição pior.
Disse saindo, depois de nos dar outra encarada. Suspirei, e ajudei Kátia a levantar Edu do chão, com o olhar afiado de Yuki. Esse vai ser um longo dia...
— Eu quero que vocês me digam agora, sem rodeios, por que estavam fazendo aquela baderna? — disse o diretor, e eu quase arranquei meus cabelos. Kátia falou tudo pra ele, mas, omitindo certas partes. Ele não acreditava de jeito nenhum!
Adultos são chatos.
— Eu já disse, diretor. Yuki pensa que Edu falou algo que ele não disse, e saiu batendo nele sem esperar uma explicação.
Olha, o Edu deve fazer um santuário para mim, porque ser defendido pela Kátia é algo raro.
— Eu não disse nada, senhor diretor, juro! — disse Edu, pela quinquagésima vez, já soltando lágrimas, até do bofo dele.
Nojento.
-
Escrito por Vanildo Maposse e Sheinila Pires Cuna
1 note · View note
quartadeficcao · 3 years
Text
Traição Dentro de Casa
Eu havia combinado com o Nico de não chegarmos à escola para fazer tudo o que adolescente normal de 15 anos hoje em dia faz no ensino secundário.
Era quarta-feira e as nossas aulas seriam duplas em sequência:
1) Do professor de Química, que nunca se atrasava e não faltava na escola nem que houvesse um furacão. Estávamos mais que cansados da sua cara;
2) Do professor de Física, que nas suas aulas não era permitido sorrir ou dar um cochicho;
3) Do professor que estava sempre me levantando para ir ao quadro, mesmo sabendo que em Matemática eu era a encarnação da burrice.
Às 11h30, comecei a me preparar para o meu dia de escola, ou melhor, meu dia de extrema gazetação. Estava tão empolgado que não via a hora de sair de casa, não prevendo que, naquele dia, algo que ia mudar a minha maneira de olhar para as pessoas estava prestes a bater na minha porta.
— O que fazes no meu quarto, Miguel? — perguntou minha mãe.
— Nada, estou a procurar a minha camisa.
— Suas roupas não ficam no seu quarto? — retorquiu ela.
— Queria usar aquela camisa, a senhora sabe qual é.
— Oh, quer impressionar as meninas!? — disse minha mãe e escutei o zíper da sua mala gigante abrindo. — Eu guardei aqui, espera só um minuto.
— Não precisa se preocupar — falei, nem sorrindo nem fazendo uma cara séria. Acho que não havia expressão nenhuma em meu rosto.
Eu não queria aquilo, até porque eu não gostava daquela camisa. Ela entrou no quarto e quase me pegou no flagra, enquanto assaltava a sua bolsa. Tinha que inventar alguma coisa.
— Se eu colocar aquela camisa vão me expulsar da sala, o uniforme serve como passaporte.
Minha mãe nada disse, apenas me olhou estranho e, provavelmente pensando “Então o que tu querias aqui, meu filho bonitão?” Não leve muito a sério essa última parte, mas não sou assim tão feio.
Os 30 meticais estavam sendo sufocados pela minha mão que já começava a transpirar. Saí para o meu quarto com ar de missão cumprida, eu havia sido um ladrão habilidoso. Me sentia como se estivesse no La Casa de Papel, versão Moçambicana. LA CASA ERA EL BOLSO DE MI MADRE.
— Que tal, conseguiste aquela cena? — perguntou Nico.
Nico era muito comportado, mas minha mãe achava que ele fosse uma má influência para mim. Todo mundo acha que as pessoas que têm menos que nós, é que são os diabos nas nossas vidas e pretendem nos desviar dos caminhos celestiais.
— Eu sempre consigo, e tu?
— Infelizmente não — Nico respondeu num tom meio triste. — Brincadeira. — Disse em excitação. — Tive que txunar a espinhosa do tio Langa para ter algumas moedas. — Esboçou um sorriso em seu rosto gordo e me deu um soco bem dado na barriga. Saiu correndo e fui atrás dele, com aquela gordura não chegaria longe. Quando o encontrei, lancei o meu pé a frente dele dando-lhe uma rasteira habilidosamente dada e logo caiu de frente.
Nós brincávamos assim, nos machucávamos o corpo, mas nunca o coração um do outro. Eu amava o Nico e, bem, tenho a certeza que era recíproco mais que muitas relações amorosas que apenas aparentam. Sem saber, eu tinha um exemplo de falsa reciprocidade que vivia debaixo do meu nariz.
— Estou meio sujo pá, não podias ter feito outra coisa para além de me dar essa rasteira de Van Dame? — Nico sacudia a poeira na sua gigante barriga de gordo.
— Esquece isso, nem vamos a aquela merda de escola.
Quando chegamos ao nosso destino, juntamos nosso dinheiro e ficamos decidindo quem iria comprar o que queríamos.
— Tu vais hoje, eu vou da próxima — disse ao Nico.
— Não, eu não vou.
Tomei coragem e fui. Aquela discussão só nos faria perder tempo.
Quando eu disse o que queria, o senhor que vendia na barraca onde fomos, me lançou um olhar de quem por dentro dizia: “Geração perdida”. Mas de quem é a culpa? Se não quer que a geração se perca, por que continua vendendo para ela?
Comprei uma bebida barata e uma garrafa de Sprite, misturamos os líquidos no meu bebedor e saímos andando. Fomos para uma obra de uma casa, abandonada, bem perto da escola e nos sentamos numa das suas janelas.
— Tu não precisas ser apressado assim, os gordos ficam bêbados facilmente. — Nico não se importava em ser chamado de gordo. Até porque se a ofensa for para um amigo, nunca é bullyng.
— Não, os sem carne ficam, eu tenho muita gordura para alimentar em meu corpo, tu não tens — falou com a cara enrugada pelo gosto do álcool.
— Me passa logo isso, preciso me sentir high.
Nico me passou e dei um gole muito alto na nossa mistura. Também franzi o rosto.
— Lentamente, estamos a nos matar.
— É morte lenta mesmo, se não fosse, o Johnny estaria morto antes de nascer — replicou Nico e soltamos uma gargalhada.
Não se fala do diabo que ele aparece. Logo que falamos aquilo, Johnny surgiu de parte incerta.
— O que é isso aí? Vocês não deviam estar a estudar?
— Isso não é nada — apenas falei isso. Eu não devia nenhuma satisfação ao bêbado do Johnny e ele não precisava saber da minha careira estudantil.
— Eu senti o cheiro disso a quilómetros. Me dêem um gole, putos. Bebida não se nega.
Eu não queria que ele tomasse pelo gargalo, então, abri o bebedor, disse para que ele deixasse a cabeça pendendo para trás, e derramei aquilo na sua enorme boca. Sua cara permanecia a mesma, Johnny era feio demais pra fazer cara feia enquanto bebia.
— Puto, você vai me matar — disse ele quando algum liquido lhe invadiu o nariz.
— Desculpa e chega.
— É, chega — concordou Nico. — Também precisamos ficar embriagados como você.
Johnny chiou e o nosso álcool havia sido o seu chá de sumiço, desapareceu sem um tchau, muito menos obrigado. A ingratidão corre nas veias do ser humano.
Ficamos ali nos trocando o bebedor e jogando conversa fora. Já estávamos a planejar quando repetiríamos aquilo.
Num dado momento, apareceu um senhor: quilómetros de altura, escuro e grande que me lembrava o King Kong. Quando queríamos nos afastar dele, nos segurou pelas golas das nossas camisas.
— O que vocês querem na minha obra? São vocês que andam a deitar aquilo aqui, hein?
Apontou para um canto. Um monte de garrafas de bebida que as pessoas têm receio de consumir em público estava entulhado naquele lugar.
— Gás — gritei. Esse era o nosso código para “corre”.
Fizemos toda força que pudemos para sair dali. Aquele senhor não conseguiu mais nos segurar e saímos a mil pés. Corremos sem olhar para trás. Quando chegamos num ponto, o vento penetrava minhas costas e descobri que a minha gola e toda a parte de trás da minha camisa, estava inexistente. No momento não pensei em como explicaria aquilo em casa.
— Vamos pra casa, preciso trocar esta camisa, não terminamos a nossa missão. Depois de bebida, o que as pessoas fazem é procurar meninas para chatear.
— Azgoo!
Caminhamos enquanto gozávamos com o corpo um do outro:
— Seu gordo, aposto que quanto mais tu crescias, teus pais aumentavam o tamanho da porta da sua casa.
—Seu monte de ossos, és tão magro que pareces um bambu quebrado ao meio.
Quando chegamos na entrada de casa, tive que fazer uma cara séria, muito séria mesmo. A bebida já estava a invadir o meu espaço lúcido. Precisava agir normalmente.
Entrei tipo ladrão. Se a minha mãe não me visse, seria uma vantagem. Passei pela sala e, quando estava indo para o meu quarto, a porta do quarto dos meus pais estava entreaberta e quando mirei para dentro, quatro olhos me encaravam.
Fiquei paralisado, entrei em pânico, comecei a sentir coisas que não consigo descrever.
Os olhos que estavam me encarando eram os olhos da minha mãe e de um homem desconhecido. Minha mãe estava abrindo os botões da sua camisa.
Saí de casa correndo, sem saber para onde ia. Não me lembro se esbarei em algo ou não. Se disse alguma coisa antes de sair da casa ou não. Coria enquanto lagrimas jorravam em meus olhos.
Nico correu atrás de mim, mesmo com aquele corpo de baleia conseguiu me alcançar. Segurou na minha mão e me soltei dele com agressividade, que ele quase caiu no chão.
— O que se passa, Miguel?
— Nada — falei. Eu não queria dizer nada porque aquilo podia fazer Nico não gostar mais da minha mãe, não mais respeitá-la. — Vamos para tua casa me emprestares uma camisa?
Nico concordou sem hesitação. Caminhamos sem eu ser o eu de antes. Ele continuava a me perguntar o que havia se passado. Eu não respondia nada. Apenas dizia “Hoje a paulada me diz para ficar sério”
Inventamos que o professor não estava, para a sua mãe, e que minha camisa havia ficado presa a um arrame na escola, sem eu perceber, por isso havia se rasgado. Nico me passou uma das suas camisas gordas, que caberiam umas mil versões minhas nela, ao mesmo tempo.
Usei e continuamos conversando no seu quarto enquanto bebíamos o que havia restado.
— Afinal não vamos sair para chatear algumas meninas?
— Elas merecem um pouco de respeito, não achas? — falei. Nico deu de ombros.
Quando voltei para casa, fui diretamente ao meu quarto escutar músicas tristes. Eu pensava no que tinha que fazer.
Minha mãe preparou o jantar e nos sentamos os três à mesa. Eu e meus pais. Demos as mãos — eu queria quebrar aquela mão de traidora — e meu pai fez uma oração para abençoar aquela refeição em família.
— Têm a certeza que vocês não aprontaram um para o outro tal como da última vez? — perguntou meu pai pela segunda vez. Eu encarava minha mãe como se fosse minha arquirrival. Fuzilava ela com os olhos.
— Sim, papá, não há nada — respondi.
Naquele dia queria ter ido à escola. Encarar todos aqueles professores de merda.
Minha mãe pode ter descoberto o desaparecimento dos 30 meticais, mas nunca falou deles. E olha, ela sempre descobria e sempre falava. Deixei meu pai vivendo com os seus chifres e fingi aquilo nunca ter acontecido.
O que tu farias se estivesses no meu lugar?
3 notes · View notes