Tumgik
vestidadelunetxs · 5 years
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Carta
When routine bites hard And ambitions are low And resentment rides high But emotions won't grow And we're changing our ways Taking different roads
Love, love will tear us apart again
Oi, Pedrinho, tudo bem?
Nunca fui de escrever cartas. Minha consciência de mim é tão aguda que me impede de fazer aquilo que considero o mínimo constrangedor. Tenho vergonha do que pode sair de mim e, principalmente, do que as pessoas vão achar. Ainda não consegui superar isso. Mas essa carta, venho querendo escrever há um tempo. Inclusive, falei pra você que já tinha escrito. Menti, não sei por quê. Pra parecer descolada, ou ter assunto. Mas nunca escrevi e, nos últimos tempos, sempre penso que seria uma boa ideia, mas na hora h me bate um cansaço e um desânimo imensos. Fica pra depois. Isso é meio geral, você sabe que eu estou sempre cansada e desanimada pra fazer quase tudo que não seja uma obrigação. Me mexo quando alguém depende de mim, ou espera que eu faça algo. Quando a única interessada sou eu, parece que toda a minha energia vital se esvai. Pode ter um outro motivo, mais poético - já ouviu que quando você coloca um pensamento no papel (ou no computador) ele deixa de ser seu? Talvez minha relutância em tenta sistematizar esses pensamentos tenha a ver com um certo receio de perder o controle sobre eles, sobre a narrativa que eu construí na minha cabeça ao longo de anos. 
E também tem outra coisa - por que eu ainda ligo pra isso? Eu me odeio por ligar, me desprezo. Por que eu ainda sequer tenho o impulso de escrever uma carta, idiota, pra alguém que não sente a mesma necessidade, ou algo semelhante? Pior, por que eu quero manter minha presença viva, de qualquer forma, em uma vida encaminhada, que há muito tempo não tem espaço pra mim? A minha maior fonte durante os problemas que tive no trabalho no ano passado têm a ver com essa ‘‘dissonância emocional’‘. Já te falei isso, pior que sentir algo muito forte e muito ruim, é quando o ‘’outro lado’‘ da história não sente nada minimamente próximo, nada que permita uma conexão, um vínculo na perda. Eu lembro que te falei, meio profeta da tragédia que insisto em ser, que o trabalho era a decepção que faltava. Por outro lado, isso é também o que me permite enviar isso: eu sei que não vai te afetar como me afetaria e não faria isso caso fosse o contrário. Não tenho a intenção, nem a capacidade, de estragar seu domingo. 
Enfim, estou me alongando e nem comecei ainda. Primeiro queria que você entendesse, Pedrinho, por que eu levo isso tão a sério. Desde criança eu sempre achei a vida uma piada de mau gosto. Passei a minha infância e adolescência enterrada em livros, e coincidentemente em histórias épicas, pra preencher um vazio que sempre tive em mim, uma sensação de perda iminente, de estar na beira do desespero o tempo todo. De solidão, de ausência de sentido, de feiura. Não é que eu tenha tido consciência disso sempre, ou que sempre tenha sido tão chata, mas é a real. Eu sempre tive fome de conexão humana e de conexão humana duradoura, porque só assim pra passar pela vida como eu a vejo. Encontrava isso na ficção porque não encontrava na realidade. Você sabe que sempre me senti rejeitada e acho que entendo melhor isso hoje: não é que eu fosse, de fato, rejeitada, que não tivesse amigos. É que eu não tinha quem fosse me segurar por uma vida inteira, não tinha uma amizade daquelas que realmente só existem nos livros. Com poucos anos eu já antecipava o abandono que não é nada além do curso mais natural da vida. As pessoas crescem, se afastam. Mas isso continua sendo impossível pra mim. 
Você se tornou meu comportamento mais destrutivo, hoje, porque você era a minha calma, a minha estabilidade. Mesmo sem nunca ter falado isso, ou provavelmente sem ter tido essa noção àquela altura, eu projetei em você uma necessidade de vínculo que era só minha e que eu sempre vou ter. E veja, nem sempre isso foi uma chatice pseudofilosófica. Costumava ser só a minha cabeça no seu ombro. Perder isso teve um efeito sobre mim que eu nunca poderia ter dimensionado. Foi a ruína de uma base construída com dificuldade e que provavelmente era o pouco que me segurava de cair em um buraco mais fundo. Eu já senti muitas ‘’dores da alma’’, algumas bastante abstratas, mas nunca uma dor tão aguda dentro de uma relação com outra pessoa. Já te falei isso mil vezes, nem vale a pena repetir. 
Do outro lado, eu falei menos. Sobre as reflexões que tive e sobre esse pretenso crescimento, eu pensei muito, mas acho que não compartilhei o quanto deveria. Então aqui vai. Eu sei que a culpa é minha. No fundo eu devo ter sabido desde sempre, por isso fiquei com tanta raiva nos primeiros meses depois de você ter me dito aquelas coisas. É óbvio que você não ligava. Eu era uma grande amiga, sim, mas quando foi que você assinou um contrato de que estaria ao meu lado sempre? Quando foi que você se dispôs a ser o alvo de projeções de uma carência emocional sem fim? Nunca. Você não fez isso. Ninguém faz. Você não tinha obrigação de me amar incondicionalmente. E eu não dei condição pra que essa amizade continuasse. Se você não esteve aqui para mim é porque eu também não estive para você. Outras pessoas, mais importantes, chegaram e foram o que você precisava. Eu provavelmente estava mais focada na minha necessidade, nos meus problemas. Você só queria viver a vida, se apaixonar, se divertir. Você não existe pra servir de apoio de uma pessoa problemática. 
Eu fiz pouco do seu sofrimento e nunca vou poder me desculpar por isso. Não sei o quanto você gostava de mim romanticamente, mas o fato é que eu esperei que você colocasse os seus sentimentos de lado e que tudo continuasse igual. Porque é disso que eu precisava pra passar pela vida. De um ombro, um abraço, uma risada e uma conexão que eu só tive com você. Acontece que a realidade é bem outra e ela se impõe, né, Pedrinho. Eu fui extremamente egoísta e o que eu espero conseguir tirar de tudo é isso é o senso de nunca mais ser assim. Então, a culpa é toda minha. Eu esperava mais do que você podia dar e, por isso, não posso te responsabilizar. Responsabilidade afetiva é uma via de mão dupla, e eu devo ser pior nisso do que costumo achar que as pessoas são em relação a mim. 
Eu sei disso tudo e queria que você soubesse que eu sei. Sei hoje, quando começamos a conversar sobre isso eu me sentia apenas rejeitada e de coração partido, com raiva, muita dor. Mas, há meses, mais de um ano, provavelmente, eu sei e não te culpo por nada. Sinto muitas, muitas saudades, mas não me sobrou nenhum sentimento ruim, acho que todos eles viraram dores físicas no meu corpo e depois foram embora. Te desejo tanto bem quanto me sinto capaz de desejar a alguém e, embora não ache que vamos conviver um dia novamente, eu ainda te daria um órgão sem pensar duas vezes. Mesmo que você nem lembre de mim, não pense em mim um dia da sua vida, isso não muda nada. Acho que já te disse isso. Eu tô bem longe da geração gratidão, como você também sabe, mas fico pensando que você merece minha gratidão por ter me proporcionado aquilo que é a minha necessidade mais profunda, ainda que por pouco tempo. 
Prometo que estou tentando ser menos chata e levar as coisas menos a sério. E ser uma pessoa completa para além das minhas piras profundas hahahaha
Um beijo, 
Mariana. 
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vestidadelunetxs · 10 years
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Dizem que segundos antes de morrer o cérebro emana uma cascata de impulsos nervosos. A garganta dela fechava toda vez que ouvia o grito da mãe. Teu corpo inteiro arrepia ao toque furtivo na orelha antes da euforia de homem-animal. O medo dilata a pupila e dilata o nosso ser também, ser humano.
A gente morre todo dia, várias vezes, de dor, de saudades, de ódio. Deviam velar a inocência, dá pra pensar. Acender uns incensos japoneses e perguntar, em um chochicho, ''qual é a flor de morto mesmo?''
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vestidadelunetxs · 10 years
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O melhor jeito de sentir e ser confortada na própria dor é escrevendo
Quando encaixaram o último tijolo na gaveta da cova da família (no lugar claramente delimitado pelo meu avô, bem ao lado de onde ele mesmo ficaria), um bem-te-vi cantou. O dia estava frio, porém ensolarado, e os finos raios solares refletiam nas lápides dispostas horizontalmente no cemitério que mais parecia um jardim. Várias vezes imaginei, vividamente, que ela caminhava, com um passo meio vacilante, porém firme na sua lentidão, e elogiava as flores e a cor da grama. Ela vestiria uma roupa confortável, um chapéu, mas o cabelo estaria impecável, e o batom vermelho, como sempre, brilhando nos lábios. Vestiria um sorriso também.
Minhas tias escolheram a roupa com que ela seria enterrada com cuidado. Uma calça social preta, uma blusa da mesma cor, e um terninho vermelho, com detalhes pretos em todo o seu comprimento. As unhas pintadas de um rosa clarinho, que ela sempre usava, e agora estavam descascando um pouco, pontilhadas nas mãos grandes e suaves, entrelaçadas em um terço, como ela gostaria que fosse. Minha mãe comprara um anel, já que não podiam enterrar joias, mas não por qualquer motivo. Meu bisavô, uma vez, disse à pequena Maria Julia, que ela tinha mãos boas para o trabalho. A menina, já tão sagaz, respondeu que suas mãozinhas eram apenas para anéis. Por fim, a boca. Embora ligeiramente aberta e frouxa, era marcada pelo mesmo batom vermelho que ela usava quando nasci.
Nos últimos tempos, ela se vestia com o máximo de conforto possível, já que seus movimentos eram limitados e ela quase não saía de casa. Conjuntos de moletom fininho (porque ela sentia calor devido aos remédios), sapatos baixos, alguma coisa prendendo os fios fininhos do cabelo, que ela manteve pretos até o fim, embora já não se mantivessem presos ou arrumados em penteados elegantes como antes. Os óculos, de acetato escuro (talvez com motivos de animais, não consigo lembrar) ficavam pendurados no pescoço, e o batom, na mesinha ao lado. Sentava-se na poltrona antiga, no canto da sala de estar, um lugar estratégico entre a cozinha e o corredor que levava aos quartos.
Morei na casa da vovó por 2 anos quando era pequenininha. Nessa época, dormia no quarto antigo do meu pai, em uma ‘’cama de viúva’’ que já fora da minha bisa. No dia em que a vovó morreu, dormi lá também. Tenho poucas lembranças dessa época, era muito nova, mas lembro que a minha mãe colocava uma fita do Peter Pan no rádio antes da hora de dormir. Lembro que quando eu acordava, o vovô já tinha ido trabalhar, mas a vovó ficava na cama, com um peignoir em tons pasteis, e eu corria pra lá. Aí ela me contava todas as histórias de sempre - o João do Ratinho, A Menina dos Morangos, A Menina Luxenta, A Boneca, O Coelho Joca, etc. Lembro também de correr de um lado pro outro entre as salas do apartamento, de brincar com um carrinho de criança, passando pela cozinha enquanto a vovó dava as instruções para o almoço, provando uma coisinha ou outra, mexendo nas panelas, e desfilando sua elegância caseira. Lembro de um ou dois aviõezinhos de comida na boca, lembro dela arrumada, com terninhos, joias, maquiagem, indo à missa com as amigas. Lembro de tardes na salinha de TV, assistindo o jornal ou a novela com ela, ou, nos horários menos nobres, ao Pequeno Urso, na Cultura. Foi lá que peguei gosto pela Cultura, aliás.
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