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#Papéis de Prosa
São Paulo: Mesa Redonda Sobre Bibliofilia e Lançamento dos Livros "Papéis de Prosa" e "Papéis de Poesia II" Por Antonio Carlos Secchin
Mesa redonda sobre bibliofilia e lançamento do livro “Papéis de Prosa” e “Papéis de Poesia II”, ambos de autoria de Antonio Carlos Secchin, na Biblioteca Brasiliana Mindlin. Ambos os livros também podem serem adquiridos através da Amazon: Papéis de Prosa, autoria de Antonio Carlos Secchin, à venda na Amazon. Papéis de Poesia II, autoria de Antonio Carlos Secchin, à venda na Amazon.
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sobreiromecanico · 4 months
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Drinking from Graveyard Wells: histórias de África, de mulheres, e da fúria de ambas
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Seria difícil ter começado melhor as leituras de 2024. Drinking from Graveyard Wells, de Yvette Lisa Ndlovu, é uma pequena mas riquíssima colectânea de contos que a autora publicou em várias revistas temáticas e antologias ao longo dos últimos anos, e que aqui surgem em edição revista pela University Press of Kentucky.
Ao todo, a colectânea inclui 14 contos, todos relativamente curtos, com registos que oscilam entre o realismo, um certo realismo mágico, e territórios temáticos da fantasia literária, chegando mesmo a uma ou outra aproximação ao horror. Nestas páginas encontramos girafas fantasmas, espíritos vingativos, demónios ancestrais sob o jugo do extractivismo capitalista, sereias ameaçadoras, divindades matreiras cujas bênçãos nem sempre produzem o efeito desejado. Sempre com um ponto de vista africano, ou de diáspora africana - a autora é natural do Zimbabwe e vive e estuda nos Estados Unidos. Quase sempre de um ponto de vista feminino/feminista - a única excepção talvez seja When Death Comes to Find You, a única história da colectânea que tem um protagonista masculino, partindo do princípio de que a personagem principal é Takura e não Grootsland, claro (será discutível). Na verdade, a haver um tema que liga todos estes contos, será mesmo a condição feminina, e em particular a condição das mulheres africanas - seja nas feridas que mantém das muitas guerras de independência travadas naquela região do Sul de África, seja no contraste entre os papéis que aspiram desempenhar e aqueles que é esperado que desempenhem, seja na forma como os espartilhos de normas patriarcais condicionam tanto a sua vida como a sua morte, seja nos esforços e sacrifícios que empreendem em busca de uma vida melhor (que passa com frequência com o desejo de deixarem a sua terra), seja até na relação amor-ódio que mantém com a terra natal quando dela saem em busca de uma vida melhor.
Ou sobre vingança, um tema ao qual Yvette Lisa Ndlovu regressa com frequência nestas histórias - seja contra a opressão das mulheres na vida e na morte, seja contra a exploração colonialista ou capitalista, seja contra a corrupção que grassa na sociedade. De facto, se há outro tema comum a estas histórias, a correr em paralelo à condição das mulheres, é o tema da raiva, de uma injustiça que só será corrigida pela força, jamais pelo tempo.
Não estando directamente interligados num contínuo narrativo (como acontece por exemplo em Arboreality de Rebecca Campbell), a ordem com que os contos surgem neste livro acaba por revelar uma certa continuidade, se nem sempre temática, pelo menos simbólica: expressões, noções, e ideias que um conto apresenta e explica são consideradas "matéria dada" nos contos seguintes, surgindo já sem necessidade de contextualização ou explicação. E essa organização contribui para tornar a experiência de leitura mais coesa enquanto seguimos pelas curvas e contracurvas do caminho que Yvette Lisa Ndlovu vai traçando com a sua prosa limpa, rica e evocativa, repleta de frases que perdurarão na memória.
Por norma, as colectâneas de ficção curta tendem a ser algo irregulares - histórias muito boas ao lado de experiências que nem sempre resultam muito bem. Algo que não acontece neste livro, resultado do talento e da disciplina que Ndlovu demonstra. Certo, haverá algumas histórias melhores do que outras, e cada leitor encontrará textos que lhe dirão mais ou menos - mas todos os contos efectivamente muito bons, e seleccionar os melhores revela-se um exercício algo espinhoso. Da parte que me toca, destacaria talvez Home Became a Thing With Thorns, When Death Comes to Find You, e o conto que dá o título à colectânea, Drinking from Graveyard Wells, uma história espantosa cujas imagens que Ndlovu evoca ficarão comigo durante muito tempo.
Drinking from Graveyard Wells é o terceiro livro que leio da shortlist do Prémio Ursula K. Le Guin de 2023, depois do já mencionado Arboreality e de The Spear Cuts Through Water, de Simon Jimenez. E vem confirmar a excelência absoluta desta shortlist - não venceu o prémio, mas se tivesse ganho teria sido um justíssimo vencedor. Yvette Lisa Ndlovu é uma contadora de histórias exemplar, a seguir com atenção.
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Yvette Lisa Ndvolu (2023), Drinking From Graveyard Wells, Lexington, University Press of Kentucky.
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lizceleste · 2 months
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O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.
João Cabral de Melo Neto
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fuckedmod · 1 year
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O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.
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demoura · 1 year
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DOMINGO 4 DE DEZEMBRO DE 2022 : A MARCA DO DIA FOI A VISITA DO ESCULTOR FERNANDO CONDUTO COM A PRENDA DE UM CATÁLOGO DA EXPOSIÇÃO DE MARIA VELEZ PARA A ZICA ! . “ARMÁRIOS VAZIOS “ NA RTP1 UM FILME INSPIRADO NA NOVELA CIRÚRGICA DE MARIA JUDITE DE CARVALHO . NO ROBOT DE SOPAS O CREME DE COUVE -FLOR DE HENRIQUE SÁ PESSOA : a marca do dia foi a visita do nosso grande amigo o escultor Fernando Conduto viúvo da Noémia (Maria Velez .). Trazia um catálogo com uma bela dedicatória para oferecer a Zica autora do texto “ Peças soltas com contrato “ . Tomamos chá e “escavamos memórias “ de uma amizade de mais de 60 anos . Aproveitei para ver “Armários Vazios” estreado no dia 30 de novembro na RTP1.A realização é de Cristina Carvalhal e o argumento de Marta Pais Lopes, a partir da obra de Maria Judite de Carvalho. A realizadora usou como cenário a Região de Ovar Esta história, passada nos anos 70, e junta nos principais papéis Sandra Faleiro, Lúcia Moniz, Marco Delgado, Teresa Madruga, Fernanda Neves, Pedro Lacerda, Vasco Lello e Helena Caldeira. Um esforço sério e honesto para a tarefa ciclópica de adaptar a complexa novela obra- prima da literatura portuguesa . Recordo aqui o que escrevi a propósito da tradução para inglês desta autópsia do desengano .”Na edição de 10 de fevereiro de 2022 do NY Review of Books , Joyce Carol Oates fez a crítica de “ Empty Wardrobes “ a primeira tradução em inglês da escritora portuguesa Oates acha o romance “executado... com tanta precisão e sem sentimento como uma autópsia”, um exame sombrio e implacável de “figuras do pathos feminino” que “não têm ressentimentos ferozes e estratégias de autodeterminação .Escrito com destreza e astúcia na prosa metálica de Carvalho narrado por uma observadora “que desliza para dentro e para fora do texto com o desdém patrício de um personagem de Nabokov” Os Armários Vazios revela-se pouco a pouco como um duplo retrato: no seu centro estão duas portuguesas de meia-idade – dois “ armários vazios ” – ironicamente ligados pelo seu relacionamento com um homem arrogante que trata as duas mal e vai embora intocado por nenhuma delas .Ingénua , passiva numa permanente devoção ao falecido marido que a deixou na miséria e com uma filha para criar, Dora, aos 36 anos, já está “sem idade e sem esperança”, nas palavras da filha. Ela é dissecada por Manuela, a fria narradora como se fosse um espécime de laboratório. Sem dúvida um grande obra da escrita juditiana . .Finalmente num registo mais vulgar dar conta do sucesso com que executei no “Robot só de sopas “ Moulinex o creme de couve flor de Henrique Sá Pessoa . Tem apenas 3 ingredientes mas e sofisticado quando se lhe juntam sementes de sésamo tostadas e um fio de azeite de trufas .
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artlhuwsia · 1 year
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Comunicar, se frustrar e comunicar mais um pouco
Bom, acredito que nesse semestre o aprendizado chave foi acerca da comunicação, sua falta e sua assertividade. Um dos maiores problemas humanos, que vai desde correntes de mentiras bolsonaristas no WhatsApp, que aterrorizam a vida de milhões, até as más notícias hospitalares, quem diria que falar de saúde e de doença no campo da saúde seria um dos papéis mais difíceis e com mais defasagem entre os profissionais? Engraçado ver a superioridade social da função médica, mesmo quando o despreparo dessa classe profissional na prestação de serviço humanizado é alarmante (menos quando a consulta é particular, é claro), que palavras você quer ouvir do médico, a falácia científica ou a prosa sem afirmação alguma? Falando em medicina, que papelão foi aquele no simpósio de saúde mental? Mas saindo da medicina agora, sabemos toda aquela conversa de corredor, sobre aspectos multiprofissionais na comunicação em saúde, entretanto de dia a dia mesmo, o ser humano tem uma comunicação péssima, sempre um sentimento de dane-se mensagem, dane-se receptor, o importante é sempre o emissor, que aliás é o menos compreendido, e é nesse ponto que cada um precisa mudar, afinal, quando predomina a atenção e a escuta, o entendimento do que foi dito nunca será responsabilidade de quem ouve, nos frustramos muito pelos não ditos, o direto ao ponto se transforma em indireta não-verbal, a expressão permanece esquecida nesse grande churrasco que é a vida.
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hellderdias · 2 years
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O atraso e o retrocesso ainda persistem na telenovela do Brasil contemporâneo, pois os atores negros sempre sofreram discriminação por não se encaixarem nos estereótipos exigidos segundo o mercado, num universo dominado pelos brancos. Hoje, quero celebrar e deixar registrado a minha observação de um número significativo de atores negros na novela campeã de audiência na faixa das 18 horas na televisão. Mesmo tendo consciência da falta de visibilidade, oportunidade e presença de atores negros com personagens em papéis importantes de destaques e da falta de privilégio imposto pelo racismo estrutural, que reflete a situação da população negra na nossa sociedade, é importante este momento, pois observo um crescimento significativo nos folhetins da atualidade, como no casting apresentado pela escritora #AlessandraPoggi em Além da ilusão. da Rede Globo de Televisão Na próxima terça-feira, dia 21 de agosto, as novelas brasileiras celebram 70 anos de existência. Além da importância cultural e de ser uma paixão nacional, elas contribuem como portfólio para que os artistas tenham oportunidade de trabalho e o desejo de vencer através da arte, que também é um entretenimento, já enraizado em nossa sociedade. As novelas são uma narração em prosa, com um desenvolvimento maior nos enredos e que nos contam tantas histórias com diversas narrativas. São obras abertas e que vão aguçando o nosso imaginário na medida em que a trama segue interpretada com a riqueza das suas personagens, que com passar do tempo caem no gosto popular e são eternizadas nas nossas lembranças. Hoje, as novelas, com potencial econômico e cultural, se tornaram uma das principais ferramentas de divulgação de produtos, uma vitrine através das ações de merchandising e colocação de produtos pelos anunciantes, a fim de promover e popularizar com a construção das suas estratégias, para tornar as marcas gigantes e fazer bons negócios. Quero parabenizar os quatorze atores negros e faço votos que esse folhetim seja motivo de inspiração pelo contingente de artistas negros presentes numa obra que dá visibilidade. Fonte de pesquisa: @meioemensagem @comunicauerj https://www.instagram.com/p/CheoMXhO7xW/?igshid=NGJjMDIxMWI=
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sujeitoparco · 3 years
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O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
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O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
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O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
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O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
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Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto, mas que parecia uma usina.
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O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
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O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
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O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
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O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
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O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
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O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.
(Trecho de Os Três Mal-Amados (1943), João Cabral de Melo Neto)
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noradrena-lina · 3 years
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O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.
João Cabral de Melo Neto - Os Três Famintos
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missborntolose · 3 years
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Os Três Mal-Amados
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.
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iamgrootbabe · 3 years
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O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato.
O amor comeu meus cartões de visita.
O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia.
Comeu em meus livros de prosa as citações em verso.
Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
O amor comeu minha paz e minha guerra.
Meu dia e minha noite.
Meu inverno e meu verão.
Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte
João Cabral de Melo Neto
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olivronegro · 4 years
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Ator
Entre prosa e poesia está ele mestre da dramaturgia
Vivendo enlaces de ficção, vive papéis por emoção
Atua em qualquer profissão Perpetua em qualquer cena de ação
Filtra em si qualquer roteiro rebuscado, tornando real o até então, apenas imaginado.
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voarias · 4 years
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O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.
Os Três Mal-Amados
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febreferrante · 4 years
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A amiga genial
Texto de Fabiane Secches
No filme italiano Anos felizes (2013), o protagonista é um artista plástico que passa todo o tempo perseguindo um feito notável, mas é acusado pela crítica de ser artificial — faltaria verdade em sua obra. Apenas ao final, depois de viver uma dolorosa separação, ele consegue o reconhecimento pretendido ao criar uma escultura enorme, um corpo feminino de formas infladas que ocupa todo o espaço de seu ateliê, invadindo os ambientes. Quando sua ex-esposa, antes constantemente privada desse mesmo espaço pelo artista, vem enfim visitá-lo, ela lhe pergunta, olhando para o rosto da escultura, quem é ela. Ao que ele responde: “sua ausência”.
Assisti ao filme pouco antes de ler o também italiano A amiga genial, de Elena Ferrante, e agora me recordo dessa cena menos pela sua nacionalidade do que pelo seguinte: assim como a escultura, a ausência de Ferrante é uma forma de presença inegável, mais afirmativa do que se encontrássemos seu retrato na orelha do livro ou notícias sobre a sua vida em uma busca pela internet. Elena Ferrante, para quem ainda não sabe, é o pseudônimo de uma autora italiana que publica desde 1992. 
É difícil escrever um texto sobre uma obra específica de Ferrante sem passar pela sua própria história, ou por sua não-história. Em carta datada de 1991,  explica aos editores por que gostaria de se manter ausente: “eu acredito que os livros, uma vez que tenham sido escritos, não tenham qualquer necessidade de seus autores. Se eles têm algo a dizer, vão encontrar cedo ou tarde seus leitores”. A ficção acaba competindo com os rumores que passam ao lado, e que de certa forma a atravessam.
De todo modo, seu texto é tudo o que temos. O restante, além das entrevistas (sempre concedidas por intermédio de seus editores italianos, Sandro e Sandra Ferri), é especulação. “O caminho das minhas obras é o meu caminho”, afirmou em uma entrevista recente. “O meu trabalho pretende chamar a atenção para a unidade original entre autor e texto e para a autossuficiência do leitor, que pode deduzir dessa unidade tudo aquilo que for necessário.”
A amiga genial é o primeiro livro da chamada tetralogia napolitana, publicado na Itália em 2011. Chegou ao Brasil em 2015 pela Biblioteca Azul, selo da Globo Livros, com tradução de Maurício Santana Dias. Entre 2012 e 2014, Ferrante lançou as sequências: História de um novo sobrenome, História de quem foge e de quem fica e História da menina perdida.
Nos quatro volumes, acompanhamos a história da amizade entre duas mulheres, Elena Greco (Lenu) e Rafaella Cerullo (Lila), desde a infância até os dias atuais. A premissa da tetralogia também passa pela questão que nos assombra sobre a autora: a ausência. A amiga genial tem início com um prólogo no qual Elena, a narradora da história, recebe um telefonema sobre o desaparecimento de Lila, sua amiga há quase sessenta anos. Quem está do outro lado é Rino, filho de Lila. Por orientação de Elena, ele procura por qualquer vestígio que a mãe possa ter deixado, sem sucesso. Nenhuma roupa, nenhum documento. Até as fotos em que apareciam juntos, quando menino, foram recortadas. Lila havia desaparecido por completo.
Elena nos conta que há cerca de trinta anos, a amiga lhe fala sobre o desejo de desaparecer. Não se tratava de fugir, nem de recomeçar em um lugar distante com nova identidade, tampouco considerava a ideia de cometer suicídio. Lila “queria volatizar-se, queria dissipar-se em cada célula, e que ninguém encontrasse o menor vestígio seu”. A narradora recebe a notícia de maneira intrigante:
“Como sempre Lila exagerou, pensei.
Estava extrapolando o conceito de vestígio. Queria não só desaparecer, mas também apagar toda a vida que deixara para trás.
Fiquei muito irritada.
Vamos ver quem ganha desta vez, disse a mim mesma. Liguei o computador e comecei a escrever cada detalhe de nossa história, tudo o que me ficou na memória.”
É este, então, o texto que verdadeiramente nos aguarda: não a história sobre o desaparecimento de Lila, mas a tentativa de Elena em recuperá-la, em não deixá-la desaparecer, ao escrever cada pequena recordação sobre a história da amizade entre ambas. Conhecemos Lila através de seus olhos, portanto temos dela uma imagem limitada tanto pela perspectiva da narradora quanto pelos caminhos obscuros da memória, mas essa é a única versão da história que poderemos conhecer.
Elena e Lila nasceram em Nápoles e cresceram em um contexto violento: uma periferia pós-guerra em uma cidade que convive com a máfia (a Camorra). Além do contexto sociopolítico tão bem retratado, uma das maiores qualidades de A amiga genial é a construção de personagens complexas e verossímeis. Ao contrário da figura misteriosa de sua autora, Elena e Lila são tão tangíveis que é difícil acreditar que não sejam reais. Se para alguns isso resulta na suspeita de uma autobiografia, para outros prova apenas o talento de Ferrante ao manusear a palavra escrita.
James Wood, um dos críticos literários mais prestigiados do cenário atual, escreveu um texto sobre Ferrante na revista New Yorker e se desdobrou em elogios: “ela é autora de romances memoráveis, lúcidos, ferozmente honestos”. A sinceridade que atinge através de uma prosa muito clara é impressionante. Falar sobre seu texto é reduzi-lo. Para entender, é preciso lê-la.
A amizade entre as protagonistas é tão forte quanto conflituosa. Antes do prólogo, o livro começa com uma citação do Fausto de Goethe, no qual o Senhor (Deus) fala: “O agir humano esmorece muito facilmente, em pouco tempo aspira ao repouso absoluto. Por isso lhe dou de boa vontade um colega que sempre o espicace e desempenhe o papel do diabo”. É precisamente sobre isso do que trata este primeiro livro: quem seria Elena sem a Lila que a desafiasse? E quem seria Lila, do mesmo modo, sem que Elena a narrasse? Se uma instiga a outra, “acende” a outra, também o afeto que as une é uma faísca que nos ilumina por toda leitura. A relação entre ambas é também um exílio onde se refugiam de uma realidade opressora: a imaginação contra o bairro, a literatura contra a violência cotidiana.
Não me lembro de ter lido uma história tão bonita e complicada sobre a amizade entre duas mulheres, não com todas as nuances que encontrei aqui. Fez com que pensasse em algumas das referências que tenho eu mesma, nas Lilas de minha história.
O primeiro volume da tetralogia é dividido em duas partes, a infância (“História de Dom Achille”) e a adolescência (“História dos Sapatos”) das personagens. Duas garotas descobrindo a si mesmas e o mundo em volta, tentando entender quais limites definem quem são e quais limites separam uma da outra. Elena percebe quem é ao tomar conhecimento do que não é, do que Lila traz para a sua vida e não existiria sem a presença da amiga. De outro lado, mesmo em sua ausência, existe uma Lila internalizada que a acompanha sempre e surge como referência em cada conflito, como a única figura feminina que lhe permite a possibilidade de escapar de seu destino, de não se tornar sua própria mãe:
“Algo me convenceu, então, de que se eu caminhasse sempre atrás dela, seguindo sua marcha, o passo de minha mãe, que entrara em minha mente e não saíra mais, por fim deixaria de me ameaçar. Decidi que deveria regular-me de acordo com aquela menina e nunca perdê-la de vista, ainda que ela me aborrecesse e me escorraçasse.”
Lila era “levada sempre, pior que os meninos” e uma menina brilhante. Foi a primeira da classe a aprender a ler e escrever, e fez isso por conta própria. Mesmo quando é impedida de continua na escola, continua sendo o baluarte intelectual de Elena. É capaz de aprender latim e grego sozinha, antes da amiga: “Ela sempre fazia as coisas que eu precisava fazer, e antes, e melhor? Escapava quando eu a perseguia e enquanto isso me encalçava para superar-me?”. Elena também nos conta que Lila escrevia com tal habilidade que “não deixava nenhum vestígio de inaturalidade, não se sentia o artifício da palavra escrita”. Lila “sabia ser autônoma, ao passo que eu dependia dela, porque tinha coisas dentro de si às quais eu não podia ter acesso”, conta.
Por isso, chegamos às últimas páginas do primeiro volume enxergando Lila como a amiga genial do título. Mas, no final, descobrimos que quem usa a expressão é ela, para se referir a Elena: “você é minha amiga genial”. Cada uma é a amiga genial da outra. As duas personagens alternam sentimentos e papéis de modo que muitas vezes fica difícil separar uma da outra.
Na narrativa de Elena, o afeto que sente por Lila, ainda que controverso, soa tão genuíno que quase conseguimos tocá-lo, como um terceiro protagonista do livro. Ferrante escreve com domínio completo da história, nada parece lhe escapar. Mesmo os assuntos mais espinhosos são conduzidos de maneira franca. Impressiona também a relação de Elena e Lila com a literatura e a capacidade da autora em passar por questões tão espinhosas. Muito tem sido dito sobre o conhecimento que Ferrante demonstra ter da cultura clássica e do contexto histórico, mas vale notar também as referências freudianas e um certo olhar psicanalítico, como no episódio de “desmarginação”, neologismo criado por Lila para exprimir uma espécie de ruptura, de perda de contornos que acomete a personagem em uma noite de ano novo, ou na narração da panela de cobre que se desfaz, como Lila relata em carta à Elena.
Quando questionada sobre por que teria escolhido um pseudônimo e a posição à sombra de seus livros, Ferrante respondeu: “Talvez por qualquer desejo neurótico de intangibilidade”. Em entrevista publicada na revista The Paris Review, a autora teria dito a seus editores italianos que tem o hábito de escrever seus próprios sonhos: “Eu tenho feito isso desde que era uma garota. É um exercício que recomendo a todos. Submeter a experiência do sonho à lógica da vigília é um teste extremo de escrita. Nunca seremos capazes de reproduzir um sonho com precisão. É uma batalha perdida. Mas colocar em palavras a verdade de um gesto, de um sentimento, de um fluxo de eventos, sem domesticá-los, não é uma tarefa tão simples quanto pode parecer”.
Em outras passagens da mesma entrevista, Ferrante usa expressões como “fragmentos de memória”, que sua mãe, em italiano, chamava de frantumaglia. O termo intitula um livro de entrevistas, cartas e escritos de Ferrante classificados como autobiográficos, que foi publicado na Itália em 2003.
O poeta italiano Attillio Bertolucci escreveu que não existe presença mais aguda do que a ausência. Elena Ferrante parece concordar: “Estou presente, tanto nos meus romances como nas respostas às suas perguntas. O único espaço onde o leitor deveria procurar e encontrar o autor é o da sua escrita”.
Com um texto como a dela, fica difícil acreditar que não seja o bastante.
* * *
Nota:  uma primeira versão desse texto foi publicada na revista Confeitaria em 25 de agosto de 2015.
A imagem que abre o post é daqui. 
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olhosumidos · 4 years
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a primavera se demora em seus vestidos floridos...
de todas as noites eu soube do teu nome eu sei que todo dia há um ser que te ache e encontre singular. há quase uma década, recebi esse diagnóstico avassalador, portanto, a origem da minha perspectiva dos 365 dias de sentir. “somente em nós, tudo existe e não se extingue jamais”, o Amor e a paisagem e a Lua dos olhos teus que parece quando anoitece e as Estrelas ficam faiscando ali no Céu e as daqui do sul, elas desenham seu nome. e em toda volta um branco reluzente, como as nuvens em torno da Lua; pois esses pares mesmo que emana uma luz suave, como você. alinhada quase em ponto de fuga, e mesmo que íntima e misteriosa por trás dos óculos e ao mesmo tempo com esse horizonte se inscreve - em entrelinhas - o seu gesto mudo. unindo um e outro sem intervalo. as veias pulsantes parelho ao bater do coração com as mãos ao te procurar e não te encontrar. daí eu brinco junto com o batuque do peito quase em alto relevo e é um frio tão grande e dói, dói bastante. depois de tanto ouvir Arnaldo resisti no vão da janela daqui do alto e habitei com nua alma e então me polui. depois no outro dia a tarde vinha exagerando a sombra do arvoredo, vazando raios Solares e nada complicada como os trilhos dos teus olhos, desamarrando as silhuetas da moldura Soturna de uma janela qualquer. para os meus olhos que vaga no garimpo do ocaso vespertino, o teu rosto de Luz sugere uma curva insuspeita entre flores e plantas, papéis ao vento e minhas medições e projetos voando para uma casa de madeira, dessas em que mora toda a gente, ou quando não mora, imagina – se acolhida ali, uma das tuas canecas fumegantes sobre a toalha xadrez meio embotada, a réstia do mesmo Sol desenhada no assoalho, tu com a timidez desconfiada com quem sempre se quer partilhar horas silenciosas, com suas leituras atrasadas da semana corrida, cansada, preguiçosa, na hora do almoço aquele tédio adentrando o vespertino, o olhar sempre ao Céu, o olhar em uma folha esquecida de outono, jovem e antiga e atemporal, mas não te faz falta abandonar – se nos sonhos de outra pessoa?, insistimos nós, insisto eu. você acuada se afasta e volta as costas para a minha impertinência, me desculpe, pelo sonho acordado. adivinho o lábio crispado, o caminhar grave ao sabor do meu pensamento impróprio, que mitológico pende na espinha ereta, que dignidade na rejeição da prosa banal. torna-te a mirar o solo sob os teus pés, segue teu caminho de paz, vencendo o caos, sendo forte ergue devagar a paisagem remota dos olhos jaboticabais, todos os sonhos abre – se ao fundo, se deixa levar pelas mãos que te tocam na casa de madeira em que mora toda a gente, todos sonhos ao menos lá moram também. então você vive no mel claro da noite e vaga pela folhagem colorida, ouço tua leveza a cantar na ponta dos mesmos pés. cantar a palavra líquida que as mãos agora te conduzem, graves, límpidas ou simplesmente sólidas. te guardam, te protegem, te segura. em consoante insistir nossas águas não tracejam mais lagoas, arrastando as beiras à minha força de víscera. estou agora habituado ao açoite das flores. e elas me dizem dos tantos espinhos arranhando os meus dedos solitários: - é precário o amanhecer desses dias, é preciso estar subterrâneo para aguentar. não me sabe aqui com os olhos quebrados. com os ossos queimando quanta quase vida no esperar. acordar, querer, entorpecido no andar. adormecer, que amanhã talvez um talvez do gole farto da vida. estou arrancado do chão pelo fio ínfimo da febre. e se me ateio fogo quando só: digo que é sede o que enlouquece em mim e me entorpeço e quero mais. que nas noites cavalgamos sonâmbulos sobre os charcos das lágrimas e observo os seus  versos, no abismo branco das margens daquela fotografia e no pensamento pende o caos bonito e tudo bem morrer se for com os teus Sóis ardendo no peito. (essa semana veio com um respiro da descoberta de um estagiário da Nasa que fez a descoberta inédita de um Planeta com dois, dois Sóis: vi também que um "viva Cássia Eller" foi linkado a essa notícia esplêndida, você viu?) ou se os sismos da tua pele me quebram o chão. mas não me bastam as fagulhas deste incêndio. o teu encanto não é inesperado, ele é atemporal e eu te conheci como a chuva. segui seus passos azuis na película de uma tarde, senti das suas mãos o afago imprevisto. eu conheço você: quase como se há muito. quase como se desde. fui no alto beber na nuvem clara do teu rosto, molhar também o meu rosto no seu. matar minha sede, para viver dessa sede. inventamos apelidos: duma inviolável e secreta cumplicidade. discretos como todas as coisas selvagens. afáveis como se nada mais lá fora. distraidamente obscenos, vez por outra. e nem duvido que tenhamos cantado alto pelas noites. assim como quem canta as noites de carne e de Lua, para que carne e lua sejam um dia.
num dia, eu conheci você.
thomas teodoro.
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gviacava · 5 years
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Os três mal-amados
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.
João Cabral de Melo Neto
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