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reginamoraesbh · 4 years
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LUTO
28 de outubro. Faz 3 anos hoje. Ela manuseia com nostalgia algumas cartas e retratos e pensa consigo mesma: parece que foi ontem.
No meio de uma “DR” que eles nunca haviam tido antes, ele, que até aquele momento só ouvia calado, comunicou com certa tranquilidade na voz entre um gole de cerveja e outro, que o casamento de décadas acabara. Para ele.
A mudez trocou então de interlocutor. Ela, atônita e, ao mesmo tempo, tentando pensar rápido e sem saber o que dizer, calou-se. Um filme passou em sua cabeça nesse momento. Um filme de uma vida inteira.
Incrédula, e colocando na conta do cansaço e das perdas acumuladas para ambos naquele intenso ano, o motivo do desabafo que terminara de ouvir, ainda pôs-se a contra-argumentar, na certeza de que tudo aquilo não passava de um despropósito, algo totalmente fora de contexto.
Não era sobre isso que ela planejara falar. E muito menos o que esperava escutar. Afinal, ela mal se recuperara dos recentes tombos que havia levado, ainda se encontrava lambendo feridas mal fechadas... como ele podia ter dito aquilo? Como podia ser tão cruel?
Não. Não era ele. Quem acabava de dizer aquilo que os ouvidos dela se recusavam a ouvir e registrar não era aquele com o qual vivia há tantos anos, o parceiro com quem lutara junto tantas batalhas do mesmo lado da trincheira... com quem construiu tanto. O que teria acontecido e o que lhe teria escapado? Onde foi que ela havia errado tanto? Não... É claro que ele ia retirar o que disse, refletiu ela, acalmando-se.
Ela sabia que aqueles últimos anos não tinham sido exatamente os melhores de todos os que passaram juntos. Mas sabia também que bastaria que conversassem como sempre fizeram, que se entendessem bem como sempre se entenderam, que fizessem um ajuste aqui e ali e pronto: estaria superada uma crise como aquela que, se por um lado nunca haviam atravessado antes, por outro iria valer muito como aprendizado e, principalmente, para fortalecer o que sempre tiveram de mais precioso e do qual tanto se orgulhavam: permanecer juntos, sob qualquer circunstância, para sempre.
Como imaginar o cenário aterrador de seguir sua vida sem a pessoa com a qual havia combinado de morrer junto? Um cuidando do outro? Isso nunca passou pela cabeça dela antes, nem nos seus piores pesadelos! Havia um pacto entre eles: o do amor inabalável. Não poderia permitir a nenhum dos dois romper com esse combinado antes da hora... Ela estava segura disso, pois sempre cumpriu sua parte no pacto.
Precisava agir logo, disse para si mesma, angariando forças. Ela nascera marcada para a guerra. Paramentada com lança e escudo desde a barriga da mãe. E chegara o momento de enfrentar, provavelmente, uma das mais importantes de sua vida. Ela não ia desistir tão fácil. Não foi talhada para isso. Com calma e alguma estratégia, ia conseguir fazê-lo recuperar o juízo.
No entanto, com o passar dos dias, o que lhe pareceu, inicialmente, ter sido apenas um desabafo de última hora ou um ataque isolado de impaciência foi se materializando cada vez mais numa verdade para a qual ela não havia se preparado para encarar...
Ele havia reunido coragem para dar um grande passo ao expressar em poucas palavras (mas certeiras como um morteiro) que desejava uma nova vida. Sem ela. E, apesar dela conseguir enxergar nos olhos dele a conhecida ternura de sempre e até uma profunda dor por vê-la sofrer, ela pode comprovar, através desse mesmo olhar, que não haveria recuo nesse passo tão ousado para os dois.
E logo ela que se gabava de ser tão visionária, tão hábil em antever tudo, em ler com facilidade as entrelinhas, em compreender os não ditos melhor do que o que é dito... logo ela, uma expert em relacionamentos, em pessoas e comportamentos... viu-se obrigada a aquiescer para si mesma que, desta vez, falhou imensamente.
Era tarde. Nada mais havia a ser feito. Não cabia mais nenhuma luta ali. Sentindo-se cansada, depôs seu escudo e sua lança. E, com os pés bem fincados numa nova e inesperada realidade que se descortinava diante do seu completo estupefato, engoliu em seco a sua derrota. Esta batalha ela perdeu. Para sempre.
Autoria: Regina Moraes - Outubro/2020
Foto: autor desconhecido
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reginamoraesbh · 4 years
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A escrita como processo curativo
Foram mais de 50 anos ouvindo falar sobre a história da vida de Anne Frank e seu famoso livro. Nunca o havia lido. Não por falta de interesse, mas por pura procrastinação não deliberada, daquelas coisas que a gente vai adiando sem perceber.
Por uma conjunção de fatores, e após ganhar o livro de presente de uma grande amiga, decidi lê-lo. Não havia melhor hora para isso. Nada acontece por acaso – definitivamente a cada dia que passa, tenho mais certeza de que essa expressão não é um clichê. É a vida (sempre astuta e manhosa) me entregando, de acordo com a sua conveniência e não a minha, determinados eventos no exato momento em que se necessita deles.
Um diário escrito por uma menina judia, entre seus 13 e 15 anos, coincidentemente presa num confinamento, claro que em condições extremamente piores e mais aterrorizantes do que este que tem sido imposto à humanidade inteira por causa da pandemia do Covid 19, desde o início de 2020. Um conteúdo que se pretendia que permanecesse nos limites de sua vida privada e que foi escrito de maneira despretensiosa. É disso que se trata o livro. Mas o que mais me chama a atenção para a história de Anne é como a escrita do seu diário a salvou e a redimiu, de certa forma, para sempre.
A poeta mineira Conceição Evaristo, de origem pobre e etnia negra, ensina, com uma sabedoria infinita, que “a escrita tem o poder de diluir a dor”. Apesar de Anne Frank ter morrido em 1945, um ano antes de Conceição Evaristo nascer, este sentimento é algo que, para mim, as conecta e que me leva à reflexão proposta aqui.
Não consigo explicar com clareza o que sempre me fez gostar ou querer escrever. Sempre gostei de ter e escrever diários. Os que escrevi (principalmente ao longo da minha adolescência e juventude) nem os tenho mais. Mas este é um modo de me expressar que nunca me abandonou.
Luis Felipe Angell de Lama, escritor peruano também conhecido pelo pseudônimo Sofocleto, revela que “escrever é uma maneira de falar, sem sermos interrompidos”. Talvez esteja aí uma das maiores motivações de quem se sente impelido a escrever, sobretudo quando se trata de aliviar o sofrimento.
O que me leva a crer que escrever é catarse: é exorcizar-se, desapegar-se, entregar-se, revelar-se sem pudor. Até mesmo sem se importar se algum dia o que foi escrito será lido por alguém. “Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância”, assim se expressa Fernando Pessoa, um de meus escritores e poetas preferidos, sobre o ato de escrever. A escrita é libertadora neste sentido, ela importa, na verdade, mais para quem escreve do que para quem lê.
A própria Anne Frank relata em seu diário que o melhor de tudo é que ela pode escrever, ao passar a viver totalmente escondida por dois anos, até que ela e sua família fossem levados para um campo de concentração nazista. Segundo ela, se não pudesse escrever se sentiria asfixiada por completo. Entendo-a perfeitamente. Quem já leu o livro, possivelmente irá compreender que ela teria morrido ou se matado caso não tivesse conseguido se expressar através dos seus escritos.
Júlio Cortázar, escritor argentino e um dos mais aclamados autores latino-americanos de todos os tempos, costumava dizer que se sentia obrigado a escrever um conto, a fim de evitar que algo muito pior acontecesse. Com ele mesmo provavelmente.
A escrita torna-se um potente bálsamo quando se está diante de situações que ou não podem ser vividas de outra forma ou se deseja tentar traduzir em palavras sentimentos com os quais torna-se impossível lidar total ou parcialmente. Expressar-se através da palavra ou da interação com outrem pode ser importante, mas não funciona para todos ou em todos os momentos. Sob esse aspecto, não é raro que se torne caso de vida ou morte deixar que a pena fale mais do que a língua. Para não se sufocar de vez, é necessário respirar. Ou escrever. O que dá no mesmo.
Saramago, autor de tantos títulos complexos a olhos que se lançam sobre sua leitura numa primeira tentativa (já que não é possível ler Saramago apenas uma vez para entendê-lo), preconizava que “escrevemos porque não queremos morrer. É esta a razão profunda do ato de escrever”. Vou além, com a devida licença de Saramago, e digo que este “morrer” a que ele se refere possui, para mim, dois importantes significados: o de escrever, na tentativa de não morrer sufocado, como eu já disse antes, com o que se necessita que seja posto para fora; e talvez a prepotência de se achar no direito de pensar que, apesar de morrer ser um fato inevitável, o que se deixa escrito permanece eterno.
A maturidade, os acontecimentos vividos, a imensa dificuldade em lidar com a complexidade que é a vida, quando se pensa muito, quando se estuda, se lê muito e se informa muito, quando se questiona quase tudo, quando se chega à conclusão de que quase nada pode ser controlado, mesmo quando obssessivamente planejado, me trouxe até aqui. Ao ato de desejar escrever. Na esperança de que este é um caminho para a salvação. Não a salvação do ponto de vista espiritual, mas de augúrio, de sublimação do que se sente e se vive.
Tenho alma e atitude inconformistas por natureza. Recentemente, minha mãe me contou que, quando eu era um bebê, tinha que lidar constantemente com minhas inúmeras birras e pirraças e pensava consigo que “essa menina já nasceu brigando com o mundo”... Ter tido conhecimento disso, embora talvez mais tarde do que deveria (aqui cabe a pergunta: “mais tarde” como se não se tem controle sobre nada???) contribuiu muito para que eu hoje possa compreender e até tentar conviver mais pacificamente com quem sou, quem me tornei e por quê.
Percebo que essa minha eterna sensação de incompletude me levou, entre outras razões, a buscar me revelar também pela escrita. Não importa se boa ou ruim aos olhos de um eventual leitor. O que importa é não enlouquecer, não me esvair em mim mesma.
Clarice Lispector – uma das autoras que mais me inspira, me provoca, me joga no abismo e depois me resgata (me resgata mesmo?) cada vez mais questionadora do mundo, das coisas, das pessoas e do sentido de viver e de pertencer a esse mundo e da qual até já perdi a conta de quantos livros li (o último, que li em agosto desse ano, foi “A paixão segundo G. H.”, um verdadeiro soco na boca de qualquer estômago) -, disse uma vez: “Eu quero a verdade que só me é dada através do seu oposto, de sua inverdade. E não aguento o cotidiano. Deve ser por isso que escrevo”.
Acho que é isso.
Criado em: 18/10/2020
Foto: Regina Moraes (Out/2020)
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reginamoraesbh · 4 years
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Sobre origens e relações
A maioria das pessoas ainda não faz a menor ideia do que seja ou faça um profissional de Relações Públicas.
Não julgo. Logo que me formei, lembro-me de que tentei, em duas ou três oportunidades distintas, explicar ao meu avô paterno no que exatamente eu havia me graduado. Ele não compreendia. E como exigir isso de um senhor com mais de 80 anos de idade em meados dos anos 1990? Impossível – meus colegas de área hão de concordar comigo, tenho certeza. Não é simples como contar que se formou em Direito, Medicina ou Administração...
Sempre quis fazer Comunicação Social. Desde novinha, já sabia que era isso o que eu queria para a minha vida profissional. Minha paixão era pelo Jornalismo. Quando criança, já devorava o jornal que minha mãe comprava aos domingos e ir ao dentista ou ao médico era uma festa, pois sabia que haveria, na sala de espera, uma pilha de revistas de moda ou informação para serem lidas (não folheadas – lidas mesmo) por mim como se fossem tesouros me aguardando para serem desenterrados. Era uma verdadeira alegria!
Aos 16 anos, depois de eu insistir muito, meu pai me deu um gravador, que eu usava a tiracolo carregando-o para tudo quanto era lado que ia – me sentia a própria jornalista gravando tudo, testando minha voz, da qual eu ainda não gostava muito... Mais tarde, já na faculdade, cheguei a fazer alguns cursos de locução, pois todos diziam que eu tinha uma voz bonita, de radialista... Estava certa de que seria jornalista um dia. E mais: apresentadora de bancada de telejornal. (Sério. Não riam de mim. Acreditava mesmo nisso).
Considero-me uma não-jornalista frustrada, de certa forma. Mas enquanto vestibulanda, com poucas ofertas de cursos de Jornalismo no meio universitário em BH (e nenhum noturno, uma vez que eu já trabalhava 8h diárias), e por outros motivos de força maior, acabei sendo “empurrada” para a escolha por Relações Públicas, meio a contra gosto.
Também não possuía uma ideia clara do que significasse a profissão, embora suas primeiras bibliografias datem dos anos de 1940 e de ter sido regulamentada no Brasil em 1967, curiosamente no ano em que nasci. Mas como se tratava de uma das três grandes áreas em que a Comunicação Social é dividida, e eu não queria optar pela Publicidade, encarei, por eliminação, o que foi possível fazer.
James E. Grunig, um dos maiores teóricos no assunto, reuniu uma equipe de pesquisadores em 1985 e definiu as Relações Públicas, a partir destes estudos, como “a gestão da comunicação entre a organização e os seus públicos”, propondo que caberia aos seus profissionais planejar e executar o modo de comunicar de uma instituição entre esta e seus públicos de interesse, gerindo e tratando informações, a fim de tornar eficazes as políticas e ações daquela instituição junto a estes públicos.
No entanto, sabemos que tanto o mundo como as sociedades mudaram profundamente de lá para cá. E se naquele tempo, o fazer da área tendia para a obviedade de ações e instrumentos, hoje lidamos com recursos cada vez mais intangíveis como a identidade de empresas e pessoas, filosofias e aspectos culturais, imagem e a tão aclamada reputação, termo cunhado na contemporaneidade para medir o sentimento de determinado público perante algo ou alguém. Sentimento. Existe coisa mais intangível?... Isto é, tudo se tornou ainda mais complexo de se entender e processar, inclusive para os próprios profissionais. Que dirá para os leigos...
Hoje, aprecio mais os autores que estudaram a fundo a ética na profissão, como Seib e Fitzpatrick, que em 1995 afirmaram (e eu concordo com eles) que “todo profissional tem um propósito moral. A medicina tem a saúde. O direito tem a justiça. Relações Públicas tem a harmonia – a harmonia social”.
Com alguma surpresa, não faz muito tempo, descobri que nasci para isso. Não poderia ter feito outra coisa na vida. Percebi, com o passar dos anos, que trazia em mim essa forte tendência e, se me permitem a falsa modéstia, algum talento para a coisa. Algo que vinha da alma.
Gosto de gente, de relacionamentos, de interações, de conversas faladas ou escritas, do repasse e compartilhamento da boa informação. Leio ou vejo algo que me faz lembrar imediatamente de alguém que conheço e o que surge em seguida é o desejo de contar logo para este alguém a novidade.
O prazer em entrelaçar, alinhavar pessoas e narrativas me move. Promover encontros é, para mim, um deleite, uma necessidade, um fundamento. O interesse e a vocação para a harmonia social, seja na profissão seja na vida pessoal, são fundamentos que me sustentam.
Com a maturidade, não enfrento mais os conflitos vivenciados diante daquela escolha titubeante que fiz há quase 30 anos. Determinada a fazer valer o que declarava o meu tão suado e sonhado diploma, persegui obstinadamente o que eu considerava importante e que me faltava para atuar e ser reconhecida como uma Relações Públicas. Sem saber que, na essência, tornar-me uma profissional no título, com registro no conselho e tudo o mais, não passava de uma extensão natural do que eu, no fundo, já o era.
Ainda sou apaixonada pelo Jornalismo. Mas hoje sob outros aspectos: da admiração pela boa apuração das notícias, do prazer em ler um texto jornalístico bem escrito, da boa sensação provocada pelas imagens bem feitas e bem legendadas, de poder beber das fontes do trabalho produzido pelos bons profissionais cuja trajetória acompanho atentamente.
Mais do que um indivíduo, sou um ser absolutamente social. Minha personalidade múltipla, inquieta, complexa, heterogênea, intensa, cosmopolita, diversa, multifacetada – não que necessariamente estas características resultem sempre em algo positivo -, levam-me, sem muita dificuldade, a compreender um dos papéis mais centrais da história da minha vida até aqui: ser Relações Públicas, uma profissão cujo próprio nome já vem no plural, me define ao pé da letra. Ou, utilizando um termo mais apropriado, das letras.
Criado em: 8/10/2020
Foto: Regina Moraes - Outubro/2020
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reginamoraesbh · 4 years
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Dois corações
Do ponto de vista de sua fisiologia, o coração humano, aquele músculo involuntário do qual fala a música, é um órgão oco e do tamanho de um punho fechado em média, segundo fontes bibliográficas oficiais. Pesa entre 250 a 300g nos adultos e bate cerca de 70 a 80 vezes por minuto numa pessoa saudável.
Rita era adulta e saudável. Mas ela viu um coração numa vitrine. Lindo! De tamanho quase real, feito com um tecido vermelho de bolinhas brancas miudinhas, artérias bordadas com linha azul forte, recheado com algo macio, representando a exata constituição de um coração humano verdadeiro.
Seu coração de verdade parou diante do objeto que a hipnotizou instantaneamente. Mas, indecisa, logo desistiu da compra por impulso. E seguiu adiante. Ou pelo menos tentou seguir. Já que aquele coração novinho em folha não lhe saiu mais da cabeça. Dormia e acordava pensando nele... Rita sempre foi assim: percebe que se apaixonou por algo quando a coisa teima em não sair mais do seu pensamento, tornando-se quase uma obsessão para ela.
A verdade é que fazia tempo que ela não andava lá muito satisfeita com certas questões centrais de sua vida: o trabalho já não a preenchia mais como há alguns anos e sua vida pessoal então... esta tornara-se um fardo, uma sucessão de desencontros e frustrações na visão dela. Algo que lhe causava mais taquicardias e dificuldades para respirar do que ela poderia ou desejava suportar.
No fundo, ela sabia que precisava urgentemente de algo que fizesse o seu coração bater novamente. Mas este já não respondia tanto aos seus apelos e vontades como outrora. Havia desanimado de auscultá-lo ou ouvir o que ele dizia. E já nem se lembrava mais do que fazia realmente seus olhos brilharem. Ou encher o seu coração de alegria.
Não conseguindo se livrar da sua nova tentação, decidiu retornar àquela vitrine. E se deixar seduzir pela fantasia e pelas sensações que esse coração, tão perfeito e diferente do dela, lhe provocavam. Seus olhos se iluminaram de repente. Sentiu algo e, imóvel por alguns segundos, tentou investigar o que acontecia dentro de si naquele momento. E percebeu se tratar de uma alegria tímida. Sim, ela tinha certeza: era um raro sentimento de alegria que há tempos não vivenciava.
E diante desta pontinha de satisfação que o objeto de desejo, tão cheio de significados nesta altura da vida de Rita, abalada por tantas palpitações não consentidas, lhe causava, ela decidiu levar o novo coração para casa consigo.
No caminho de volta, carregando-o junto ao peito, numa metáfora inconsciente e como se fosse de sua exclusiva responsabilidade transportar, com segurança, um valioso órgão destinado a um urgente e inadiável transplante, Rita teve a nítida impressão de que, apesar de não saber direito se seria uma armadilha da sua sempre fértil imaginação ou se o fenômeno era mesmo real, os batimentos dos dois corações se misturaram. E se confundiram até que se tornaram apenas um.
[Criado em: Outubro 2020]
Foto: Regina Moraes/2020
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reginamoraesbh · 4 years
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Escrever dói?
Todas as vezes que me sento para escrever, mesmo que a ideia inicial já exista, fico um tempo encarando a folha em branco como se ela me desafiasse, como se ela quisesse me dizer que não vou conseguir, que é bobagem minha insistir.
Lembro-me com muita nitidez de uma vez, ainda criança, em que a professora do ensino fundamental pediu que fizéssemos uma “composição” como dever de casa. Naquela época, em meados dos anos 1970, e naquele nível escolar, era assim que a redação, tão famosa e temida hoje em dia pelos estudantes em tempos de ENEM, era assim denominada.
Havia sido proposto um tema, e minha mãe, sempre muito brava e exigente, me deu uma ou duas dicas para me ajudar a começar o texto. Mas já avisou logo de cara que era o máximo que ela iria fazer, o resto era comigo.
Sempre fui uma leitora voraz, inclusive de jornais e revistas desde muito pequena. Curiosa por natureza, acompanhava meu pai com alegria às livrarias, quando isso era possível, para adquirir os livros indicados na escola e os devorava com avidez. Como se sentisse fome e aquilo fosse o último alimento disponível na face da Terra. Quando eu me apaixonava pelo livro e queria mergulhar com mais privacidade no seu universo, eu o lia empoleirada num dos confortáveis e mais altos galhos de uma jovem mangueira que tínhamos no quintal de casa. (Detalhe: detesto manga, a fruta. Mas adoro a árvore, ainda mais aquela sempre tão acolhedora comigo ao longo de toda a minha infância feliz.)
O fato é que material para escrever a tal composição - eu devia ter lá pelos meus 8 ou 9 anos -, eu até possuía. Mas é provável que, naquele momento, eu achasse que o tamanho da responsabilidade imposta pela tarefa era grande demais para o meu tamanho. Sofri horrores antes de iniciar a escrita. Eu não queria errar, não queria fazer feio diante da professora, não queria decepcioná-la. E menos ainda a mim. Olho para trás com vontade de dizer àquela menininha insegura que escrever está a milhas de distância de uma ciência exata... o certo e o errado simplesmente não existem, pelo menos neste caso.
Escrevi afinal e não quis ler para a minha mãe antes de entregar a tarefa. Depois de entregue, decidi ler para ela. Ela:
- Mas você começou uma composição do meio do caminho, coisa mais sem pé nem cabeça! Você primeiro precisava introduzir o assunto, falar por alto sobre ele [estudantes do 3º. milênio entenderão: introdução, desenvolvimento e conclusão...]. Você fez tudo errado! Vai perder pontos desse jeito!
Fiquei AR-RA-SA-DA! Quase adoeci. Até que chegou o dia da aula de devolução dos trabalhos e a professora, muito solene, comunicou que havia gostado muito de um texto em especial e que ia pedir à aluna que o lesse, de pé, em voz alta e diante de toda a turma, a sua redação.
Quando ela pronunciou o meu nome, eu reagi incrédula! Mas, recuperada do susto inicial, fui toda orgulhosa ler meu dever de casa para meus coleguinhas. Ao final, ainda questionei a professora sobre o alerta da minha mãe em relação à falha cometida na introdução no texto, e ela me disse que eu poderia tê-lo começado melhor sim. Mas que diante da qualidade da maior parte do texto, ela não teve outra alternativa a não ser conferir-lhe a nota total. Só sei que voltei da escola para casa quase correndo, plena de tão exultante, a contar para minha mãe a novidade!
Obviamente que escrever aos 8 ou 9 anos está longe da profundidade e complexidade da escrita que acontece quando se chega à maturidade. E para completar, o medo do fracasso e do julgamento nunca nos abandona...
Mas a verdade é que hoje, diante da folha em branco mencionada no início desta conversa, em ver de me sentir paralisada pelo medo, me recordo daquela garotinha medrosa e excessivamente responsável, escrevendo com tanto sofrimento e depois lendo sua primeira composição para seus primeiros ouvintes. E aquele longínquo episódio me sustenta e me faz seguir em frente com coragem. Com o passar do tempo, a dificuldade deixou de ser a introdução. A conclusão tornou-se o grande desafio. Pois aprendi que para escrever basta começar.
[Texto escrito em Setembro 2020]
Foto: Regina Moraes - Boston, USA - Mar 2019
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reginamoraesbh · 4 years
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Setembro
Casei aos 29 e meio. Num 21 de setembro chuvoso. Escolhi esta data porque sempre gostei da Primavera. Apesar de preferir o Outono. Nasci no Outono - certeza de que esta é a explicação pela minha predileção pelo Outono. Acho-o a minha cara, a minha alma.
Mas talvez ou exatamente por considerar a Primavera o oposto do Outono, ou para atender aos apelos do meu DNA geminiano de raiz, a tenha escolhido para mudar de status social. Mesmo passados mais de 25 anos e hoje tendo voltado ao status de solteira, ainda acho que esta foi uma das escolhas mais perfeitas que fiz na vida. Como diz a música do Earth, Wind and Fire: "Do you remember the 21st night of September? Love was changing the minds of pretenders while chasing the clouds away..."
Pelo menos no dia do casamento é isso o que se passa pela cabeça de uma noiva feliz pra lá de
bem intencionada. E de cujos detalhes cuidou pessoalmente por nutrir verdadeira paixão pela organização de eventos grandiosos. E também, claro, por ter certeza de que ninguém o faria melhor do que eu própria.
Musical até a raiz dos meus cabelos eternamente (de nascença inclusive) cacheados, duas canções, entre dezenas cuidadosamente escolhidas em mais de 4 horas de reunião com o DJ contratado, marcaram-me para sempre: a da entrada do noivo, Primavera de Giuseppe Verdi, e a que ilustrou a trilha sonora do vídeo do casamento, Anos Dourados, de Tom Jobim e Chico Buarque.
Setembro continua tendo essa cara para mim: tem significado real de mudança de estação, de status, de sentidos, de perfume novo no ar. Naquela noite, desfilei leve e sorridente, recém-casada e de braços dados com meu então marido, pela passarela vermelha que enfeitava piso do salão de festas onde o evento foi realizado, ao som de Orinoco Flow da Enya, ouvindo-a cantar bem alto "Sail away, sail away, sail away"...
Hoje, o que quero deste novo Setembro que se inicia é voltar a sentir aquela sensação da qual
jamais me esqueci. Faz um novo trato comigo, Setembro?
[Texto escrito em Setembro/2020]
Foto: Regina Moraes - Setembro/2015
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reginamoraesbh · 4 years
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Lembranças de uma memória hard
Às vezes penso que não seria uma má ideia que aos humanos, assim como no caso das máquinas, também tivesse sido dada a funcionalidade de se autodesligar, zerar e recomeçar. Sem chance de recuperação dos fatos vividos. Uma espécie de botão ativador da parte boa do Alzheimer, se é que me entendem.
Quisera eu ter nascido sem memória. Porque a minha é do tipo memória da Nasa: visual, auditiva, espacial, gestual, musical, histórica. Com data e hora inclusive.
Daí que é desnecessário dizer que guardo tudo. Tudo mesmo: da roupa que fulano usava em determinada ocasião até a música que tocava naquele momento ou o contexto pessoal ou cultural vivenciado à época.
Claro que a habilidade de memorizar tudo, com tanta riqueza de detalhes, tem lá suas vantagens... Costuma ser uma das primeiras qualidades pela qual sou conhecida e reconhecida. Mas às vezes, e não raro, o volume acumulado de lembranças chega a ser um tormento.
Juro que, nestes momentos, o que eu queria mesmo era ter aquele dispositivo do filme “MIB – Homens de preto”, através do qual eles hipnotizam as pessoas fazendo com que elas se esqueçam instantaneamente de tudo o que viveram.
Sim, antes que me julguem, admito: sou excessivamente nostálgica. E a nostalgia é algo que normalmente carrega consigo um sentimento de vazio e solidão. Mergulhar neste universo de resgate de acontecimentos, decisões e rumos que a vida tomou nem sempre costuma ser um ato lá muito generoso consigo mesmo.
Ok, eu sei que as lembranças nada mais são do que os registros inevitáveis e importantes de toda uma vida. O problema é que elas trazem tudo de volta; não só os lapsos de momentos felizes. Mas também os ressentimentos, os arrependimentos, tudo o que não foi devidamente curado e que ainda provoca dores no estômago, ansiedade, frustração.
Conheço uma dezena de pessoas que dizem nunca se lembrar de nada ou quase nada, ou que nunca param para refletir muito sobre nada (ou tudo) que viveram. Concordo que deve mesmo ser muito melhor ter nascido assim: sem a capacidade infinita que possui o meu HD que, quer eu queira quer não, me mantém em permanente estado de alerta... basta um simples gatilho, uma voz, um lugar, uma música, pra me fazer desenterrar coisas nem sempre agradáveis. Ou antes, para nem mesmo tê-las conseguido enterrar.
E se nos ensinam o tempo todo que apenas o presente importa – nem o passado, pois não o temos mais, e nem o futuro, já que não temos certeza se ele chegará de fato – para quê guardar tantas lembranças, tantos dados, tantos fatos, tantas experiências na memória, eu me pergunto?
Quer saber? Morro mesmo é de inveja dos desmemoriados. Dos que vivem o carpe diem. Dos que seguem sem pensar no quão vazia é essa nossa existência, sem relativizar tanto suas perdas e danos. Dos que dão conta de viver bem, com ou sem lembranças para contabilizar.
[Texto escrito em Setembro/2020]
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Foto: Regina Moraes - Fevereiro/2016
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