Tumgik
filipemduarte · 1 year
Text
E Foi Assim Que Eu Descobri o Que Era Solidão
Tumblr media
     Quando eu nasci, eu o fiz desnudo. Sem sentimentos, conceitos ou preconceitos. Sem carne, sem pele, sem olhos ou ouvidos. Apenas a escuridão. Era como se o vazio lentamente trespassasse através de mim e fosse embora, apenas para mais vazio chegar e ir. E por mais que eu não soubesse naqueles tempos que hoje me são longínquos como quem vê o horizonte à distância, a solidão foi o meu primeiro sentimento.
     Por lapsos imemoriáveis, que antes pareciam-me a própria eternidade e hoje me são meros momentos de primitiva consciência desprovida de pensamento, eu não tinha emoções e ainda não haviam motivos para questionamentos. O mundo era escuro, entretanto, eu ainda não havia descoberto a luz para saber o que era escuridão. O mundo era silencioso, mas eu jamais tinha escutado sons para entender o que era o silêncio. Da mesma forma, o meu mundo era solitário, entretanto, eu jamais havia tido companhia para entender o que era solidão.
     Algo me deu o primeiro empurrão. Eu nunca cheguei a descobrir se foi a pura curiosidade ou se simplesmente foi uma ação fortuita do acaso, mas naquele breve momento perdido no universo vazio da minha própria mente, algo em mim decidiu existir, logo, eu nasci. E lá estava eu, existindo. Mas ainda era vazio e frio. Ainda era silencioso e ainda era escuro. Mas até mesmo existir era um processo doloroso e antes que eu pudesse controlar totalmente a minha existência, eu ainda precisava ser carregado pelo processo do incontrole. Do impulso feral e da vontade sem resquício de raciocínio. Quando eu decidi existir, eu consegui sentir mesclando-me e depois me tornando único. Depois, eu me dividi várias vezes apenas para me juntar e desdobrar-me outra vez. Era um processo lento e constante, jamais eu passei por eles sem dor ou sofrimento. E ainda por cima eu não podia gritar, pois ainda não sabia o que era voz ou som. Mas, naquele momento, eu aprendi o que era dor, mesmo que a palavra para tal ainda não existisse em minha consciência. Como um bebê recém-nascido, apenas sabia que era desagradável e que eu queria que parasse. Até que um dia, parou. Foi naquele momento que eu entendi: eu era um ser racional que acabou de passar a existir. Apesar de ser inerentemente racional e consciente, eu não tinha conhecimento das ciências como um todo, não sabia de tais coisas como notocordas, epidermes, blástulas ou celomas. Eu apenas sentia que precisava de algo e as minhas necessidades eram atendidas pelo incontrole do meu corpo. Descrevo como incontrole, pois, seria um engano admitir que eu tenho completo controle do meu corpo e que sei de todos os processos químicos e biológicos que acontecem dentro desta avenida movimentada que é a minha existência anormal. Apenas sei que eu nasci consciente e que minhas vontades passavam a me fornecer respostas para as necessidades que eu tinha. Quando eu sentia fome eu era alimentado, quando estava sedento a sede ia embora. Mas desde cedo eu fui consciente. Eu nunca fui educado e o conhecimento de sociedade, escrita, ciência e outras conquistas humanas não nasceram comigo, apesar disso, eu possuía certa noção de organização consciente, algo que antepassados primitivos lutaram para conquistar através de séculos de existência, eu já nasci com isto. A única forma que eu pude explicar esta consciência primitiva, entretanto avançada, era através do conceito de uma memória racial ou talvez uma mente grupal, mas eram apenas teorias sem repostas. Desde cedo meu sistema nervoso era adiantadamente desenvolvido, as memórias guardadas em meu hipocampo jamais sofreram amnésia infantil, o que é igualmente um mistério, pois se minha consciência racional é paralela à minha existência, então de onde eu vim? Esta pergunta, como muitas outras, me afastaram da igualdade, me fez buscar por similares no futuro, mas naquele momento, deitado sobre um leito anestesiado de existência com apenas a minha própria consciência a me fazer companhia, eu esperei. Chegou um tempo que eu era apenas uma massa incompleta e racional deitado sob um chão frio cujo calor eu nem mesmo reconhecia. E dessa vez eu tenho certeza, foi a curiosidade que tomou o melhor de mim. Pois somos todos racionais e a curiosidade move as montanhas da nossa vontade, ela garantiu, ao menos, a minha existência e a existência deste relato. E como a minha vontade era conhecer e saber, foi quando eu criei um olho e pude enxergar. Mesmo que a minha memória nunca tenha conhecido olhos, eu criei pálpebras, esclera, íris, pupilas e um canal lacrimal, meu único olho possuía córnea, retina e todos os outros aspectos necessários para enxergar. A esse ponto, eu posso assumir que eu já possuía algo equivalente à um cérebro e um sistema nervoso que se conectasse ao meu primitivo lobo occipital. Apesar de tudo isso, as cores ainda não eram algo que eu pudesse conceber, elas só vieram mais tarde. A biologia e a anatomia essencial me eram conhecimento inato, entretanto, os conceitos eu tive que aprender sozinho.
     O local que eu primeiro encarei era um corredor vazio e abandonado de uma mansão de madeira negra, velha e esquecida. Meu corpo estava virado para uma parede rasgada assim como o meu único olho. Curioso, eu criei mais olhos afim de conseguir enxergar o que jazia em meus arredores, foi quando eu vi que o meu local de nascimento era um escritório abandonado, haviam livros na estante, mesas de mogno empoeiradas e uma cadeira de madeira no centro da sala de onde uma corda nodosa balançava com o vento frio da noite. Através da janela havia um bosque de folhas caídas e galhos secos assim como a grama cinzenta. Nuvens decoravam os céus noturnos e este foi o meu entretenimento por muito tempo. Eu vi noites e dias passarem através da janela com os meus olhos, vi a chuva pela primeira vez assim como a névoa. Vi quando a lua cobriu o sol e como o sol cobriu a lua. Vi estrelas caírem e o tempo passando. Até que certo dia, a luz da lua cheia iluminou um pedaço do quarto o qual eu jamais tinha tido a curiosidade de explorar e lá estava o meu primeiro contato com a arte e a filosofia humana. Lá estava, pendurado sob uma mesa abandonada onde jazia um jarro com uma única flor murcha e sem cor, lá estava um quadro de um homem sentado. O homem fora pintado claramente por mãos habilidosas, rabiscos cuidadosamente caprichados e tintas especialmente escolhidas para retratar o homem pálido, estoico e soturno. Seus longos cabelos caiam sob os seus ombros esguios e desnutridos, seus olhos carregavam tristeza e o fato de que ele se sentava sozinho, no que remetia um quarto similar ao que eu estava, demostrava que ele estava acostumado à não ter ninguém à sua volta. Pela primeira vez, eu me identifiquei. Claramente, naquelas noites posteriores ao meu nascimento, eu não sabia o que era me identificar ou ser compreendido por marcas em uma parede, mas olhando para trás agora eu entendo. Eu me vi naquele homem, pálido e sozinho em uma sala apenas carregando consigo a incerteza da falta de companhia. Eu senti solidão mais uma vez e agora, esse sentimento já me era mais familiar, eu lembrava dele. Então, eu queria sentir a companhia ao menos do quadro, por isso eu criei longos e finos braços que pudessem me alcança-lo, quando eu cheguei até ele, desenvolvi pálidos dedos alargados, que me agarrassem a obra, me inspirei na imagem daquele homem, e puxei-a para perto de mim afim de observá-la melhor. Foi só mais tarde que percebi que poderia me mover ao arrastar-me com meus novos braços. Porém, eles se tornaram incômodos e eu precisava de algo que funcionasse melhor. De onde era uma replicação de um cefalotórax eu fiz brotar pernas, quatro pares, que se estendessem para fora do meu corpo e me permitissem uma locomoção adequada, na sua ponta, pequenos pelos de extremidade côncava que me permitiam a aderência a qualquer tipo de terreno. Utilizando uma pressão abdominal do meu sistema circulatório, eu conseguia movê-las e desta forma eu saí do escritório. A partir de então eu comecei o que seria grande parte das minhas noites, eu comecei à vagar pela casa sentindo grande nostalgia - um sentimento que também ainda era desconhecido para mim.
     Foi com o tempo que eu acabei desenvolvendo novas coisas. Com mais braços eu era capaz de alcançar as mais altas estantes da necrosada mansão, das quais eu agarrava os acúmulos de páginas, repletos de conhecimento e ensinamentos, todos eles cravejados em preconceitos e pontos de vista. O idioma foi um desafio considerável para mim, um quebra cabeça que demorei anos para montar, ou quem sabe foram apenas momentos. Não foi aprender os idiomas que se mostrou um desafio, mas sim entender o conceito da escrita e da comunicação, algo que eu não tinha tido jamais. Sem ninguém para ensinar-me e sem demonstrações de outros seres vivos para me mostrar que aquilo existe, é possível imaginar o tamanho da minha confusão ao colocar olhos sob aqueles livros e não conseguir sequer entender a função deles. Duas coisas me ajudaram a decifrar o enigma dos livros: A primeira foi a concepção de uma lógica racional através das pistas que me foram inerentemente deixadas, não por coincidência ou por alguém preceder a possibilidade da minha existência ou da minha condição, mas sim pela pura lógica. Haviam demasiados tomos daqueles para que eles não passassem de outra decoração daquela decrépita casa que agora eu chamava de minha. Existiam vários quadros, bustos, tapetes e poltronas espalhadas por toda casa, ainda sim, aquele único cômodo guardava milhares daqueles tomos empoeirados e sem sentido aparente. Pela lógica da suposição e da junção dos fatos, eles tinham que ter um significado, isso me fez não descartar aqueles tomos como algo inútil, mas sim querer desvendar o seu mistério, fruto da minha curiosidade inata; já a segunda pista foi que me ajudou a desvendar o conceito da escrita e da comunicação, esta pista se deu através da arte não verbal – quadros, pinturas dentro dos tomos, tapeçarias e estátuas. Um quadro em específico me vem à mente quando eu lembro de como eles me ajudaram a desvendar este enigma, mais tarde descobri que ele tem nome. Se chama Escola de Atenas, de Rafael. Nele, uma sala repleta de homens, à semelhança do típico ser humano que eu conhecia, estavam acumulados em uma larga sala de arquitetura anormalmente grandiosa e de tons distintivamente dissemelhantes dos quais eu estava acostumado. No centro da tela, dois destes homens, destacados da multidão de alguma forma, conversavam. Um quadro em si não consegue transmitir sons, e mesmo se conseguisse, naquela época eu ainda não poderia ouvi-los. Mas aquele quadro conseguiu me transmitir uma ideia, dois seres semelhantes estão utilizando gestos com suas feições de forma que soa até mesmo natural. Depois de dias observando-os eu consegui chegar à bizarra eureca de que eles estavam se comunicando através daqueles gestos. Depois disso, não foi difícil traduzir que aqueles livros não passavam de formas de comunicações onde um homem não precisava estar na frente de outro para transmitir as suas ideias e pensamentos. Naquele momento, eu demonstrei grande afeição e admiração pela raça humana, entristeceu-me consideravelmente o fato de que eu provavelmente não pertencer a eles, pois todos eles são a imagem um do outro e eu sou tão radicalmente distinto, mas a minha tristeza trazia novos pensamentos que eu não estava disposto a entreter, me aprofundei na tarefa de traduzir aqueles códigos. A simples lógica de que os seres humanos também precisavam aprender aqueles códigos que me levou a crer que deveria existir um livro que ensinasse sobre todos os livros, e havia. Como o tempo ainda era um conceito distante para mim, é difícil descrever o quanto eu demorei para aprender as mais diversas línguas que aqueles tomos me apresentavam, ou para aprender as mais simples ideias das quais eu jamais tive contato. Como eu vou aprender o que é “amor” sendo que jamais tive contato com tal ideia. Graças aos dicionários, consegui traduções de meus inquéritos, mas eles eram veementemente lógicos, outros livros mais românticos descreviam o amor como algo ilógico e irracional, sentimental até. Como eu havia de entender o que eram sentimentos? Até que percebi que eu sempre os carreguei. Os livros me ensinaram muitas coisas, desde ciências, à filosofia e linguagens. Muitas luas e sois se passaram, mas para mim pareceu apenas instantes conforme eu devorava aqueles mais complexos sentimentos e palavras para mim.
     Com o tempo, eu decidi que precisava escutar, pois a concepção de som, apesar de ser estranha para mim, era descrita com enorme clareza nos livros e romances dos quais eu lia. Então criei canais e buracos que me serviram como ouvidos e o mundo não era mais silencioso, passei quinzenas me deleitando sob os mais numerosos sons até que todos eles não eram mais estranhos ou maravilhosos para mim, a minha audição era excepcional e me permitia escutar e prever cada som que se tornara monótono e entediante. Com livros de ciência em minhas mãos eu comecei a aprender sobre a anatomia e sobre coisas que me faltavam. Naquela época eu aprendi sobre as cores, sobre o seu significado e sobre como elas são vistas através de cones que fazem conexões neurais com nossos cérebros, criei estes cones para mim, afim de enxergar da mesma forma que os seres humanos, foi apenas mais tarde que entrei no estudo mais complexos das cores não vistas e decidi que gostaria de ver estas também. Estes experimentos me fizeram ter olhos falhos e outros muito incessantes para manter. Utilizei as minhas pálpebras para manter alguns fechados e utilizá-los apenas quando necessário. Eu também aprendi sobre o paladar e queria experimentar comida e refeições. Eu criei bocarras arregaladas que me permitiam saborear-me da maioria dos alimentos sem a necessidade do desconforto, e dentes afiados o suficiente para quebrar sobre a maioria das substâncias que eu desejava experimentar, pois eu jamais tinha entendido por que os seres humanos comiam outros seres vivos quando a pedra e madeira era tão abundante. A resposta era demasiadamente simples, eles não tinham bom gosto e nem nutrientes o suficiente para nutri-los, nem sequer eram fáceis de se mastigar com os dentes achatados que os seres humanos cultivavam, aparentemente a aparência dentária também lhes permitia acesso à benefícios sociais, e o conceito da aparência se tornou um novo enigma. Por que a escravidão e a descriminação são tão abundantes entre seres da mesma raça? Foi então que eu conheci guerras, tragédias, massacres e outras coisas abomináveis e ilógicas que a raça humana cometia consigo mesma em busca de um conceito inexistente de poder, fama e riqueza, e como a raça humana lentamente afogava-se em busca de coisas que ela mesma criou para ser superior a si mesma, um ciclo infinito de perseguição ao mais bonito, ao mais poderoso e ao melhor.
     Foi neste mar de tomos e infinitas perguntas que eu li pela primeira vez a palavra “solidão” escrita sobre o papel e então aquele sentimento, que eu achava tão familiar, me veio à mente. Por noites inteiras eu passei por tudo que eu tinha, passei por teorias científicas à contos infantis. E devo assumir, que talvez a minha coleção estivesse incompleta, pois eu nunca achei algo que verdadeiramente satisfez a minha curiosidade. E então eu pensei em outras pessoas. As pessoas vivem entre si todos os dias e todas as noites, o conceito de cidades e sociedade. Assim como eu não sentia falta ou não entendia a luz antes de abrir os olhos, jamais vou entender a solidão sem estar na presença de alguém. E quem era melhor para responder estas perguntas do que as próprias pessoas? Mas como eu encontrava as pessoas, onde ficava a sociedade? As perguntas pairavam na minha mente por horas e horas à fio. Eu tinha conhecimento de que as pessoas viviam em suas metrópoles lotadas e que jamais passavam um dia sem ver o rosto de outra pessoa. Que conversavam entre si através de aparelhos delicados e complexos e que necessitavam uma das outras assim como parasitas necessitam de hospedeiros. Eu também descobri como eles corroem a carne sem saber que o que elas estão comendo é o próprio corpo. Passei a considerar pessoas como verdadeiros canibais sociais e considerei se era interessante mesmo descobrir sobre isso, mas todo cientista tem seu momento de hesitação antes da descoberta e o meu Frankenstein estava quase pronto, eu só precisava da cabeça. Da pessoa, para ser mais exato.
     Foi em uma das noites frias de lua cheia, uma das mesmas que me mostrara aquele quadro soturno, que eu escutei um som diferente entre as folhas à milhas de distância. Era o som de folhas sendo amassadas e empurradas, sons que nenhum vento forte conseguia imitar e que nenhum animal solitário familiar conseguia reproduzir. E o som estava cada vez mais próximo, se aproximando. Curioso, eu me agarrei nas sombras e esperei com furtividade, como um morcego se agarra à escuridão do teto para não assustar o que vem da luz. Até que o som mudou e eu o vi abrindo as portas que davam para o bosque e entrando no salão principal. Era um jovem ser humano com cabelos negros e olhos familiares, ele trajava uma camisa borrada marrom e carregava consigo uma lanterna hesitante e uma foto no seu bolso. Encarava a casa com uma nostalgia que eu não conseguia entender. Por algum motivo, aquele rapaz parecia familiar para mim, quando ele começou a falar consigo mesmo, eu me assustei, pensei que tinha me visto e estava me cumprimentando, mas não, estava apenas falando sozinho, contando uma história para as paredes e janelas escutarem. Eu o segui, ainda espreitando nas sombras, sempre silencioso como aprendi a ser. Era fácil para mim, minhas patas grudavam nas paredes e no teto, minha pele mesclava-se com a escuridão, meus olhos abriam e fechavam sem som e meu corpo disforme não fazia barulhos sem a minha permissão. Meus ouvidos captavam qualquer movimento e eu podia controlar os meus como um maestro controla seu palco ou um mestre seu escravo. O homem continuou galgando o seu caminho através dos corredores sem se perder ou precisar olhar para o lado, apesar da tamanha confiança em seus passos, ele nunca parava ou chegava em algum lugar e eu passei a questionar se ele sabia o que estava fazendo. Até que parou na frente de uma porta, a porta do mesmo escritório no qual eu nasci. E logo em seguida, entrou e eu o acompanhei.
     Ele viu a cadeira e procurou o quadro como se soubesse onde estaria, achou-o onde deixei. Olhou para uma corda nodosa pendurada ainda no teto e uma lágrima escorreu pelo seu rosto, mas eu não entendi. Ele falava soluçando e segurava a foto com força enquanto jazia ajoelhado no chão. Talvez estivesse sentindo fortes emoções, talvez lembrasse de algo e talvez ele se sentisse sozinho naquele momento, solitário. Era o momento perfeito para perguntá-lo. Mas eu não sabia como. Tinha-o acompanhado meramente movido pela minha curiosidade e não por planos calculados, eu não sou alguém de estratégias ou preparação, então, eu criei para mim uma voz, como eu apenas conhecia a voz daquele homem que agora chorava ajoelhado no chão, eu o imitei para poder cumprimentá-lo.
     Assumo, a minha primeira tentativa de sair das sombras e fazer contato com o homem desconhecido talvez tenha sido um pouco não planejada. Pois a minha voz saiu deformada e distorcida como um som quebrado de uma imitação barata. Mas isto fez o homem se virar para mim imediatamente, sobressaltou-se e fez uma expressão que jamais pude compreender totalmente e paralisou-se onde estava, convenientemente. Então, com uma voz mais clara, eu perguntei para ele o que era solidão. E dessa vez eu tinha certeza que minha voz saiu de maneira clara e perfeita. Ele conseguia entender o que eu dizia e conseguia entender qual era a voz que eu replicava. Ele parecia querer me responder, sua boca estava entreaberta, mas nenhum som saia. Eu decidi que precisava ajudá-lo a me responder. Com meus longos braços, eu agarrei a sua boca enquanto ele se debatia estranhamente, coloquei meus dedos entre os seus lábios e aos poucos puxei a sua pele, com minha pata eu tentei mover a sua mandíbula para facilitar a sua comunicação, e então ele começou a gritar. Seus gritos provavelmente ecoaram por milhas pois ele não parava, mas não havia ninguém perto para escutá-lo. Como parecia estar funcionando, mas eu ainda não tinha conseguido entender, eu puxei com mais força até que arranquei sua mandíbula que pendeu para a minha direção jogando sangue ao assoalho. Seus olhos reviraram como quem desmaia pela dor e os gritos se transformaram em sons guturais até a sua garganta inundar-se de sangue fresco que não parava de jorrar. Sua pele empalideceu e ele calou-se. Seus dedos que agarravam a sua preciosa foto enrijeceram-se e eu precisei arrancá-los para conseguir ver o que ele segurava, para fazer sentido disto tudo. Era a foto do mesmo homem soturno do quadro, mas dessa vez o seu cabelo estava mais curto, seu rosto parecia mais alegre, sua pele ainda era viva e ele estava acompanhado. Havia, junto a ele, uma mulher a qual o pedaço da foto tinha sido manchado de sangue e uma criança em seus braços. Jovem de cabelos negros, olhos curiosos e pele vívida. De repente, eu percebi que aquele homem tinha morrido. E eu não pude fazer a pergunta que tanto pairava na minha mente. Mas, de certa forma, ele acabou me respondendo de outra maneira.
     Enquanto eu olhava para a foto e percebia o que fiz. Eu derramei uma lágrima assim como ele fez, o motivo, eu não sei se era por que eu não conseguira minha resposta, se era por que ele não iria mais voltar aqui ou se era alguma outra coisa que eu não entendia muito bem. Mas somente o fato de eu estar sentindo falta de observar aquele homem falando sozinho pelos corredores me fez entender. Eu queria que ele tivesse me respondido, queria vê-lo caminhar pela casa e queria que ele voltasse a me visitar outra noite qualquer. E foi assim que eu descobri o que era solidão.
7 notes · View notes
filipemduarte · 2 years
Text
O Observador de Pessoas.
    Se existe algo que me intriga e me causa uma curiosidade inconcebível são as pessoas, mas não qualquer pessoa. Existem incontáveis pessoas pelo mundo, pessoas cujas rotinas mudam e variam todos os dias, sem contar com as milhares de linhas de pensamentos, raciocínio e reflexões que os seus cérebros tinham todos os dias. Se eu pudesse ter um poder para ter desde o berço de meu nascimento, eu definitivamente teria escolhido a capacidade de ler a mente de outras pessoas. Não por motivos suspeitos ou pervertidos, de forma alguma, mas existem certas pessoas cujos pensamentos parecem ser tão nublados, misteriosos e únicos que ter a capacidade de conhece-los seria como ler um bom livro, entretanto, também há fato de que o mistério é metade da diversão quando se encontra uma dessas pessoas. Eu posso concordar com o fato de que observar o comportamento de alguém, a maneira como essa pessoa interage com os outros e como os outro interagem com ela, é uma parte da diversão de ser um observador de pessoas – o que eu me considero.
    Antes de começar de fato, devo assumir que o meu pequeno passatempo de observar pessoas pode parecer um pouco sinistro e até suspeito às vezes, por isso eu peço perdão, mas eu não trajo nenhuma má intenção com os meus atos e se algum dia eu percebi que isso incomodava a pessoa cujas atenções de meus olhos e pensamentos estavam sendo voltadas, ou até mesmo minhas ações causavam algum mal, eu parei o que fazia quando estava fazendo. Mas devo também assumir que, a maioria nunca percebe que está sendo observada.
    Em toda a minha adolescência, eu sempre amei observar pessoas e isso começou desde a minha infância, quando, sozinho em casa, tudo que eu podia fazer era ver as pessoas que andavam pelas ruas lotadas do lado de fora. E a vida de uma criança que cresceu em uma cidade grande é entediante quando não se quer nem estudar ou brincar, passei a fazer jogos para mim mesmo, tentando descobrir o que aquela pessoa fazia, como era a vida dela e o que ela pensava. Este jogo ficou tão intrínseco em minha mente que eu passei a fazer isso todo o tempo, e assumo, era divertido no começo, depois apenas passou a se tornar maçante e entediante. Todas as pessoas pareciam ser iguais: monótonas, cinzentas, iguais, medíocres e com pensamentos e comportamentos comuns. Quando eu finalmente entendi o ritmo que a maioria das pessoas seguia eu entendi o quão entediante o mundo pode ser, as pessoas não eram interessantes, elas eram todas iguais. Todas seguiam o mesmo ritmo e pensamento como se fosse algo padronizado produzido em uma fábrica e vendido aos montes em lojas de departamento. Pensamentos passaram a ser fabricados e padronizados, comportamentos eram repetidos à exaustão e ninguém parecia perceber que algo havia de errado! Era aterrorizante e depois, se tornou tedioso.
    Eu não lembro quem foi a primeira pessoa interessante que eu encontrei depois de tanto tempo de desilusão, mas eu lembro que eu acabei descobrindo que algumas pessoas podem quebrar essas baixas expectativas que eu tinha. E eu não digo isso por que as pessoas que eu julgo “interessantes” são extravagantes ou especiais de alguma forma, não. Para os olhos do mundo, muitas dessas pessoas são pessoas comuns, vivendo as suas vidas as vezes soturnamente e as vezes normalmente, o que as difere do resto da humanidade é o curso de seus pensamentos que refletem em seus mais sutis comportamentos e conversas. Geralmente demora um tempo para eu perceber que alguém é dessa forma, requer certa análise. Eu usualmente começo percebendo algum traço comum: um comportamento soturno, uma pessoa solitária, um leitor ou alguém que gosta de rabiscar sozinho, uma pessoa que encara o céu nublado ou alguém bem organizado, entre outros. Depois eu começo a observar como ela reage a certas coisas e como ela se comporta no dia-a-dia dela e por aí vai. Essa forma de observar só funciona se eu frequentar rotineiramente o mesmo local da pessoa que eu estiver observando e é claro, ela não saber que está sendo observada. E como eu disse anteriormente, geralmente demora um tempo para eu perceber que alguém pode vir a ser interessante e as vezes até mesmo a minha análise inicial cai por terra, mas... Isso foi diferente com uma pessoa, um garoto. Eu notei imediatamente que havia algo de especial naquele garoto que se sentava na carteira no fim da classe e foi graças a ele também que eu decidi abandonar completamente o meu passatempo de observar pessoas e agora... Bem, agora as pessoas me causam um terror absoluto.
    Assim como muitos outros, nós frequentávamos uma escola preparatória integral que ficava relativamente afastada da cidade. Dormíamos por lá e durante os finais de semana podíamos escolher ficar na escola ou voltar para casa para descansarmos. O local era relativamente interessante e não tinha nada digno de nota, nunca chegava a atrair muitas pessoas muito interessantes ou especiais, especialmente na minha classe onde a maior parte das pessoas eram extremamente previsíveis: frequentadores de festas, adolescentes que queriam beber para se sentirem adultos e bajuladores. Este último era o que mais me entediava, alguém que não tinha nem mesmo uma personalidade e buscava se encontrar na dos outros, eu devia mesmo é acreditar em Maquiavel e seguir com o meu dia a partir daí. Porém, quando eu notei aquele garoto pela primeira vez eu percebi algo diferente nele. Não chegava a ser paixão ou obsessão, mas se eu pudesse classificar o meu sentimento inicial pela primeira vez seria o de um interesse profundo, como se um cientista tivesse acabado de encontrar o espécime perfeito. E não vou mentir, estávamos no segundo mês do último ano que eu iria frequentar aquela escola e eu nunca tinha percebido aquele garoto no fim da sala, na carteira ao lado da grande janela marcada pelo tempo. Apenas o modo como os olhos dele se deleitavam sob o céu de um dia nublado, cujo olho comum apenas via uma imensidão branca, aquilo foi o suficiente para eu saber que os pensamentos dele não estavam no céu nublado ou no mundo que o cercava, mas sim no seu próprio mundo de reflexões e pesares, os seus olhos não demonstravam tristeza ou euforia, apenas a plena e pura reflexão. A sua mão apoiada no queixo segurando a cabeça no lugar e as suas pernas cruzadas enquanto apenas o seu caderno estava em cima da carteira, ignorando por completo a aula à sua frente, foi tudo o que consegui ver de primeira análise. Me encantei, o que eu não entregaria de mim para ter aquela tão sonhada capacidade de invadir os seus pensamentos com um intruso curioso, para dissecar suas reflexões e deleitar-me sob as suas palavras não faladas.
    Mais tarde no ano, descobri que o seu nome era Nathan Carver, que ele era um garoto soturno e que tinha entrado no começo do ano para a nossa classe. Ele era tão silencioso e invisível que poucos também tinham notado a sua presença. Ele não era mal-educado ou evasivo quando as pessoas falavam com ele, mas ninguém realmente parecia estar interessado em falar com ele. Suas respostas eram curtas e sempre que se iniciava uma conversa, parecia que se entrava em um beco sem saída, onde as suas respostas pareciam sempre dar uma finalidade ao assunto e ele voltava a encarar o horizonte dos corredores ou da sala onde se encontrava. Seus olhos eram cinzentos, sem cor e para todos os outros propósitos, ele era para ser um garoto entediante e sem graça. Então por que eu o achava tão intrigante? Será que o meu cérebro tinha pregado pessoas em mim e me enganado? Foi alguns dos pensamentos que correram através da minha mente através de algumas semanas quando minha desilusão com Nathan pareceu crescer, mas algo aconteceu que mudou isso totalmente.
    Durante uma semana, as provas se aproximavam e eu estava extremamente atrasado em muitos conteúdos. A minha obsessão em observar os mais minuciosos e simples comportamentos de Nathan me custaram a atenção que eu costumava voltar às aulas. Eu conversei com os meus pais e eles concordaram em me permitir ficar na escola durante os finais de semana para eu esforçar-me em meus estudos. Eu nunca realmente tinha ficado nos finais de semana na escola, então era uma experiência nova para mim e excitante no começo, mas a única diferença era que a escola ficava extremamente mais vazia e silenciosa, durante a noite tínhamos como escolher qualquer dormitório se quiséssemos, apesar de sempre acabar gravitando na direção do nosso próprio, e podíamos escutar quase qualquer som nos corredores quando anoitecia. Foi esse último fato que me fez acordar durante uma das madrugadas sonolento e cansado, com a minha mente ainda flutuando ao entorno de equações matemáticas dos estudos ainda recentes e frescos. Eu escutei a voz de alguém reclamando e batendo contra algum objeto pequeno no corredor, foi quando me esgueirei para espiar e vi Nathan Carver tentando fazer uma lanterna funcionar e depois de alguns sussurros irritados e batidas na lanterna, ele conseguiu. Ele estava totalmente vestido, com calça e botas, carregava consigo também, além da lanterna, um buquê que flores. Admito que, naquele momento, as chamas que haviam se apagado da curiosidade por Nathan tinham sido acesas subitamente como uma grande fogueira cerimonial, porém, até que eu me vestisse e me arrumasse para segui-lo, o que eu imaginei que, pela sua vestimenta, ele estaria indo para fora da escola, eu já tê-lo-ia perdido de vista. Na outra noite, era segunda-feira e apesar de eu esperar ansiosamente, Nathan não veio.
    Decidi novamente ficar outro final de semana na escola, mesmo depois das provas já terem passado, arrumei alguma desculpa para com meus pais e fiquei esperando, mais preparado, na fresta da minha porta daquela vez. Até que escutei os passos e vi Nathan passando, novamente com outro buquê de flores e uma lanterna, a mesma lanterna falha de sempre. Só que dessa vez, eu o segui. Acompanhei-o furtivamente pelos corredores, pelos jardins da escola, pelo pátio e até fora dos campos da escola, onde um monte repleto de grama descia para um bosque de pinheiros que parecia interminável e extremamente sinistro durante a noite. Nathan entrou no bosque sem titubear, mas eu hesitei. Estava sem luz e já quase tinha tropeçado várias vezes em solo plano, imagine no meio de um bosque, sem contar com o fato de que nada parecia mais suspeito do que aquilo. Meu medo me segurou naquela noite e eu voltei, mas fiquei com um sentimento de arrependimento, no final, a curiosidade venceu-me outra vez e me encontrei acompanhando Nathan no outro final de semana, mas dessa vez, eu adentrei no bosque junto dele. Nos dias anteriores, eu tinha me arriscado de fazer esse caminho durante o dia para saber quaisquer largas pedras ou raízes no caminho. A baixa luz da lanterna de Nathan me auxiliava e com uma furtividade que eu não sabia que tinha, eu acompanhei Nathan até que eu consegui ver luzes mais a frente: era uma estrada, Nathan olhou para os dois lados com cuidado e atravessou, entrando no bosque do outro lado. Na minha ansiedade eu não olhei e apenas atravessei, entrei no bosque também e continuei a segui-lo, até alcançarmos o que parecia ser o objetivo de Nathan desde o início, um cemitério abandonado.
    Eu sabia que era arriscado e inconsequente, seguir alguém desconhecido durante a noite através de um bosque e acabar em um cemitério abandonado, mas admito que naquele momento, eu era um investigador, um observador curioso que estava prestes a ter uma grande revelação. Nenhum cientista ou pesquisador deixa de ficar ansioso quando está prestes a ter uma grande pista em seu projeto de meses, por que eu pensaria racionalmente? Mas admito que quando chegamos ao cemitério, alguma ficha caiu e eu comecei a hesitar, porém, já estava lá e o que eu podia fazer era observar. Juro por tudo que, naquele momento, se eu tivesse simplesmente me virado para ir embora, as coisas seriam diferentes.
    Nathan começou a andar pelo cemitério, à passos curtos e acostumados. A lanterna fraquejou e ele sussurrou algumas palavras de reclamação com o objeto antes de voltar a se dirigir à um túmulo, mas antes, ele parou e olhou com um olhar feio e medroso para um dos túmulos a sua direita, eu fiquei intrigado, mas ele apenas passou reto e evitou olhar para ele pelo resto do seu tempo ali. Em seguida, o garoto ajoelhou-se na frente de outro dos túmulos, sujando a sua calça de terra úmida, colocou delicadamente o buquê sobre o túmulo e começou a sussurrar algo, como a curiosidade me abateu! Eu precisava saber, que precisava ouvir o que ele estava falando então eu dei a volta, circundando o cemitério por fora até passar pela mureta baixa e me esconder atrás de um mausoléu abandonado, onde pude apenas escutar as últimas palavras da voz baixa de Nathan falando: “Desculpe-me, foi culpa minha.”. Então ele levantou-se e partiu, reclamando da lanterna uma última vez e tentando evitar olhar o túmulo que ele tinha olhado estranho na ida.
    Eu fiquei atônito, por um momento tive medo e por outro, tive certa decepção. Será que Nathan Carver apenas vinha aqui para lamentar a morte de um conhecido e eu estava bisbilhotando a sua vida pessoa tão profundamente assim? Será que eu tinha finalmente entendido a culpa de Nathan sobre algum evento que ele se julgava culpado e tinha entrado em algo mais deprimente e pessoal? Me senti culpado e decidi partir, até mesmo a minha curiosidade para saber de quem era o túmulo das flores tinha se esvaído antes de eu começar a me perguntar as coisas mais óbvias: Por que ele não tinha aqui durante o dia? Por que vir estritamente à essa hora da noite? Talvez fosse mais fácil sair da escola durante a noite, mas mesmo assim, valia a pena o risco? Foi então que os meus olhos e atraíram para o túmulo que ele olhara estranho antes de entrar e antes de sair. Minhas pernas tremeram e algo perfurou o meu peito com tamanha intensidade que a minha respiração hesitou. Eu empalideci e comecei a tremer violentamente quando li as palavras velhas inscritas no antigo túmulo: “Nathan Carver. Falecido em um acidente de carro.”
    Nathan Carver? Morto? Então quem era aquele Nathan Carver que eu estive observando por meses? Quem era aquele garoto que eu tinha seguido e que a curiosidade tinha me forçado a esgueirar-me para fora da escola durante a noite para dentro de um bosque? De quem era aquela voz calma e silenciosa? Isso me atingiu como um raio e logo eu corri para ver o túmulo das flores ainda pensando como aquilo podia ser uma pegadinha muito bem elaborada. Talvez ele não tenha gostado o fato de que eu estava observando-o e decidiu pregar uma peça em mim, sabendo que eu era curioso talvez tenha passado pelo meu quarto de propósito... E então eu li o que estava escrito no túmulo onde as flores estavam postas, não deve ser surpresa nenhuma saber que ali estava escrito o meu nome onde eu também tinha morrido em um acidente de carro. O mais cômico de tudo era que a data era daquela exata noite.
    No começo eu me aterrorizei, assumo. Achei que eu estava vivendo um verdadeiro horror até começar a pensar em como aquilo era uma pegadinha muito bem elaborada. Eu chutei s flores irritado e comecei a partir à passos apressados para fora do cemitério, para fora do bosque o mais rápido que pude. Meu coração palpitava e eu começava a perder a concentração dos meus arredores, perdido em pensamentos rápidos que variavam entre medo e raiva. Eu nem percebi que estava atravessando a estrada antes de ouvir a buzina nos meus ouvidos e as luzes do farol ofuscando a minha visão. Por pouco eu não fui acertado pelo carro em alta velocidade, eu me senti sendo puxado para fora do caminho e de repente eu estava no chão, com o coração ainda mais rápido. Olhei para o lado e não tinha ninguém, quem me puxara? Ou fora apenas uma sensação estranha? O carro parou e alguém começou a descer, mas mais pensamentos entraram na minha mente, como o fato de que estar me esgueirando para fora da escola, eu não podia ser visto então eu corri para dentro do bosque apenas para ouvir a voz do homem do carro: “Garoto? Você está bem? Garoto!”, a sua voz desapareceu na distância enquanto eu corria pelo bosque. Meus pensamentos nunca deixavam de correr de um lado para o outro, como eu quase realmente morri naquele momento e como eu nunca tinha percebido, sem a luz de Nathan para me guiar, como o bosque era escuro e como aquela estrada também era mal iluminada.
    Voltei para a escola onde não encontrei mais Nathan Carver e nem pretendo ainda. Hoje é domingo e amanhã voltam as aulas. Não mais ficarei observando Nathan, mas se um dia eu encontrar a oportunidade, irei confrontá-lo. Já é relativamente tarde da noite, mas ainda me encontro ansioso demais para dormir, por isso decidi escrever isso, talvez para que estes pensamentos saiam da minha cabeça e entrem para sempre num papel, onde ficarão presos longe de mim. Eu nunca notei como esse lugar é realmente silencioso, como é frio e como as pessoas podem ser assustadoras.
24 notes · View notes
filipemduarte · 2 years
Text
Casa de Bonecas
     À minha própria Casa de Bonecas! Através daquelas estantes de madeira escarradas pela poeira e pelo abandono, elas se alastram com seus olhos de latão que devoram-me morosamente, usurpando-me daquilo que batizaram trivialmente de alma - logo a minha! Vazia como os ossos de um pássaro necrófago.      Seus sorrisos de seda, escancarados como lobos que babam ao ter sua presa fincada em seus caninos deformados, guardam sonhos aleijados. E com isso ocorre-me: Eu tenho uma coleção de sonhos quebrados em minha estante empoeirada! Na Casa de Bonecas, que chamo de minha, mesmo que outros tenham a fabricado para mim. Deixem as bonecas e suas bocarras de seda deliciarem-se sobre a minha carne podre, deixe o sangue escorrer e quem sabe eu me torne mais um daqueles olhos de latão, na minha estante empoeirada, na minha Casa de Bonecas.
0 notes
filipemduarte · 2 years
Text
A Perdição do Alexandra.
II: “O Clandestino”
    Era uma tarde refulgente quando zarpamos do Rio de Janeiro para o alto mar. As nuvens escondiam-se de nós como se o fizessem de propósito, dando-nos uma tranquila introdução à uma jornada onde, à princípio, não parecia apresentar nada além de um mau agouro provindo dos lobos do mar. Entretanto, eu havia de me enganar nestes pensamentos equivocados, o que presenciei deveria ter alertado o âmago da minha alma de que algo havia de dar errado a bordo do HMS Alexandra, mas nenhum anjo foi bondoso o suficiente para descer até mim e me conceder consciência do perigo, então eu continuei, um médico ignorante do futuro sombrio que o aguardava mais à fundo deste oceano infindável.
    Como eu havia de saber que tais destinos cruéis que acertariam mais forte do que qualquer maré? Como um homem como eu, que jamais havia vivido tais aventuras e presenciado tais perigos, poderia perceber, de fato, que algo tenebroso aguardava-o no futuro? Estas são perguntas que qualquer homem são se perguntaria e se culparia após passar por um terrível testamento. Mas nenhum homem, nem mesmo o mais insano e calejado pelas faces mais grosseiras da vida poderia prever que tal horror me aterrorizaria pelo resto de minha breve e assombrada vida. Oh, para os fantasmas da vida que me atingem minhas memórias com aqueles dias de sofrimento e dor, eu lhes implorei para que saíssem, mas adotaram a minha companhia, a de um pobre coitado que apenas sofreu da mais inoportuna situação que um ingênuo poderia sofrer. Lá estava eu, naquele navio condenado sem nem sequer saber o que me aguardava. De lá, minha vontade sairia mutilada e tudo começou naquele maldito dia. O dia em que eu decidi salvar aquela alma sofrida que caiu daquele barril quebrado, aquele clandestino.
    Após o incidente com a carga, pedi ajuda para que dois marujos me auxiliassem no transporte da vítima, temendo que já poderia ser tarde demais, pois o sague obscurecia boa parte do seu rosto mutilado. Por sorte, após leva-lo à enfermaria mal equipada, consegui limpar o seu rosto e notar que os ferimentos não eram profundos, eram meramente sangramentos ilusórios e farpas que haviam penetrando-lhe o rosto de forma à condenar aquele sujeito à uma vida de deformado por toda a sua existência, isto é, se eu conseguisse salva-lo da hemorragia e dos ferimentos que o cercava. Não se provou uma tarefa difícil, afinal de contas. Eu era um médico extremamente competente apesar dos encalços que me cercavam de todas as partes: Não tinha equipamentos nem decentes e nem esterilizados para trabalhar; surpreendentemente, realizar procedimentos cuidadosos em um ambiente instável como um navio não é o ideal e nem mesmo fácil; E por último, não tive ajuda de ninguém. Apesar de ótimos carregadores de corpos, os senhores Billy Walsh e Nathan Dawson não cabiam para serem médicos ou enfermeiros, suas habilidades de prestidigitação se limitavam a segurar colheres para comer suas sopas amargas, e talvez isto viesse com dificuldade para eles. Requisitei o auxílio de meu irmão, que apesar de não ser um homem das ciências biológicas era letrado e tinha mãos estáveis. Cuidamos do infeliz, já era noite quando terminamos de fazer tudo, Diego estava exausto, nunca o vi tão estressado na vida antes, mesmo assim, após tudo terminar ele conseguiu dar um sorriso largo para mim, com suor escorrendo de seu rosto e confessou:
    - De fato, meu irmão, admito. Não tens trabalho fácil e nem pouco estressante! – Ele sorria e mesmo eu estando sofrendo dos cansaços de meus músculos ardendo como se estivessem queimando, encontrei forças para levantar as minhas sobrancelhas enquanto lavava minhas mãos cobertas de sangue e suor – De fato, dou-lhe isto: Perdão por lhe perturbar nos teus dias de estudo! Vejo agora que eu era um palerma!
    Eu encontrei forças para sorrir com suas brincadeiras.
    - Estás ficando mole comigo, Rosário?
    - Eu? Enlouqueceste! – Nós partilhamos uma risada exausta, mas reconfortante. Era como se os meus músculos ficassem mais leves ao compartilhar este momento tranquilo de calmaria, o estresse havia passado, eu havia salvado o homem, ainda sim, algo me perturbava e incomodava. Olhei para o homem agora deitado sob o colchão da cama ensanguentada, o seu rosto enfaixado onde nenhuma expressão era vista, seus olhos fechados e roxos dos hematomas do impacto, seus cabelos negros escapando pelas ataduras e seu corpo balançando com o balé das marés.
    Nos dias que se passaram, tratei de cuidar o homem adequadamente, ele iria ficar desacordado por um tempo e precisaria de todo o cuidado que podia ter, ainda sim, era um clandestino e criminoso que deveria responder pelo seu crime. O capitão disse que iria ser julgado na Inglaterra, mas que deveria permanecer no lazareto até lá. Com a ajuda da lábia de meu irmão, consegui convencer o capitão de mover alguns itens de cuidados médicos para o novo lar do meu paciente e do prisioneiro de todo o resto do navio. Billy Walsh e outro camarada russo que nunca cheguei a entender uma palavra que disse me ajudaram com os essenciais. Um punhado de homens carregou a cama e eu tive que trocar os colchões sozinho, mas Nathan Dawson me forneceu ajuda para carregar baldes de água limpa e algumas toalhas que ainda pude classificar como aceitáveis. Como um médico formado tudo sobre aquele lugar me enjoava, mas não havia nada que eu poderia fazer e nenhum destino que eu poderia mudar, logo eu aprenderia isto da pior forma possível, mas por enquanto me contentei em auxiliar aquela pobre alma deformada em manter-se respirando. Secretamente, eu também desejava estar lá quando o desgraçado acordasse, queria saber os seus motivos, de onde veio e por que estava ali. Eu estava curioso quem era aquele homem misterioso que eu cuidei durante semanas. Sim, semanas! E digo mais, tornou-se minha rotina e eventualmente minha mente acadêmica ansiava por uma recompensa que poderia satisfazer a minha curiosidade investigativa inata, eu queria respostas e respostas que havia de ter. Passei minhas tardes dentro daquele lazareto abafado sem muito o que fazer. De vez enquanto saia para tomar um ar, mas temia que Billy Walsh ou qualquer outro marujo que alternava a vigia do prisioneiro poderia presenciar o seu momento de despertar antes de mim. Passei a escrever em meu diário dentro daquele quarto e a ir lá mais do que deveria com a desculpa de que eu havia de cuidar do paciente e que eu havia de trocar suas ataduras, verificar o seu pulso ou qualquer outra desculpa que eu poderia arranjar. Quando eu estava cansado das desculpas eu simplesmente dizia que queria ver como estava a condição dele e era o suficiente para passar, afinal de contas eu havia conquistado a confiança do capitão nestes últimos dias. Cuidar daquele homem não tinha sido a única tarefa que me foi atribuída, cuidei dos homens que estavam se sentindo doentes, tratei dos feridos que caiam das cordas ao vento forte ou daqueles que se metiam em brigas por esporte. O capitão disse que muitos dos marinheiros deles sofriam da maldita doença do marinheiro, o escorbuto, que eu facilmente solucionei ao sugerir que eles implementassem frutas cítricas ou leite em suas dietas, que não havia em abundância, mas ajudou na sobrevivência de boa parte dos homens. A tripulação passou a ser muito agradecida dos meus serviços, mesmo eu não sendo um dos melhores oradores ou compartilhar de suas vontades, sonhos ou antecedentes. É aterrorizante como um médico pode tão facilmente ganhar a confiança daqueles homens, e guarde estas palavras pois elas logo seriam a minha perdição.
    Era noite quando esta cena que eu irei narrar aconteceu, eu estava a caminho do lazareto e já havia descido duas escadas vindo da cozinha para levar comida para o meu paciente misterioso. Titubeei nas escadas e o sono me atingia como uma bala sem aviso, mas eu me mantinha de pé meramente por rotina e determinação da descoberta. Assumo que meu cansaço estava tomando a melhor de mim e eu estava considerando em deixar esta missão sem propósito ou promessas de lado, aproveitar estas semanas de viagem nos ventos frios da noite e nas nuvens paradisíacas do dia em alto mar, aquela poderia ser uma das últimas noites em que eu me esforçava para ir até o lazareto fazer uma visita desnecessária. Eu cheguei à porta para ser avisado por Billy Walsh que guardava a entrada que outro visitante estava na soleira da cama do meu paciente, intrigado eu entrei para encontrar o primeiro-oficial Henry McKay observando o meu paciente, seu prisioneiro.
    O Primeiro-Oficial, com seus olhos de tubarão, encarou-me conforme eu passava pela porta e fechava-a atrás de mim. Lentamente o homem levantava-se da sua cadeira para me cumprimentar com uma expressão séria e assustadora.
    - Médico, qual é a condição do prisioneiro? – Ele perguntou, enquanto eu engolia em seco tentando decifrar suas intenções através de seus olhos perfurantes.
    - Ele está estável, Primeiro-Oficial – Respondi, conforme pousava a comida que carregava em uma mesa ao lado – Mas ainda precisa de cuidados e descanso...
    - Assim que ele acordar, me avise.
    Ergui as sobrancelhas, ainda temia o que o Primeiro-Oficial com o seu temperamento poderia tentar fazer sob o meu paciente.
    - É uma ordem, Primeiro-Oficial? – Interrompi-o conforme ele começava a fazer o caminho até a porta do lazareto, o homem parou, como se tivesse sido atacado fisicamente por aquela pergunta tão insultante em sua opinião, virou-se para mim com um olhar desagradado e respondeu com uma voz clara o suficiente para não se fazer repetir:
    - Não fui claro?
    - Eu conversei com o Capitão e ele...
    - O Capitão está muito ocupado cuidado dos seus deveres – Ele me cortou enquanto eu ainda planejava continuar – É para isso que existem os oficiais, para lidar com os inconvenientes e aliviar o trabalho do nosso Capitão, garantindo, assim, uma viagem tranquila através do alto-mar. Outrossim, o próprio Capitão Knight encarregou-me de tratar do clandestino pessoalmente, planejo ter este encalço lidado assim que ele for capaz de falar por si mesmo. Então, médico, se não fui claro anteriormente, deixe-me ser claro agora. Assim que o traste dar o seu primeiro respiro consciente, mande chamar-me antes de qualquer um, até mesmo do Capitão, pois eu hei de trabalhar em seu nome à respeito do destino do prisioneiro, fui claro?
    Seu discurso me silenciou por alguns momentos, admito que apenas a presença ameaçadora do Primeiro-Oficial me dava a sensação de perigo, quando todas as células do meu corpo gritavam para me avisar do perigo que jazia na minha frente. Engoli em seco conforme ele voltava-se para a porta e começava a virar a maçaneta quando a minha coragem finalmente voltou-se a mim e eu protestei:
    - O que vai acontecer com o homem?
    Ele parou, irritadiço ainda com a porta aberta.
    - Terá o seu julgamento em alto-mar – Ele respondeu, não conseguindo evitar formar um sorriso de uma satisfação apenas obtida pela posição – Não podemos nos dar ao luxo de alimentar vermes e parasitas inúteis para a nossa viagem.
    E ele olhou diretamente para mim, senti-me tremer, mas a minha língua foi mais rápida do que a minha mente e todos os alertas de perigo.
    - Mas, o Capitão disse que ele teria um julgamento em terra...
    - Segure a sua língua, médico – Ele esbravejou, agora a sua expressão enrijecera e seus olhos flamejaram com uma faísca de raiva que estava prestes a escapar se eu continuasse falando, assim como ordenado, eu me silenciei, mas em protesto, pois eu não queria me calar – Quando eu pedir a sua opinião sobre o meu trabalho eu pedirei. Mas até que este fatídico dia chegue, faça o seu trabalho e nada mais.
    Com isso, ele bateu a porta atrás de si e saiu à passos audíveis pelo convés, até que subiu a escada e eu não pude mais diferencia-lo das dezenas de marujos que festejavam no deque. Sentei-me a cadeira cansado e com as pernas muito fracas para continuar de pé. Deitei-me em reflexões e meus pensamentos começaram a correr de um lado para o outro sobre o que iria acontecer com o meu paciente. Afinal de contas, talvez eu jamais tivesse a oportunidade de interroga-lo e saciar a minha curiosidade. No final da noite, era apenas curiosidade, por que eu deveria me preocupar com esta pobre alma que acabou realmente cometendo um crime? Ao fazer isto ele deveria saber dos riscos de ser pego, de ser enxotado ou pior, de ser executado em alto-mar dependendo da embarcação que ele escolhesse. Era um clandestino e o seu crime era real, não era como se fosse um homem inocente e nem nada do tipo, por que eu haveria de defender aquele sujeito? Havia sim criado uma certa empatia pelo homem inconsciente, assim como é inevitável um médico criar por aqueles que salva a morte certa depois de muito esforço e suor, mas era apenas isto: Um trabalho em que eu me esforcei muito para salvar e que em breve encontraria o seu fim no fim de uma corda ou na ponta de uma baioneta. No final eu havia salvado aquele homem apenas para ele morrer semanas depois.
    Levantei-me da cadeira e já estava na metade do caminho para a porta quando escutei uma tosse fraca vindo do homem deitado. Virei-me imediatamente, em um sobressalto e corri para o homem que estava com um de seus olhos abertos e assustado. Sua expressão era de alerta apesar de estar quase totalmente escondida por ataduras. Olhei para os lados procurando o copo de água que trouxe junto da comida, e alcancei para entregar para o homem, que apenas levantou o braço com dificuldade negando a água, olhou para mim com o seu movimento limitado e disse:
    - Onde estou? – Sua voz era sussurrante e arrasada, claramente danificada pelo incidente, movia sua boca e queixo com dificuldade, tanto pelos ferimentos quanto pela atadura, dava para sentir tal dificuldade no som que emanava. Ainda assim, a necessidade por esclarecimento punha-se mais alta do que a dor vigente.
    - Está a bordo do HMS Alexandra, senhor – Eu respondi, ainda segurando o copo de água em minhas mãos – Eu sou o Dr. Paulino de Rosário e estou responsável por cuidar de seus ferimentos, por favor, não tente se levantar.
    Pude notar sua vontade, notei também que ele analisava o quarto ao seu redor como quem analisa um campo de caça, ele parecia ter olhos afiados e uma percepção notável. Logo percebeu que nada poderia fazer machucado daquela maneira e foi forçado a obedecer ao meu pedido, mantendo-se deitado na cama. Com o passar dos minutos eu respondi algumas das perguntas mais óbvias e conversamos sobre elas. Falei do Capitão e do resto da tripulação, também falei do possível destino e julgamento que ele havia de sofrer em breve. Ele nada me disse enquanto escutava as minhas palavras, as revelações viriam depois, escutou-me com todo afinco que pode reunir e estes minutos de explicação renderam a ele momentos para acalmar-se e recompor-se.
    - Muito bem, Dr. Rosário – Ele disse, ao pôr a mão no estômago como se estivesse sentindo dor ali – Eu agradeço como posso na minha condição pela preocupação de meu tratamento, realmente agradeço, mas eu tenho uma missão a cumprir. Infelizmente, devido ao meu destino e às minhas condições eu me vejo incapaz de cumpri-la. Vejo que o senhor parece ser um homem de confiança e honra, mas temo que hei de pedir algo impossível de realizar, ainda sim, o senhor deverá com todas as forças tentar fazê-lo. Disse que tem um irmão aqui neste navio, não é? Eis mais um motivo para dedicar todas as suas forças para fazê-lo. Eu vejo o seu olhar confuso, mas irei explicar tudo isto, pode me escutar?
    Sem hesitar eu concordei com a cabeça, ali estavam as respostas que eu queria desde o início, mas algo estava estranho, aquele homem não falava em tom de brincadeira e nem mesmo em tom de insanidade. Havia algo sério acontecendo e ele não era um clandestino qualquer, os seus modos e a sua sanidade demonstraram isso para mim, mesmo eu ainda estando cético sob esta tal missão que ele havia declarado ter, apesar disso, eu dei-lhe o benefício da dúvida e escutei cada palavra com cuidado.
    - Meu nome é José Maria Sandoval, nascido e criado na no Reino Espanhol, apesar de não visitar minha terra natal já tem décadas, não adequadamente, devo dizer. Está aí o motivo pelo qual seu Capitão não planeja me levar ao Reino Inglês e dar o meu julgamento lá, mas não te preocupes com isto por nem um minuto, isto de longe é o menor dos meus e dos seus problemas, temo que não viverei até lá. E o motivo eu hei de explicar para o senhor agora mesmo – Sua expressão séria, o seu modo de falar e a sua sanidade mental apesar de sua condição me atingiram fortemente, eu segurava em cada palavra e tentava fazer sentido do mistério de me cercava, continuei escutando apenas concordando periodicamente com um acena de cabeça – Eu sou um caçador por ofício, mas vivo de quaisquer trabalhos que possa arranjar como um peregrino entre nações. Me infiltrei neste navio pois um dos motivos era que eu não tinha nem reputação, amizade ou dinheiro sobrando, mas ainda tinha uma missão a fazer neste navio, pois minha caça havia se infiltrando entre os senhores já havia tempos e estava a bordo com os senhores. Trouxe todo o meu equipamento de caça e o meu diário comigo, o senhor deverá encontra-lo em algum barril oco neste bailéu.
   - Desculpa interromper, Sr. Sandoval... Mas se houvesse um animal perigoso à bordo do navio, bem... Teríamos notado – Eu disse – Já estamos há semanas em alto-mar, ninguém foi atacado por nenhuma fera descontrolada que exija a presença de um caçador, não entendo ainda os seus motivos.
    - Pois logo há de entender, Sr. Rosário – Ele falou com seriedade, engoli em seco e escutei-o novamente – Pois não sou um mero caçador de jaguares ou aves. Eu caço monstros.
    Abri os olhos relativamente altos, desta vez não pude acreditar no que eu estava ouvindo e quando ele falou aquilo com aquela seriedade a minha ficha caiu. Eu estava falando com um louco desde o princípio. Abanei a minha cabeça em decepção comigo mesmo, tinha esperado demais de um homem que entrou clandestino no navio e ele havia percebido a minha incredulidade.
    “Eu recebo muito desta reação, Sr. Rosário. Estou acostumado eu diria, é por isso que eu não costumo procurar associados, é um trabalho perigoso demais para homens que não acreditam no que vão enfrentar, não é para descrentes ou céticos. Mas estou em poucas condições de sequer me levantar e temo que mesmo se estivesse em perfeitas condições o meu tempo está se esgotando à cada palavra que passo. Mas o senhor irá acreditar logo e eu não vou desperdiçar minhas últimas palavras tentando convencer um cético que logo será convertido, não pelas palavras de minha boca, mas pela cena que irá ver diante de seus próprios olhos”.
    - O que o senhor quer dizer, Sr. Sandoval? – Eu olhei para ele, incrédulo.
    - Logo entenderá, homem, mas isso não importa agora! – Ele exaltou-se levemente, fazendo o seu corpo ranger de dor, ele tossiu sangue e colocou a sua mão na barriga novamente, eu me ergui para tentar ajuda-lhe, mas ele negou a minha ajuda com outro aceno da mão.
    - O senhor deveria ao menos beber água, eu tenho algo aqui para a dor...
    - Não! – Ele exclamou enquanto agarrava fracamente a borda de minha camisa, sujando-a levemente de sangue fresco – Escuta-me, é mais importante. Não vai negar um homem na beira de morte escutar as suas palavras, não é? Mesmo que esteja cético e incrédulo sobre elas.
    Assenti levemente e voltei a me sentar à cadeira para escutar o que este homem desconhecido tinha para falar. Talvez esta decisão me tenha salvado a vida, ou talvez esta ação tenha condenado a todos do HMS Alexandra, mas não dá para mudar o passado se não eu mudaria o fato de que teria entrado a bordo daquela barca para o inferno, apenas narrarei o que ouvi.
    - Como eu falei antes, caço monstros. Mas não são seres mitológicos que costumas escutar em histórias para dormir quando és criança, não são seres simples de morrer por que monstros não deveriam existir em nossa realidade frágil. Eles não deveriam existir, logo não deveriam deixar de existir, eis um paradoxo para pensar se conseguir sair desse navio vivo. O monstro que eu atualmente caço é um trapaceiro extremamente letal e perigoso, para ser mais específico, são dois irmãos. Um deles eu consegui capturar, mas o outro ainda está à solta. Ele fugiu e eu rastreei até este navio, onde me infiltrei clandestinamente na intenção de captura-lo, mas a minha pressa e os âmagos o destino me puseram nesta situação deplorável que me encontro agora, não serei capaz de fazer muita coisa e nem de explicar todos os pormenores das criaturas trapaceiras que caço. Mas você poderá encontrar melhores explicações se conseguir encontrar o meu diário e os meus equipamentos, vais precisar deles se quer ter uma chance contra elas – O homem falou todo este monólogo com a mão na barriga e com uma dor na voz, eu quase sentia pena do seu delírio e ele, apesar de notar o meu ceticismo, continuou a falar – Ouça-me e ouça-me bem, Dr. Rosário... Estas criaturas trapaceiras são capazes de imitar a aparência e o comportamento humano perfeitamente, eles eram mais primitivos no começo, o que tornou fácil caçar o resto da família, mas estes irmãos evoluíram e está quase impossível decifrar seus disfarces, tive que sacrificar muito para poder por as minhas mãos no primeiro... E ele se infiltrou, neste exato navio e atualmente se passa por um de seus tripulantes! Pode ser qualquer um deles... E não se engane, não há salvação para aquele cujo rosto foi tomado à força, para se camuflar como um homem o parasita deve matá-lo antes, cruelmente. Tudo que você pode fazer é...
    Ele novamente tossiu sangue e apertou mais forte a barriga, negou a minha ajuda e a sua voz ficou mais fraca, ele parecia estar sentindo uma dor aguda conforme tentava falar. Eu me pûs de pé, não podia mais ouvir aquela loucura e ver o homem agonizando na minha frente e somente observar como um espectador sem poder de decisão.
    - Já chega! O senhor precisa de ajuda, agora! – Eu falei alto e corri na direção da porta do lazareto, batendo para que o homem do outro lado me escutasse – Tenho uma emergência aqui, homem!
    - Encontre... O meu diário e tudo entenderá... Não confie em ninguém e... Fogo! Fogo destrói as criaturas, põe um fim em sua existência patética e traiçoeira – O homem agonizava e eu logo notava que a sua dor se originava do seu estômago que parecia tremer e ranger como se algo estivesse querendo escapar de dentro de sua carne – Boa sorte... Doutor... Rosário...
    E ao mesmo tempo que o homem do outro lado da porta, o pobre Billy, abria-a e testemunhava a mesma cena grotesca que eu via. O estômago do homem remexia-se de um lado para o outro enquanto o grito desesperado do caçador ecoava pelo bailéu, a dor em sua voz reverberou-se com o sangue que ele cuspia de sua boca como se estivesse sendo mutilado por dentro. Até que a sua barriga explodiu em sangue e tripas e o seu corpo bateu contra o assoalho, derramando sangue que se espalhava pelo chão. Sua voz calou-se dando espaço para um som arrastado de morte enquanto os olhos fixos do homem morto empalideciam-se na minha frente. O pior de tudo era o que parecia engatinhar para fora do seu estômago, o seu assassino interno não era uma doença ou um ferimento, mas uma coisa grotesca sem forma aparente. Ela tinha vários tentáculos que a permitiam se arrastar pelo chão e tinha o tamanho de um pulmão deformado. Alguns pequenos filetes de carne balançavam-se na sua extremidade enquanto vários olhos mal formados lhe davam a capacidade de visão, a coisa estava encharcada de sangue e morte para conseguir fazer muito além de engatinhar para fora do corpo de sua vítima, que a mantinha capturada dentro de seu próprio corpo! Aquilo não era mero verme, nenhum deles fazia isso, era de fato um monstro e todas aquelas palavras loucas do homem era verdade!
    - O que diabos é esta coisa? Saia da frente, doutor! – Billy Walsh exclamou conforme puxava uma baioneta de sua bainha e empurrava-me para fora do lazareto, eu quase cai e nada pude fazer para impedi-lo, devido ao meu choque a minha fraqueza, Billy foi rápido ao espetar a baioneta contra a criatura verminosa, acertando um de seus olhos e um de seus tentáculos no processo, mas a coisa não pareceu reagir exceto por um grito afilado que aquele verme deu, seus filetes agarraram na baioneta e envolveram-na, só não agarraram Billy Walsh por que ele saltou para trás em reação.
    Eu olhei para os lados, tentando desesperadamente encontrar uma solução para a coisa que se arrastava na nossa direção, logo vi alguns homens vindo das escadas do bailéu correndo na nossa direção, alguns carregando porretes e outros carregando lanternas à óleo para iluminar o caminho noturno. Eu me pus de pé e antes que qualquer um deles pudesse perguntar o que estava acontecendo ou exclamar sobre a criatura que agora se arrastava para fora do lazareto eu corri na direção de um deles.
    Todos exclamaram conforme a criatura começava a subir pelas pernas de Billy Walsh, perfurando a sua carne e devorando o marujo pouco a pouco. Billy gritava de dor e todos só conseguiam observar em choque, era um monstro marinho que estava crescendo conforme a carne de Billy Walsh era o seu banquete nojento.
    Eu tremia conforme arranca uma das lanternas à óleo das mãos de um dos homens, eu olhava em choque para a coisa que estava agarrada contra a perna de Billy Walsh e agora subia para começar a mutilar o seu tronco e dolorosamente fundir-se com ele. Eu via conforme a criatura derramava alguma espécie de líquido ácido que derretia a pele do marinheiro e começava a mesclar-se com o homem, adquirindo a cor de sua pele e até mesmo os cabelos de suas coxas. Os tentáculos subiam pelo seu tronco e agarraram o seu braço rapidamente, aqueles olhos mal formados abriram-se grotescamente conforme eles passavam a fazer parte de um agonizante Billy Walsh, que todos olhavam derreter-se na sua frente. De repente, alguns marujos começaram a reagir e tentaram de tudo para tirar aquela coisa de Billy. Eles puxaram porretes e cortaram com facas, mas não parecia ser o suficiente, os gritos de Billy só aumentavam e os olhos e tentáculos tinham crescido conforme a aparência de Billy Walsh se pedia na massa bizarra.
    - Para trás! – Gritei, com a voz tremendo enquanto os marujos pulavam para trás em desesperado considerável. E conforme eles largavam-se do corpo mutilado de Billy Walsh que agora se tornara um com a criatura eu não conseguia deixar de notar que aquele poderia muito bem ter sido o meu destino se ele não tivesse me empurrado para trás naquele exato momento – Eu sinto muito, Billy.
    Eu arremessei a lanterna à óleo com toda a minha força na direção do pobre homem consumido pela criatura, vi-o acender-se na minha frente enquanto o seu corpo era tomado por chamas, uma labaredas cresceram como uma enorme fogueira e me jogou para trás conforme os gritos ecoantes da criatura flamejante agora eram agudos e graves ao mesmo, a dor de Billy Walsh se misturava com a dor da criatura amórfica à minha frente. Seus tentáculos tentaram escapar conforme os filetes de carne derretiam deixando um cheiro de carne podre e agonia para trás. A criatura ardia e as chamas ameaçam se espalhar conforme o braço de Billy Walsh e os tentáculos da criatura queriam escapar do seu terrível destino.
    - O que está acontecendo aqui!? – Ouvi a voz do Capitão espantado junto com McKay aproximarem-se pela multidão, eles mal tiveram tempo de reagir antes do Capitão gritar – Tragam água, homens! Caso contrário todo o navio arderá em chamas!
    A comoção foi extrema, de um lado havia Billy Walsh ardendo em chamas, agonizando à uma morte terrível que eu não conseguia tirar os meus olhos dela, era um destino tão horroroso que eu havia destinado àquele homem a ter que as minhas pernas fraquejaram e lagrimas de desespero escaparam-se pelo meu rosto, aqueles olhos ziguezagueando para todos os lados desesperado enquanto ardiam começavam a ficar fracos, as pernas de Billy Walsh haviam caminhado mais do que deveria até agora, e os homens começavam a chegar com os baldes de água, mas isso foi depois de Billy Walsh parar de gritar e o seu corpo colapsar contra o chão, agora só quem gritava era a criatura que ardia fracamente. A água começou a apagar o fogo e a criatura calou-se conforme o fogo ainda derretia a sua carne movediça.
    Algo me agarrou pelo colarinho, mas eu estava dormente, mal pude notar a força me puxando me agarrando contra a parede bruscamente, ouvi gritos, vozes e tudo parecia nublado na minha cabeça. O desespero havia tomado a minha consciência. Quando fui recobrar meus sentidos consegui ver Henry McKay gritando comigo.
    - O que aconteceu aqui!? O que você fez!? – Ele me balançava desesperadamente me batendo contra a parede, alguns marujos tentaram acalma-lo, mas não havia como acalmar um homem que viu um dos seus sendo queimado na sua frente junto daquela criatura terrível e ele não vira o começo, apenas vira o corpo de Billy Walsh sendo consumido pelas chamas infernais e viu aquelas coisas estranhas saindo de seu corpo e expurgando-se de agonia – Fale alguma coisa! Qualquer coisa! Você o matou!
    E então, sem me dar oportunidade de responder, Henry McKay socou-me contra o rosto, atingindo minha boca e quebrando o meu nariz, fui jogado contra o chão e Henry foi segurando pelo braço por alguns marujos. Cuspi o sangue junto com um de meus dentes e raivosamente virei para Henry conforme ele empurrava os marujos para trás.
   - Eu não matei Billy Walsh! – Gritei em desespero – Aquela coisa ia devorá-lo por completo, ia se tornar ele! Não era mais o Billy, era um monstro!
    - O que você está falando, irmão? – Ouvi a voz trêmula e assustada de Diego saindo da multidão e logo lembrei das palavras do pobre caçador sobre o que ele tinha acabado de me explicar. Da criatura poder tomar a forma de outros, de eu ter um irmão e como isso fazia a minha tarefa ainda mais necessária. Estavam quase todos ali e quase todos tinham presenciado o que eu havia presenciado naquele exato momento, o Sr. Sandoval não estava louco ou delirante, ele estava certo desde o começo e havia me condenado a continuar o seu trabalho por ele.
   - Aquela coisa! – Eu apontei para o corpo carbonificado e agora apagado de Billy Walsh, que exibia tentáculos e olhos negros queimados em seu cadáver – Pode assumir a forma de qualquer um de nós.
    - Mas ela está morta agora, não é? – Exclamou duvidoso Nathan Dawson.
    - Essa está... – Me levantei com a ajuda de Diego conforme meu rosto ardia e o meu nariz doía ainda mais, cuspi mais sangue ao chão – Mas ela não era a única. Tem outra...
    - O que quer dizer... – Diego entendeu, antes de qualquer outro naquele grupo.
    - Um de nós... Um de nós é o irmão daquela criatura que acabamos de matar. Seja lá qual era a intenção desta outra criatura... Seja de fugir para a Inglaterra ou qualquer outra coisa... Temo que acabamos de matar o seu irmão.
    Todos engoliram em seco conforme eu pude sentir o silêncio atingindo todos como mil facas que atravessam cegamente. Olhei para cima apenas para observar os olhares assustados de Dawson e os outros marujos, os olhos de jaguar de McKay incrédulo e o olhar temeroso e suspeito do capitão, além do arrependido vislumbre de meu irmão Diego. Qualquer um deles poderia ser a outra criatura. Foi aí que o inferno de verdade começou e foi aí que o HMS Alexandra começou a cair em desgraça.
    Um daqueles homens à minha frente era um monstro e se eu quisesse sair vivo dali com o meu irmão, eu teria que descobrir quem.
1 note · View note
filipemduarte · 2 years
Text
Aqueles Que Se Perderam na Floresta.
    Muitos dizem que as florestas guardam muitos segredos. Suas folhas crescem e caem todos os anos, mas, com o vento, viajam pelo ar e observam tudo de longe. Seus troncos pintam histórias de eras passadas, como olhos observando o passado, o presente e o futuro. Muitos dizem que as florestas sabem os seus piores segredos e onde todos os corpos que você escondeu estão enterrados. As árvores contam histórias e a terra sabe onde você pisou. O rio sabe o sangue que você lavou. E os pássaros observam tudo que você faz. Muitos dizem, também, que você está sozinho quando entra em uma floresta por si só. Mas eles estão de fato errados, a floresta está observando. E observando tudo.
    Eu nasci em uma pequena comunidade que vivia dentro do infinito bosque de Roxheller. Para os olhos exteriores, éramos estranhos e reservados por nossos hábitos incomuns e desconfortantes. Mas não fazíamos nenhum mal a ninguém, ao menos era o que eu acreditava quando era mais jovem e ingênua.
    Todos os dias em Roxheller pareciam como um sonho, não um sonho exatamente bom e nem exatamente ruim, mas você não pensava muito enquanto estava por lá, não sentia muito também, apenas vivia. Nunca houve muitas brigas em nossa comunidade e era muito difícil as pessoas se apaixonarem também. Ninguém conhecia muito um do outro, exceto, talvez, o seu nome e onde vivia. Às vezes, quando calhava, sabia-se também o que essa pessoa fazia e a sua família, mas é só. Ninguém se interessava na vida um do outro, éramos todos estranhos vivendo juntos nesta comunidade onírica e distante de uma sociedade urbana.
    Atualmente eu vivo em Boston, sou secretária de um advogado comum em uma firma qualquer. Meus dias se resumem à não me atrasar e não se atropelada por carros dirigidos por pessoas mais apressadas do que eu. Vivendo uma vida completamente diferente da que eu vivi na minha infância em Roxheller. Nestes últimos dias eu me peguei pensando na minha infância naquele lugar e como todas as memórias parecem desvanecer como se fosse um sonho recente. Sempre que eu penso demais sobre a minha infância, sem nem sequer perceber, eu passos horas sentada em uma cadeira ou deitada na minha cama apenas encarando o teto vazio, como se estivesse hipnotizada por memórias. Antes de sair de lá, eu nunca tinha notado como aquelas pessoas eram estranhas, como aquele lugar era bizarro e assustador. Como parecia que uma espécie de hipnose rodeava o lugar para todos ignorarem as estranhezas e bizarrices de lá. Até hoje eu mesma não sei dizer se aquele lugar era ruim ou bom, eu simplesmente não consigo sentir nada daquele lugar, exceto, talvez, uma nostalgia.
    Por isso eu escrevo para você, não sei se é para encontrar algum conforto deste pedaço estranho da minha vida ou se é na esperança de você conseguir resolver o mistério de Roxheller, mesmo assim, escrevo.
    Nos últimos dias, estou tendendo a pesquisar mais sobre aquele lugar e me aprofundar cada vez mais na sua história inconstante. Roxheller não é um lugar muito antigo e nem muito novo, e pela própria natureza reclusa daquela comunidade, não há muitos registros sobre o lugar. E também não há como contatar muitas pessoas por lá, a tecnologia não é abundante em Roxheller. Não usávamos computadores ou celulares, mas tínhamos energia e outros pequenos luxos da sociedade moderna. Não havia necessidade ou utilidade em ter algum veículo, exceto uma bicicleta, quem sabe. As ruas de Roxheller eram todas tortuosas, estreitas e nenhuma era asfaltada. O motivo? Dávamos muita importância à natureza. As únicas árvores e plantas que matávamos eram aquelas necessárias. E realmente dizíamos “matar” no sentido mais cru e frio da palavra. Acreditávamos que dizer “cortar” uma árvore era dar pouca importância para aquela vida, afinal de contas, estávamos mesmo “matando” algo, esse pensamento era natural para mim lá. Por conta disso, as estradas costumavam desviar de árvores e plantas, o rio que cortava a comunidade não tinha ponte e todas as casas eram decoradas com vinhas e flores trepadeiras que não ousávamos matar. Quando de fato precisávamos matar algo para tal, era sempre um evento importante. Tínhamos os nossos açougueiros, os homens que matavam as árvores e plantas quando se precisava. Lembro de ver aqueles homens em ação quando criança, por algum motivo, lágrimas escorriam dos meus olhos, mas eu não me sentia triste, meu pai me olhava com o seu olhar frio de sempre e parecia satisfeito quando eu demonstrava pesar ao ver a cena cruel daquela execução. Eu ainda conseguia me lembrar do pensamento que eu tive naquele momento, eu não chorava pelas árvores, mas sim pelos homens que estavam às matando, eles estavam condenados. Na época eu não tinha notado, afinal de contas, não prestávamos muita atenção uns nos outros. Mas aqueles homens que mataram aquelas árvores desapareceram na floresta e nunca mais foram vistos. Se você perguntasse para qualquer um o que tinha acontecido com eles, eles apenas responderiam: “Ah, eles? Se perderam na floresta.” e apenas isso, uma vida por outra vida, eu suponho.
    O mais próximo que tínhamos de uma prefeitura era a casa do meu pai, que a comunidade passou a aceitar como uma espécie de líder. Ninguém chamava ele por títulos, apenas pelo seu primeiro nome, mas havia respeito na postura daqueles que o cumprimentavam com tons monótonos e neutros de sempre, a pouca emoção que nós demonstrávamos. E acredite em mim, não haviam registros ou documentos naquela comunidade. Se alguém morresse era possível que ninguém notasse. Não haviam cemitérios lá, mas estranhamente, eu nunca vi nenhum corpo por onde quer que eu andasse. Quando chegava a hora, as pessoas simplesmente se perdiam na floresta, era essa a fantasia que eu vivia. Como criança, eu conhecia a morte e como ela poderia ser terrível e cruel, mas eu não sentia medo dela, ela vinha como algo natural e ela não parecia ser tão terrível para nós, afinal de contas, quando o momento chegasse, eu iria simplesmente me perder na floresta, não parecia um destino tão terrível.
    Você precisa entender que eu tenho pouquíssimas memórias reais daqueles tempos. Somado ao fato de que eu era apenas uma criança, aquele lugar era estranho e não me permite lembrar muito dele. As memórias começaram a voltar aos poucos conforme eu conduzia a minha pesquisa individual, e até hoje elas não voltaram por completo. Durante os meus lapsos de memória, eu nunca consegui identificar se era uma memória real ou um sonho que eu tive na época, então elas são pouco confiáveis. Tendo esses fatos em vista, fica mais fácil entender o motivo de eu ter seguido esta investigação apesar do que eu irei contar. E antes de contar sobre a minha memória/sonho mais estranho e bizarro e sobre o encontro que eu tive, preciso contar o que eu sei e o que eu encontrei sobre Roxheller durante o meu tempo de pesquisa.
    Até onde eu sei, Roxheller não é uma cidade nem um distrito de nenhuma outra. Sempre nos considerei uma comunidade. Para falar a verdade, Roxheller nem sequer é o nome da nossa comunidade, este é apenas o nome do bosque onde morávamos, nunca tivemos um nome propriamente dito. A única conexão que a comunidade tinha com o mundo exterior era uma estrada de terra que se conectava à uma avenida nos arredores do bosque, por onde carros passavam tranquilamente. Mas a estrada era tão sutil e estreita, que é fácil nem sequer notar que existe um caminho ali. Eu nunca vi nenhum morador de Roxheller, além de mim, sair daquele lugar. Quem sabe alguns dos que “se perderam na floresta”, na verdade foram embora. Quem sabe eles ainda dizem uns para os outros que eu me “perdi na floresta” também. Até mesmo a minha ida para fora daquele lugar é de natureza estranha, e se conecta com o tal “encontro” que eu citei anteriormente.
    A floresta em si não parece ter nada demais, existe um único rio cujo nome eu não consegui encontrar que atravessa o bosque. Este é outro fato estranho, eu me lembro muito bem em todas a memórias mais vívidas da minha infância que existia um rio que atravessava a nossa comunidade, ele era longo e seguia o seu caminho até para fora do bosque. Apesar disso, nenhum mapa ou satélite que eu procure indica a existência de qualquer rio que atravesse aquele bosque. Este é um mistério que eu nunca resolvi. Existem relatos de colonizadores e pequenas fazendas se estabelecendo aos arredores de Roxheller na época da colônia. Estranhamente, não existe nenhum relato de ninguém sobre o bosque, eu apenas sei que era próximo por conta da localização mapeada em mapas antigos, era o mesmo lugar, mas em nenhum relato havia a existência de um bosque antes. As montanhas são as mesmas, as planícies continuam as mesmas, mas Roxheller, nunca foi citado.
    Até mesmo o nome Roxheller é digno de um mistério, ninguém sabe por que se chama assim, e nem sequer qual a origem deste nome. Na época para mim, parecia ser o sobrenome de alguém, então eu fui atrás desta pista apenas para encontrar uma história da época da guerra de secessão. Nesta história estranha, um tal Capitão Roxheller comandava tropas que saíram de Boston e marcharam para servirem de reforços contra os Confederados. As tropas nunca chegaram ao seu destino, uma batalha foi perdida pelo fato de que os reforços nunca chegaram, na época os comandantes se preocuparam com uma emboscada inimiga em território considerado seguro, mas seguindo o caminho que a tropa deveria fazer, não havia rastros de batalha. Curiosamente, um dos soldados foi encontrado. Segundo os relatos de um médico de campo que procurou tratar o soldado, ele não parecia ferido ou doente, mas morreu no dia seguinte. O único relato que o jovem soldado deu quando perguntado sobre o que aconteceu era que eles se perderam na floresta.
    Você deve imaginar como isso fez eu me sentir. Aqueles foram os últimos momentos da minha investigação, que eu supus que já tinha ido longe demais e já estava me aterrorizando. Mas eu não conseguia tirar aquilo da minha cabeça, e para ser honesta, até hoje eu não consigo. Eu dormi com estes mistérios enrolados na minha cabeça como raízes, foi quando aquela memória, ou talvez, aquele sonho veio a mim.
    Para ser clara, eu não sonhei com aquilo nestes últimos dias, esta era uma memória que eu tenho da minha infância, um dos meus últimos momentos em Roxheller. O motivo de eu também considerar que seja um sonho ficará claro quando eu contar. Até hoje eu nunca entendi o que de verdade aconteceu naquele dia.
    Eu lembro que era um dia chuvoso, pois eu acordei com o som da água batendo contra as folhas e do cheiro de terra molhada me cumprimentando. Eu fiz minhas tarefas matinais com a rotina de sempre e nenhum dos meus pais estava em casa no dia. Eu não estranhei, por algum motivo, apesar de eles sempre estarem em casa quando eu acordo. O tempo passou conforme eu observava a chuva que nunca parecia que iria parar, a comunidade estava vazia, todos escondidos em suas casas da chuva forte. Eu não sei se foi o fato de que os meus pais estavam demorando ou se eu apenas queria dar um passeio pela comunidade, mas eu saí de casa, pés descalços com apenas um vestido fino claro me cobrindo. Eu comecei a caminhar, agora ensopada pela chuva com a ponta do meu vestido suja de lama conforme eu andava pela comunidade. Por algum motivo eu lembro de ter fechado os olhos, para aproveitar a caminhada e a chuva contra o meu rosto, eu só consegui abrir eles minutos mais tarde e eu estava dentro da floresta. Apesar de ser uma situação assustadora para uma criança, eu não temi, eu apenas continuei a caminhar à esmo até ter uma visão deslumbrante, mas ao mesmo tempo, assustadora.
     Notei que um cervo com gigantescas galhadas e olhos que brilhavam em branco através da névoa me encarava ao longe. Talvez fosse o fato de eu ser uma criança em um ambiente tão hipnotizante, mas algo me fez acreditar que aquelas galhadas daquele servo subiam aos céus e desapareciam na neblina para sempre. O cervo se aproximou e eu notei que ele tinha presas saindo de sua boca, ele era lindo e agora que estava próximo, seus olhos eram verdes como folhas, mas empalideceram pela neblina e pela chuva.
    - O que uma garota como você faz por aqui, tão longe na floresta? – O cervo me perguntou e eu paralisei. Sim, um cervo estava conversando comigo, por esse mesmo motivo eu acredito que tudo foi um sonho. Mas eu também acredito que possa ter sido realidade, não o fato de um cervo estar conversando comigo, mas eu acredito que, como criança, eu possa ter distorcido esta memória e imaginado toda a conversa na minha cabeça. Então apenas continuarei a história.
    - Estou perdida – Respondi, não parecendo me importar de que um cervo estava conversando comigo e nem pelo fato de que ele parecia estar sorrindo bizarramente com as suas presas estendidas.
    - Perdida, é? Muitos se perderam por aqui, sabia?
    - Eu sei.
    - E qual é o seu nome, garota perdida?
    O cervo perguntou, enquanto me circundava e eu apenas encarava-o, confusa.
    - Como você pode perguntar o meu nome e nem diz o seu.
    De forma bizarra e estranha, o cervo riu e concordou com a cabeça.
    - Acontece, minha querida garota perdida. Que eu não tenho nome, não mais.
    - O que aconteceu com o seu nome?
    - Se perdeu com os outros.
    - Você quer ajuda para encontrá-lo? – Eu perguntei, inocentemente.
    - Não, não – O cervo falou seriamente – O que foi perdido jamais deve voltar, é assim que as coisas devem ser, garota perdida.
    - Mas... Por que?
    - A floresta reivindicou estas coisas. Elas pertencem à floresta agora.
    - Por que?
    - Você faz muitas perguntas, garota perdida. Sabia disso?
    - Mas... eu estou curiosa.
    - Aqui não é lugar para pessoas curiosas. Nem para aqueles que procuram o que foi perdido. Algumas coisas devem sempre permanecer como um mistério, garota perdida.
    - Mas... e se eu quiser saber? – Insisti.
    - Você não deve.
    - Mas e se eu quiser?
    - Então você não pertence à floresta – O cervo disse, finalmente parando na minha frente, com um tom sério e definidor.
    - Eu... não entendo.
    - É assim que as coisas devem ser, garota perdida – O cervo disse em um tom misterioso – Mas como você parece tão ávida, me deixe lhe oferecer uma proposta.
    Interessada, eu parei e comecei a ouvir atentamente o que o cervo iria me falar.
    - Eu posso lhe contar um pouco dos segredos da floresta, o que jaz além das folhas, porém, você nunca mais deverá retornar para cá, pois quando a sua curiosidade vencer, não pertencerá mais à floresta e não será mais uma de nós. A curiosidade vale o exílio?
    - E os meus pais?
    - Nunca mais os verá.
    - E os outros?
    - Ficarão na memória.
    Eu analisei o cervo, começando a crescer na dúvida.
    - Eu não acredito em você. Como um cervo pode me banir da floresta? E apenas por querer saber como ela funciona?
    - Você pode não acreditar. As coisas continuarão sendo como são.
    - Você é mal.
    - Eu? Mal? – O cervo riu novamente – Garota perdida, você não conhece a maldade, não ainda. A maldade vem com a curiosidade, pergunte para os homens lá fora. Eles foram curiosos.
    Em silêncio em permaneci, a minha curiosidade infantil e descrença no cervo estava vencendo o medo inexistente de nunca mais ver ninguém da comunidade. Mas como eu tinha dito, ninguém jamais se esforçou para ser próximo de mim e todos eram distantes lá. Não havia motivo para eu temer o exílio, era o que eu pensava.
    - Sr. Cervo – Eu falei.
    - Sim?
    - Eu quero saber.
    Ele não sorriu desta vez, parecia mais desapontado do que satisfeito como estivera enquanto conversava comigo.
    - Tem certeza? – Ele me perguntou, soou mais como um aviso do que como um pedido de confirmação, uma tentativa infrutífera de me parar, mas ele sabia que ele não tinha esse poder. Se ele não me contasse naquele momento e me negasse o conhecimento, eu apenas iria procurar de outra forma, a curiosidade sempre permaneceria.
    - Tenho – respondi, e eu nunca tive tanta certeza de algo antes. Pela primeira vez, comecei a sentir um arrepio no peito e um nervosismo após completar a minha frase.
    - Pois muito bem – Ele suspirou – Caminhe comigo, lhe mostrarei o outro lado.
    Eu comecei a caminhar com ele, o cervo trotava lentamente através das árvores e dos rasos riachos.
    - Você parece triste, Sr. Cervo.
    - Eu estou, garota perdida.
    - Por que?
    - Por que agora você ficará perdida para sempre – Ele disse, havia pesar em sua voz.
    - O que isso significa?
    - Espero que um dia entenda, garota perdida – Ele falou – As florestas não guardam os segredos que você busca descobrir, os segredos que guardam a floresta.
    - Eu não entendo – Eu falei, esperando que ele explicasse melhor.
    - Eu sei – Ele disse, e foi a última coisa que eu me lembro dessa conversa, dessa memória ou desse sonho. A minha memória mais recente após essa foi eu estando no meio da chuva à noite quando fui encontrada pela minha família adotiva. Essa memória já é viva para mim e não parece mais desvanecida como as outras. Eu sempre contei para eles que meus pais tinham me abandonado por que eu não saberia explicar de onde eu vim ou como eu fui parar ali. Eu jamais saberia explicar isso para ninguém, mas espero que você consiga me entender.
    Eu planejo escrever mais se eu lembrar de mais coisas, como você pediu, mas tem algo que eu preciso fazer depois de tudo isso, apesar de ser contra a sua recomendação. Eu preciso procurar Roxheller mais uma vez. Eu ainda lembro onde é, ainda lembro a pequena estrada de terra que levava à comunidade e acredito que eles ainda estão lá. Preciso entender o meu passado e entender o que tudo isso significa.
    Estarei mandando estas páginas para o endereço que você me indicou em Boston, até agora não entendo por que me pediu para escrever tudo à mão, mas eu aceitei a sua condição. Escreverei mais quando voltar da minha viagem. Apesar de tudo isso, eu ainda acredito que tudo pode ser uma montagem da minha cabeça traumatizada, acredito que tudo pode ser um sonho que as coisas tem explicações razoáveis.
    No final do dia, eu ainda acredito que eu não me perderei na floresta.
10 notes · View notes
filipemduarte · 2 years
Text
A Perdição do Alexandra.
I: “O Mau Agouro”
     Faz algum tempo desde a minha viagem a bordo do HMS Alexandra e não vem como nenhuma surpresa, nem para você e nem para mim, que eu jamais gostaria de recordar o que aconteceu a bordo daquele navio infernal. Eu estou lhe escrevendo este relato hoje, depois de tanto tempo de espera, talvez por que aquela viagem tem assombrado meus sonhos novamente e eu gostaria de algum fechamento a respeito disso. Eu não me iludo ao supor que você poderia trazer paz aos meus momentos nos braços de Morfeu, muito menos esperaria que fosse da sua vontade, misterioso e distante como és. Porém, aquele homem estranho me contou de você, e eu pensei: “Por que não?” e aqui está o meu relato por completo, espero que seja do seu agrado. E se não for, pode jogar estas páginas ao mar ou aos céus como bem entender, essa será a última vez que me torturarei ao ponto de relembrar os acontecimentos daqueles meses. Os piores meses que um homem poderia viver em sua vida.
    Desde o alvorecer de minha juventude eu sabia que o meu ofício seria o de um cirurgião. A Família Rosário, minha família, decidiu desde cedo que esta haveria de ser a minha profissão. Cedendo aos desejos familiares e sem muitas ambições próprias, foi o que eu acabei de tornando. Não pense que eu abominava a decisão que a minha família tinha tomado por mim, muito pelo contrário, eu sempre mostrei certa afinidade pela profissão e sempre tive mais autonomia do que a maioria dos meus irmãos. Eu era um dos mais novos e não tinha pretensão de herdar nada da família, exceto em casos de circunstâncias extremas. E apesar de nunca poder ver muitas heranças familiares no meu futuro, eu também não almejava nada disso, o que me dava certa liberdade em escolher a carreira que eu decidi seguir, mas, para alegrar a minha família que tinha recentemente perdido seu primogênito muito jovem, eu decidi ser cirurgião e estudei em Coimbra para tal.
    Eu não era o mais novo dos seis irmãos, mas era o penúltimo a nascer. Meu irmão mais novo era o jovial Diego, ele pretendia também seguir a carreira que a nossa família decidira para ele, mas queria aproveitar o mundo antes de se afundar nos estudos na terra natal. Já eu, estava marejado pelas ondas do tempo, servia como cirurgião por anos nos institutos públicos e estava começando a ganhar certa reputação respeitável quando ele chegou a mim certa tarde nublada. Diego dizia que tinha acabado de chegar de uma longa viagem da França e que estava cansado, mesmo assim, forçou-se a ir até meu encontro e me fazer a pergunta que queria o mais rápido possível:
    - Irmão – ele começou, com a sua vitalidade no auge e alegria contagiante – Sei bem que não és o mais ávido a viagens. Porém, estes são meus últimos anos de boêmia antes dos infindáveis estudos que hei de mergulhar, fazendo jus aos Rosários, assim como você o fez. E sei bem que você, meu irmão, planeja ausentar-se das coisas boas da vida para garantir a sua reputação como médico. Tendo isto em vista, oferecer-lhe-ei uma proposta! Não, não, escuta-me antes de recusar-me.
    Diego falava bem, mas ainda era inexperiente. Tinha sempre aquele tom insolente que todo jovem confiante carrega consigo, mas também tinha aquela pureza e alegria que somente o caçula poderia oferecer, aquele tom de esperança que me irradiava sempre que Diego estava por perto. Não minto quando digo à plenos pulmões que ele costumava me irritar bastante, mas sempre que Diego estava por perto eu não conseguia evitar de sorrir e me divertir, até mesmo quando ele era criança. Era uma pena saber o destino que lhe esperava nos âmagos da universidade. Eu sabia que os livros e as pressões iriam lhe deixar monótono e brando como fizeram comigo. Lembrava-me muito bem do tipo de jovem que eu costumava ser, e deveria ser por isso que Diego me fazia tão bem como companhia, pois ele me lembrava do jovem que eu costumava ver. Alegre e ambicioso, eu também planejara viajar pela Europa um dia, mas meu erro foi deixar este plano para depois da faculdade, algo que Diego acertara.
    Por estes motivos, não pude deixar de ouvir o que Diego falava para mim, com certa avidez e esperança. Eu carregava uma carcaça de amargura e irritabilidade, mas Diego me aturava e me acalmava, então escutei-o quando ele continuou a falar:
    - Paulino, meu irmão. Que tal uma viagem para a Grã-Bretanha comigo? – Ele disse, alegre. Não minto quando digo que já esperava que ele me convidaria para uma viagem derradeira e de todos os Rosário, sempre fui o mais próximo de Diego, porém, não esperava para a Inglaterra.
    - Estás louco? – Eu exclamei – Não veio da França faz pouco tempo? Não vês a tensão que os homens de Napoleão põem sobre o Canal da Mancha? Qualquer embarcação que tente fazer o trajeto é afundada, isto não é aventura meu caro Diego, é navegar para a prisão, ou melhor, para a morte!
    - Tens calma, meu querido irmão! Não pretendo cruzar o Canal da Mancha, não te preocupes, e muito menos te convidaria para zarpar à morte comigo! Este rosto delicado de seu irmão jamais iria bradar frases de piratas caribenhos para ti, não, jamais! Tenho muito da vida ainda, e por mais que aches impossível, planejo derrotar os amargores da vida acadêmica ou morrerei tentando! Mas afundar no Atlântico? Isto não está nos meus planos.
    - Então – Eu deixei um riso escapar entre os meus lábios – Planejas ir voando como um pássaro?
    - Por mais que o pensamento me divirta, não! – Ele exclamou com a alegria e animosidade de sempre, e sorriu especialmente após ver a minha expressão de confusão – Planejo fazer uma viagem de visita às colônias, no nome dos Rosário, de lá, um capitão amigo meu, o excelentíssimo Sr. William Knight, irá navegar através do Atlântico até as terras inglesas, jamais veremos as cores das águas do Canal da Mancha!
    - Que plano audacioso, assumo. Mas como pretende fazer isso, de fato? Eis vários contrapontos: Primeiro, como irás conseguir a influência para fazer tal viagem até as colônias? Segundo: Achas mesmo que estas viagens clandestinas são seguras? E terceiro: Como pretendes sair de lá?
     - Ora meu ávido irmão. Você está muito afastado das políticas externas, não é? Achas mesmo que o Império Inglês vai ceder à tais sanções? Mesmo que venha do cônsul francês? Não, não! Os ingleses jamais se permitiram murchar e secar desta forma, estas viagens clandestinas, como falas, são tão comuns que tu nem imaginas. E não somos os únicos a prover tais viagens, há rumores de que os Russos também continuam com tal empreitada. Além disso, nosso pai tem uma longa amizade que nasceu em Lisboa com o Marquês de Aguiar, não será um problema a nossa travessia... Isto sim é a aventura que me faltava!
    Considerei por um tempo a proposta de meu irmão, pois ele de fato falava sério com aquilo. Por influência da nossa família com o Vice-rei, ele iria agendar uma viagem até as colônias e de lá, contava com a sua amizade para conseguir subir a bordo deste navio inglês clandestino como uma passagem para a Grã-Bretanha. Era um plano ousado e desnecessário, mas estas duas palavras definiam Diego de Rosário muito bem. Naquele momento, eu pensei em como eu deixara a minha juventude e senso de aventura se esvaírem pelos meus dedos como areia. E como eu tinha me tornado aquele adulto monótono e sem cor que antes jurava que jamais seria. Eu lamentava a morte da alegria de Diego antes mesmo dela acontecer. A verdade era que eu lamentava a morte da minha própria ousadia e juventude, que tinha sido executada e eu não fiz nada para aproveita-la.
    Munido por um senso de reconquista, como um cristão avançando contra os mouros, levantei-me de minha cadeira onde antes eu jazia sentado e passivo para apertar a mão de Diego e concordar com a sua empreitada. Meu coração batia forte pelo senso de rebeldia e os próximos dias eu passei para acalma-lo enquanto meu irmão descansava de sua longa viagem anterior e se preparava para a próxima. Eu também me preparei.
    Passarem-se semanas para Diego conseguir preparar tudo que precisava. Ele tinha acabado de receber uma carta assinada pelo tesoureiro do Vice-rei, permitindo a nossa chegada no Rio de Janeiro a bordo de um navio português que iria zarpar de Lisboa na próxima terça. Diego também conseguiu escrever ao seu amigo inglês, o ousado capitão William Knight, que iria navegar a bordo do HMS Alexandra até a sua terra natal, o próprio capitão disse em carta que ficaria feliz em receber o seu amigo e o irmão, especialmente após saber que eu era um cirurgião. Ele também comentou que o cirurgião deles havia sucumbido à uma trágica doença quinzenas atrás e que o Alexandra e a sua tripulação clamavam por um médico adequado e não somente o enfermeiro que tinham a bordo, do qual ele não falava em bom tom sobre.
    Marcamos de nos encontrar no Rio de Janeiro daqui há alguns meses e assim, eu e Diego partimos de Lisboa na terça-feira onde fizemos uma viagem até o Brasil com nossos ânimos levantados. Foram meses de viagem tranquila para nós. Éramos bem quistos e Rosário era um nome que sempre chamava atenção em embarcações portuguesas, por isso, fomos bem tratados até chegarmos à costa das colônias.
    Não passamos muito tempo por lá, assumo, pois a nossa viagem já estava atrasada devido à algumas interferências climáticas que seguraram o nosso navio e adiantaram o Alexandra. Quando soubemos que o capitão estava esperando por nós, apenas requisitamos alguns dias de descanso e não tivemos muito tempo para absorver a paisagem natural e paradisíaca da colônia portuguesa.
    Era um sábado de agosto quando alcançamos o porto onde o Alexandra estava ancorado. Naquele momento, o capitão estava nos esperando junto ao seu primeiro oficial e ao contramestre. Cercados por uma tripulação que estava terminando de reabastecer o navio, eu e o meu irmão nos aproximamos. Enquanto Diego cumprimentava o seu velho amigo, eu encarava o HMS Alexandra por algum motivo que até hoje desconheço.
    Não era nada além de um navio mercante comum, seu casco estava velho e maltratado pelos intemperismos do tempo e do clima, mas estava em boas condições. As velas brancas estavam recolhidas assim como a bandeira inglesa que estava escondida para evitar suspeitas. Os marujos subiam com caixas, barris e até mesmo animais vivos como bois, porcos e galinhas a bordo por uma prancha de madeira que conectava o caís com o convés superior. Eu via enquanto lentamente um grupo de homens puxavam uma corda com o apoio de uma polia para descer vários barris e caixas amarradas até o convés de carga. Os mastros do Alexandra subiam e o casco rangia estranhamente. Não tinha nada demais no navio, era mais uma embarcação comum como qualquer outra, porém, algo me fazia borbulhar de tensão. Eu lia as palavras escritas no caso anunciando o nome do navio e aquilo me trazia um mal agouro, por um segundo eu hesitei e nem escutei o meu nome sendo chamado pelo capitão pela primeira vez, pela segunda vez eu virei o rosto para ele, provavelmente estava com uma expressão assustada ou confusa, pois o homem corpulento e barbado riu de mim. Foi quando eu pude analisa-lo melhor.
    O capitão Knight era um homem muito largo e corpulento, apesar da sua baixa estatura vertical. Tinha uma larga barriga que quase escapava de suas roupas e seus poucos cabelos grisalhos também escapavam por um chapéu que usava. Ele tinha uma longa e mal cuidada barba levemente grisalha e seus ouvidos eram alongados e tortos. Eu também consegui notar que uma de suas orelhas estava mutilada, com um corte sutil como se um pedaço de carne estivesse faltando. O homem também era cego de um dos olhos, que era branco como névoa.
    Sua voz, porém, soou exultante e grossa. Digna de um capitão de verdade, dava para notar que, apesar da sua aparência maltratada, o homem podia impor respeito como capitão quando desejasse.
    - Então! – Ele sorriu enquanto ria junto de seus companheiros – Tu deves ser o tal Paulino de Rosário! Ouvi muito bem do senhor pelas cartas do meu nobre Diego. És o doutor, certo?
    - Correto, senhor – Eu afirmei enquanto inclinava a valise que carregava comigo. O capitão e o contramestre olharam para ela e sorriram em concordância, pareciam satisfeitos com a minha presença. O mesmo não pôde ser dito pelo primeiro oficial, que continuava a me encarar com certo desprezo que eu não entendia muito bem. Antes do próprio capitão continuar, o primeiro oficial levantou-se para me encarar e falou para mim:
    - Dentro do Alexandra, doutor – Ele disse cuspindo contra o caís – Você deve chamá-lo de capitão, ouviu bem?
    Eu encarei o homem com os olhos semicerrados. Já lidei muito com tipos agressivos e mal encarados então não tinha tanto medo dele. Já o meu irmão, apaziguador como sempre, se entrepôs entre nós antes que eu pudesse falar qualquer coisa e disse:
    - Mas é claro, Sr. McKay! – Diego falou enquanto me empurrava para trás – A bordo do seu navio, chamaremos todos como deve ser! Afinal de contas, somos passageiros, não?
    - Certo... – Ele sussurrou enquanto pretendia falar mais, porém, o capitão interviu.
    - Sente-se, Henry – E o primeiro oficial obedeceu, depois de me encarar uma última vez – Ah, e não se preocupe com isso, senhores Rosário! O meu primeiro oficial aqui, o Sr. Henry McKay é um homem da marinha, sabe? Ele aprecia muito a cadeia de comando e isso pode ser um assunto com ele.
    - Entendo – Eu falei, olhando para Henry – Já nós, não somos. Não espere que nos comportemos como tal, Sr. McKay – Falei, encarando o homem que provavelmente já teria avançado em mim se o capitão não estivesse por perto. Por fim, virei-me ao capitão – Mas agradeço a sua hospitalidade, capitão. E devo retribui-la com respeito.
    Apertei a mão de William Knight, que sorriu para mim e continuou falando.
    - Acho que está na hora de conhecer o resto da tripulação, não? Ah, quase ia me esquecendo! – O capitão sorriu enquanto apontava para o outro homem sentado à mesa. Enquanto Henry McKay tinha um porte militar adequado, era largo e forte, além de alto e mal encarado com cabelos negros. O outro homem que o capitão estava apontando era diferente. Era um esguio velho que tinha óculos de meia-lua e parecia tremar ao segurar qualquer coisa. Já não tinha mais cabelo e a idade era óbvia.
    - Este é o Sr. Woods, o contramestre. Mas gostamos de chamar ele de Velho Louco Woods! – O capitão deu uma risada que o contramestre acompanhou com certa dificuldade e Diego fez jus ao seu instinto jovial e riu junto – Já é velho demais para falar, mas sabe cuidar da Alexandra como ninguém! E sem precisar emitir uma palavra, ademais, ele tem o assistente dele, o rapaz Charlie, que faz a parte de falar e gritar para os marujos para ele. Mas é claro, se o Velho Woods não estiver por perto, acho que nenhum marujo trabalharia direito.
    - Não entendo – Eu olhei para o velho senhor – Por que o chamam de louco?
    - Há! Por que o apelido Louco? – O capitão exclamou como se estivesse acostumado a responder essa pergunta – Por que ele já tem mais de setenta anos, se recusa a pisar na terra e suas últimas palavras antes de ficar completamente quieto era que morrerá no mar e quer ser jogado ao mar quando o dia chegar.
    O capitão deu um sorriso quando o velho Woods concordou com a cabeça. E continuou:
    - Por isso, o Louco! O mais louco de nós – O capitão falou com orgulho – Todos nós sempre zarpamos achando que será a última viagem de Woods. Muitos de nós morremos antes mesmo de Woods encarar a morte. O homem não adoece e as desgraças parecem evitar ele de propósito. Aposto que será a mesma coisa – Por fim, o capitão puxou um enorme charuto, acendeu-o com uma pederneira e deu uma tragada profunda que fez a fumaça subir aos céus limpos – Enfim! Está um belo dia para zarpar, deixe-me lhe apresentar o resto destes canalhas e à minha querida Alexandra! Também devo-lhe mostrar onde ficará hospedado e onde exercerá o seu ofício.
   Nos encaminhamos de atravessar o caís. Notei que McKay ainda olhava para mim irritado, mas decidi ignorar o olhar enquanto seguia o capitão que mancava. Meu irmão Diego me seguia e começamos a subir a bordo do navio que balançava com as marés tranquilas enquanto os homens ainda faziam força para puxar os carregamentos para o convés de carga.
    Enquanto o capitão falava, eu senti a sua voz ficando abafada e todos os sons ficaram mais baixos, por algum motivo, não conseguia tirar os olhos daqueles homens levantando o elevador de cordas para uma próxima remessa de caixas e barris. Eu os vi levantando caixas e tendo dificuldade com um barril em específico. Eles começaram a puxar com o apoio das polias, parecia ser uma carga pesada.
    - Está pesada demais! – Um marujo inglês gritou – Senhor, acho que devemos aliviar!
    - Deixe de ser frouxo! – O oficial com um forte sotaque germânico gritou para eles enquanto gesticulava agressivamente com as mãos – Já estamos atrasados e ainda quer nos atrasar mais!?
    - Mas...
    - Schweigen! Não quero ouvir mais de você! – O oficial bradou – Continue descendo a carga!
    Os marujos não tiveram outra escolha senão obedecer, mas eu os vi sofrendo para puxar enquanto a carga pendia e a corda fazia um barulho desagradável. Eu conseguia sentir o desastre prestes a acontecer, eu me virei para tentar avisar ao capitão, por isso eu perdi o começo da tragédia. Mas quando eu ouvi o barulho alto de algo rompendo e os gritos dos marujos eu consegui ver o final do evento. Vi que a corda tinha rompido e que os homens gritavam, um deles tinha perdido o equilíbrio e estava sendo puxado junto com a carga. O oficial pulou para trás e estava caindo no chão quando eu ouvi um:
    - Cuidado! Charlie, não!
    - Cuidado embaixo!
    - A carga!
    Tudo ao mesmo tempo.
    Eu avancei um passo quando ouvi o som do estardalhaço e vi o homem sendo puxado com força em queda livre. Alguém tentou agarra-lo sem sucesso e em questão de segundos todos estavam em volta do buraco olhando para baixo e vendo o estrago que tinha acontecido.
    Enquanto o capitão gritava com o oficial responsável, eu empurrei alguns marujos e vi o que estava acontecendo. Toda a carga estava estilhaçada lá embaixo, madeira e caixas tinham caído e existiam seda, arroz e outras coisas espalhadas. Uma caixa de vinho tinha batido contra a parede ao lado e o vidro estava todo estilhaçado pelo chão. Junto às caixas haviam dois corpos. O do homem que tinha caído, o seu pescoço estava quebrado e o seu torso estava totalmente mutilado por cacos de vidro e pela queda, o homem não emitia mais nenhum som. Já o segundo homem estava vivo, eu conseguia ouvir os seus gritos de longe enquanto ele colocava as mãos no rosto, suas pernas estavam quebradas pela queda e ele tinha um pedaço de madeira perfurando a coxa. Todos olhavam para a situação perplexos enquanto eu rapidamente descia as escadas com a minha valise na esperança de ajudar o homem em agonia.
    Quando eu finalmente cheguei até o convés de carga, alguns homens tentaram impedir, mas um outro gritou:
    - Este é o médico, seus idiotas! Deixem-no passar!
    E lá estava eu, ajoelhado perto daquele homem mutilado. Ele tinha tido muita sorte ou muito azar. Pois o outro tinha morrido da queda imediatamente enquanto este ainda estava vivo apesar de seus ferimentos. Notei que depois de algum tempo, os gritos cessaram e ele desmaiou pela dor. Consegui finalmente ver o seu rosto e notei que ele estava completamente repleto de cacos de vidro, desfigurado de uma maneira terrível, coberto de sangue e vinho.
    Aquele pobre coitado só seria o começo do mau agouro que cercava a viagem que o HMS Alexandra iria ter. E eu deveria saber, desde o início, que aquela travessia estava amaldiçoada e que jamais chegaríamos à Grã-Bretanha como esperávamos.
18 notes · View notes
filipemduarte · 2 years
Text
Por Cima do Ombro.
    Tudo isso aconteceu dois anos atrás, eu tinha recentemente deixado de trabalhar em uma clínica psiquiátrica de uma firma relativamente conhecida para começar a minha própria clínica. Os motivos da minha mudança são irrelevantes para o meu relato, mas pode-se dizer que foi uma mistura de insatisfação com a esperança de um sonho, e esse sonho começou tão rápido quanto terminou. Temo que nunca mais poderei exercer a minha área novamente, pois estou tão atormentado que todas as noites ainda tenho pesadelos daqueles dias infernais. Além disso, toda noite eu ainda temo pela minha memória.
    Hoje, eu vivo sozinho e não tenho muitos amigos. Deixei de exercer a psiquiatria para trabalhar em empregos que pagam apenas o necessário para sobreviver. Eles pagam pouco então eu tenho que trabalhar muito, mas é apenas uma desculpa para não socializar ou procurar pessoas que lembrarão de mim. Me afastei da minha família e vivo a vida de um fantasma. Mas isso nunca teria acontecido se eu não tivesse descoberto tudo aquilo naqueles dias, e se eu não tivesse escolhido aquele prédio para montar a minha ambiciosa clínica.
    Eu precisava de um lugar para começar. Escritórios isolados eram muito caros para alguém com pouco orçamento que nem eu, tinha guardado despesas para este momento, mas não poderia gastar tudo em um escritório que eu não poderia bancar por mais de dois meses, e nem podia confiar que o destino que trouxesse muitos clientes para que eu pudesse me sustentar sozinho. Ao invés disso, eu escolhi um apartamento próximo ao centro da cidade. Não era um local exatamente no centro, por isso, era até barato para alugar. E também não era longe, era bem localizado para um iniciante. Naquela época, eu achava que tinha dado sorte por encontrar um lugar tão bom, mal eu sabia que estava completamente errado.
    Quando fui junto de um homem que trabalhava no local para ver o escritório pela primeira vez achei um lugar confortável e espaçoso. Era no quinto andar de um prédio de sete andares e ficava apenas duas portas do elevador. Eu decidi alugar e não demorou mais de uma semana para estar mobiliado e preparado para receber clientes. O começo foi lento, mas isso eu já esperava. Porém, já na segunda semana eu tinha um cliente, era um velho senhor taxista que só tinha horários disponíveis à noite. Sem poder escolher muito, eu aceitei-o como meu cliente e ele passou a frequentar a minha clínica semanalmente. Como eu era a única clínica de psiquiatria no prédio cheio de outros escritórios, não tive muita competição. Outro golpe de sorte, pois é uma profissão crescente e há muitos por aí criando as suas próprias clínicas e escritórios.
   Passou-se um mês até que eu percebesse a primeira coisa estranha, que de início não me alarmou muito. Foi em determinado momento quando o meu cliente noturno já tinha se despachado, eu estava arrumando minhas coisas e me preparando para ir embora quando escutei uma batida na porta. De início, me irritei um pouco, era tarde e eu estava cansado. Mas imaginei que poderia ser um segurança ou alguém que trabalhava lá. E mesmo se fosse um cliente em potencial, eu não tinha muita opção para recusa-lo, mesmo àquela hora da noite. Caminhei até a porta, mas antes, chequei no espelho se a minha gravata estava bem alinhada. Quando eu abri a porta, não havia ninguém.
    Notei que a batida tinha não tinha sido única e quando olhei pelo corredor, estava completamente vazio, apenas iluminado pelas luzes artificiais solitárias do prédio. Dei de ombros e fechei a porta atrás de mim, foi quando ouvi a batida de novo. Abri a porta e nada. Dessa vez, me assustei. Sou um homem relativamente supersticioso e acredito muito facilmente em coisas sobrenaturais e ocultas. Dessa vez eu chamei por alguém, perguntei para saber se alguém estava ali. Mas não tive resposta. Pelo medo, eu peguei as minhas coisas, abri a porta e verifiquei se não tinha ninguém. Não tinha. Então eu parti, tranquei a porta atrás de mim e desci pelo elevador apressadamente. Naquela noite mais nada de estranho aconteceu, mas eu estava ansioso. Mais tarde, já em casa, eu ri de mim mesmo e fui dormir com a consciência apenas levemente agitada. Eu não sabia, mas era apenas o começo das estranhezas.
    Mais semanas se passaram com nenhum acontecimento estranho, porém, com o passar de mais dias, pequenas coisas vieram a acontecer comigo de vez enquanto. Algumas me confundiram e outras me assustaram. Mas no final, eu fiquei intrigado por um mistério à minha soleira. Mas antes de dizer o que fiz a respeito, gostaria de dizer algumas coisas que aconteceram e que despertaram a minha curiosidade inata.
    Certo dia, encontrei um papel debaixo da minha porta quando cheguei para trabalhar. Parecia levemente empoeirado, então alguém tinha deixado ali na noite passada e aquela carta tinha ficado ali a noite toda. Peguei e entrei no escritório, mas quando abri, não tinha nada escrito. Era apenas uma folha em branco.
    Outro dia, eu estava na fila para reabastecer o refrigerante em uma lanchonete do prédio, eu juro que senti alguém encostando no meu ombro e falando: “O senhor poderia me dar licença?”, mas quando eu olhei para trás, não havia ninguém. Quando eu perguntei para a moça que trabalhava na lanchonete ela me disse que eu era o último naquela fila já havia alguns minutos. Também senti esse toque no ombro outras vezes enquanto caminhava pelos corredores do prédio e nunca havia ninguém. Essas outras ocasiões, onde eu estava sozinho, eu me assustava e apressava o passo.
    Um dia, ao chegar no escritório, encontrei a porta entreaberta quando eu tinha jurado que havia trancado na noite passada. Nessa ocasião, eu chamei o segurança que entrou no escritório e verificou as câmeras. Ninguém tinha levado nada e não havia rastros de ninguém no escritório, porém, parecia que alguém realmente forçou a fechadura. Porém, quando olhamos as câmeras, parecia que a porta tinha se aberto sozinha, como se o vento tivesse empurrado uma porta destrancada. E para sanar a minha consciência, vimos também a filmagem onde eu saí do escritório, trancando a porta atrás de mim. Após isso, apenas trocaram a fechadura do meu escritório e ficou por isso.
    Quando eu olho para trás, vejo que essas cenas deveriam ser alarmantes o suficiente para me fazer ir embora e trocar de prédio. Mas naquele momento existiam muitas condições que me mantiveram àquele lugar. A primeira delas era que esses eventos eram muito espaçados, eles aconteceram em um espaço de um ano e não eram nada recorrentes. Segundo que era um lugar bom demais para ir embora por um medo que eu considerava supersticioso na época. E terceiro, eu não estava tão bem assim de clientes para conseguir bancar outro lugar, que poderia ser mais caro e não tão bom quanto este. Essas foram algumas das condições que me mantiveram arraigado ali.
    Porém, algo derradeiro aconteceu, se não me engano, foi em outubro do ano passado. Esse foi o momento que as coisas começaram a dar muito errado, e tudo começou de uma maneira muito simples, começou com algo que eu pensava ser um simples e hodierno erro.
    Em um ano o meu progresso tinha sido considerável para alguém tão novo. Eu já tinha meus clientes regulares e tinha consultas quase todos os dias naquela época. O meu preço era acessível para a localização que eu tinha e para o trabalho que eu fazia, afinal de contas, me considerava um ótimo profissional apesar da pouca experiência. Eu tinha métodos de organizar os meus atendimentos: Eu separava aqueles meus clientes regulares, dos clientes possivelmente regulares – ou seja, aqueles que ainda estavam começando comigo e poderiam ou não se manter na minha clínica – e dos atendimentos novos. O mais comum deste ramo é alguém vir até você apenas uma vez e não voltar mais, essa era a minha lista mais essencial, pois eu precisava agradar essas pessoas para manter uma clientela mínima, e eu tinha conseguido até aquele momento. Eu dava bastante crédito à minha organização e confiava nela, até o dia que ela me falhou. Não foi nada demais, apenas, talvez um erro de escrita ou um esquecimento momentâneo.
    Já era sexta quando eu tinha terminado o penúltimo atendimento do dia, estava relativamente cansado, mas ainda assim, pronto para o último da semana. Quando eu alcancei a pequena prancheta onde eu colocava a folha com a tabela de todos os atendimentos do mês, eu chequei o último nome do dia, tendo em vista que não havia mais ninguém na sala de espera e o escritório estava vazio. A priori eu pensei que talvez o cliente tinha desistido e não viera mesmo após marcar o compromisso, mas quando eu fui olhar para o último nome, simplesmente não havia nada escrito lá. Eu olhei, estranhando, eu não costumava esquecer de escrever o nome do paciente e eu lembro muito bem de marcar um outro paciente para a próxima segunda pois o meu último horário sexta estava ocupado. Mas ocupado por quem? Foi o que eu me perguntei. Passei meus olhos pela folha, não havia número, nome ou detalhes, mas havia algo escrito no endereço do paciente, estava escrito:
    “No outro escritório de psiquiatria ao final do corredor”.
    Como eu disse desde o início, o maior motivo do meu sucesso era justamente o fato de que eu era o único escritório de psiquiatria no prédio, e eu saberia se tivesse outro pois ele seria o meu concorrente direto, especialmente ao fim do corredor. Era fato de que eu não prestava muita atenção aos meus vizinhos de escritório tanto, mas eu não deixaria passar outro consultório.
    No começo, eu achei bizarro e pensei que alguém estaria aprontando uma peça comigo, mas logo lembrei de todos os eventos estranhos que eu tinha presenciado até então naquele prédio e todos vieram a mim em um frio na espinha. De algum modo eu sentia que essa única mensagem misteriosa poderia estar conectada com as coisas bizarras que andavam acontecendo comigo ao longo do ano.
    Como eu não tinha mais clientes para aquela noite, eu decidi sair mais cedo. Peguei as minhas coisas, assegurei-me de trancar a porta atrás de mim e fui até o elevador para ir embora. Mas eu reparei que não conseguia tirar aquela frase da minha cabeça. Me peguei olhando de soslaio para o corredor mal iluminado e antes que eu pudesse perceber, estava lentamente caminhando, mesmo após o meu elevador ter chegado. Eu sabia que era uma péssima ideia e o ato de rebeldia fez o meu estômago revirar de nervosismo, mesmo assim, eu continuei andando pelo corredor.
    Aquele corredor parecia que não acabava nunca, já estava frio e estava de noite então as luzes eram artificiais e baixas, a maioria dos consultórios e escritórios estavam fechados àquela hora e o vento que escapava pelas janelas do corredor batiam contra mim de leve enquanto eu andava. Quando finalmente cheguei no final do corredor, meu estômago me deu uma pontada quando eu vi a porta de um consultório que parecia abandonado e esquecido. Eu pensei que estava vendo um fantasma. Como eu nunca tinha reparado aquela porta ali? Não era como se eu passasse regularmente por ali, mas eu já fui ali algumas vezes e nunca tinha reparado nesta última porta, nesse décimo quinto escritório. O que não faz sentido, todos os andares tem quinze escritórios, como eu nunca reparei que só haviam quatorze? Isso é, até agora. Eu estava de pé na frente da décima quinta porta esquecida. E nela lia: “Consultório de Psiquiatria do Dr.” mas não havia o nome do tal doutor.
    Eu tremi e admito que não sei quanto tempo eu fiquei parado na frente daquela porta processando o que estava vendo. Demorou um tempo até a curiosidade superar o meu medo. Afinal de contas, o que poderia haver lá dentro? Eu estendi a minha mão para a maçaneta, na vaga esperança de estar trancado, mas as minhas esperanças me traíram por que a porta estava apenas encostada, com um ranger fraco ela revelou o que parecia, para mim, um escritório comum. Estava mofado e empoeirado, claro. Mas não tinha nada fora do ordinário, apesar de abandonado e levemente assustador. Eu entrei e liguei as luzes, ainda funcionavam.
    Andei pelo escritório abandonado e, de início, nada parecia fora do comum, mas algo me incomodava. Investigando atrás do incômodo, ou da resposta por trás do que tinha acontecido comigo mais cedo, eu notei que estava sempre procurando por um nome. Quem era que era o dono desse escritório? Mas eu não conseguia encontrar essa resposta em lugar nenhum. Todas as prescrições, documentos, anotações ou identificações que eu encontrava estavam vazias e desprovidas de uma identidade certa, haviam até espaços em branco onde era para estar escrito alguma coisa. Olhei entre os vários livros das estantes. Seja lá quem trabalhava ali, gostava de ter vários livros técnicos da profissão na estante, mas também tinha vários livros de literatura. Todos sem o nome do dono, eu procurei.
    Eu encontrei algumas anotações, provavelmente dos pacientes que o doutor atendeu, mas seria antiético ler, então eu evitei naquele momento, mas algo me fez retornar para essas anotações como um ato desesperado de tentar descobrir algo. Esse algo foi quando eu achei que finalmente tinha encontrado alguma coisa útil. Olhando para a lixeira eu acabei encontrando uma identidade jogada fora. Achei que seria perfeito, não tinha como evitar de ter um nome ou uma foto na identidade. Ela estava meio amassada, mas eu tirei-a de lá, não estava suja pois estava apenas com outros papéis amassados. E o mais bizarro, você já deve imaginar, a identidade estava completamente limpa. Sem foto, sem nome, sem datas ou números.
    Foi então que eu decidi me voltar para as anotações do tal doutor. E foi essa a decisão que iria me arrepender até hoje. Mesmo assim, comecei a ler:
    “15 de agosto de 2018. Paciente.... Alegou insônia e leves graus de paranoia ao descrever que algo o seguia, mas que não era homem ou mulher. Desenvolveu nictofobia, o paciente relata que só consegue adormecer quando o seu quarto está completamente iluminado e não há nenhum canto sombrio. Abaixo, o seu relato transcrito:
    - Doutor, eu... Acho que consigo descrever para o senhor agora.
    - Isso é ótimo....! Que tal começarmos pela situação, você diz que acontece somente em determinadas situações, não é?
    - Sim, apenas no escuro. Eu não preciso estar totalmente no escuro para enxergar ele, basta um pequeno espaço escuro... Um vão entre os corredores, um beco mal iluminado, aquela escuridão debaixo da mesa... Basta um pequeno espaço.
    - Você disse “ele”, tem alguma razão para defini-lo assim?
    - Não exatamente, eu não sei se “ele” é sequer adequado... Está mais para “aquilo”.
    - Elabore.
    - Como eu posso dizer isso, doutor... Eu nunca vi aquilo de verdade. Está sempre no canto do meu olho, por cima do meu ombro.
    - Você consegue colocar em outras palavras?
    - Talvez... Talvez seja aquela sensação de que você está sendo observado. Só que intensificada, sabe? Quando você sente que tem alguém te observando, que tem alguém alcançando a sua mão para você... E você começa a se virar para olhar atrás... E no canto do seu olho, naquele pequeno canto escuro que você tinha esquecido que estava lá... Você vê algo se mexendo, como se as sombras estivessem se esticando... E quando de repente... Você olha e não tem mais nada lá...”
    Eu engoli em seco. O que era aquilo? Eu já vi vários relatos de alucinações e paranoia antes, mas aquilo me parecia levemente familiar, isso me fez sentir um frio de medo inexplicável e tudo que poderia me confortar naquele momento era continuar lendo para entender mais. Quem sabe, no fim daquelas páginas estaria um conforto científico que me diria que o paciente sofria de alguma alucinação, que remédios serviram à sua causa e curaram a sua paranoia, ou que tratamentos tinham ajudado na sua recuperação. Porém, não havia mais registros daquele paciente e o mais esquisito de tudo naquele relato era que o paciente também não havia nenhum nome registrado.
    Eu alcancei a próxima página e continuei a ler:
“24 de setembro de 2018. Paciente.... Apresentou intensos graus de paranoia e alucinações vívidas. Demorou semanas para conseguir um relatório coeso em que o paciente não apresentasse altos graus de estresse para contar o que sentia apropriadamente. Os devidos medicamentos foram dados, alguns acalmaram os seus ânimos, mas não aparentavam ajudar a sua paranoia ou alucinações, quando em melhor estado, o paciente apresentou a seguinte alegação, transcrita:
    - Tinha braços, doutor... E olhos também, eu vi no canto do meu olho.
    - Você conseguiu dar uma olhada no que você viu?
    - Não exatamente... Por que ele sempre desaparecia quando eu olhava para ele... Mas ele tem ficado mais ousado.
     - Ousado?
    - Antes ele só me observava... Era só aquele frio, sabe? Que a gente acha estranho, mas ignora... Começa pelas sensações esquisitas... As coisas estranhas... Aí você percebe que está olhando para as sombras tempo demais, com medo de algo sair delas. Você começa a evitar lugares escuros e o dia trás um alívio inexplicável... É quando você começa a ver coisas no canto do seu olho quando você não percebe que tem uma sombra por perto. De início, você não sabe o que é, como se o seu cérebro não processasse direito... Mas depois fica mais claro o que é... São olhos, doutor... Não são de nenhuma cor ou formato que eu conheça, até por que, eu nunca consigo lembrar muito bem como eles são exatamente... Mas são olhos, por que você se sente sendo encarado... Aí você começa a notar os olhos sobre você.
    - Antes, você disse que tinha braços. O que isso quer dizer?
    - Ah, isso. Isso é quando já está perto do final. É quando as sombras começam à se estender e à te alcançar... Ele quer algo, doutor. Eu não sei o que, mas quer. Antes... Antes eu ainda tinha esperanças, por isso eu estava com medo e desesperado... Mas agora... Agora eu já aceitei.
    - Sabe, há tratamentos para alucinações assim. Isso é a sua mente pregando peças em você e...
    - Me desculpa, doutor... Não é sobre você isso e nem sobre alucinações... Os seus remédios não vão fazer efeito... Eu já estou começando a esquecer também.”
    Após isso, não havia mais relatos sobre o tal paciente, parecia ser um dos últimos. Haviam mais papéis, mas eles estranhamente relatavam vários casos similares. Aos poucos, o doutor ia perdendo o seu profissionalismo e as anotações pareciam mais saídas de um diário do que de um relatório profissional.
    Segundo as anotações, ele fizera pesquisas sobre casos similares e não conseguiu encontrar nada. Com o passar das pesquisas, o doutor relatara que tinha esquecido o motivo de ter começado a pesquisar sobre esses casos até que viu os relatórios de seus pacientes mais antigos e leu alguns destes que eu tinha lido agora. O doutor relatou o choque que sentiu ao ver que os nomes dos pacientes não estavam mais preenchidos, como se ele tivesse esquecido de colocar, todos os transcritos que citavam o nome dos pacientes já não haviam mais nada do que um espaço em branco. Às vezes, ele via folhas completamente vazias onde era para estar a continuação dos relatórios destes mesmos pacientes. Foi então que começou para ele.
    O doutor relata que a vida dele tinha se tornado mais solitária. Ele tinha menos clientes e saía menos do escritório, onde passara mais tempo pesquisando e estudando do que fazendo qualquer outra coisa. Perdeu contatos com colegas e com a família e depois de meses ele se tornara uma sombra do homem que já foi.
    O relato que mais me interessa é o relato de 2020, que é o seu último relato e é exatamente na mesma época que eu cheguei ao prédio. Então, eu comecei a lê-lo:
    “5 de janeiro. As coisas estão muito estranhas comigo esses últimos dias. Assumo que não saio muito do escritório, mas isso não dá motivos para ser ignorado pelos meus vizinhos que fingem nem ouvir meus cumprimentos ou reclamações, exceto, é claro, quando eu falo mais alto ou repito. E percebi que precisava voltar a trabalhar direito por que uma nova clínica se instalou no mesmo andar que eu. Talvez eu passe lá para dar uma olhada mais tarde, mas pelo que eu vi, era jovem e iniciante, não deve ser um problema tão grande.
    18 de janeiro. Talvez eu esteja sofrendo também de alucinações... Aquelas pesquisas tem me afetado de maneira exaustiva que começo a sentir que existe alguém me observando assim como os outros pacientes sempre relatavam. Deve ser a exaustão, foi o que pensei de início, mas agora estou começando a ver alguma coisa no canto do meu olho e isso me incomoda muito.
    2 de fevereiro. Eu fui até aquele consultório novo, decidi unir o útil ao agradável. Precisava de prescrições e não posso me automedicar, ao mesmo tempo queria dar uma olhada no consultório que me roubou o meu único cliente de antes. Mas... Quando eu fui até o escritório daquele garoto quando ele terminou de atender... Ele não parecia me perceber, o que diabos está acontecendo? Bati diversas vezes na porta, o garoto até mesmo saiu! Mas decidiu me ignorar e ir embora! Será que estava me desmerecendo ou... Tem algo acontecendo?
    11 de fevereiro. Resolvi deixar uma carta embaixo da porta do consultório daquele garoto, se não funcionava eu ir pessoalmente lá, então talvez uma carta funcionasse. Mas até agora eu não tive resposta... Será que ele jogou fora?
    21 de abril. Isso não pode ser normal. As coisas estão piorando cada vez mais. Eu não recebo mais clientes, as pessoas não conseguem mais nem perceber que eu existo... O que está acontecendo comigo? As alucinações tem piorado... Eu já consigo ver aqueles olhos me encarando quando está tudo escuro... Eles são frios, mas... Eu não consigo descrever...
    24 de abril. Eu vi aquele garoto na lanchonete lá embaixo. Eu tentei chamá-lo, mas ele não pareceu me perceber. As pessoas estão passando a me ignorar por completo. Mas elas ainda conseguem me sentir ou me escutar, eu acho, mas me ignoram... Não é que eu esteja invisível, eu sei disso. Mas é como se eu fosse uma pessoa tão misturada entre a realidade rápida da sociedade, que as vezes as pessoas esquecem que eu estou ali.
    9 de junho. Eu estou começando a perder a minha cabeça... Aqueles olhos continuam me encarando na escuridão, malditos sejam! Ninguém nem sequer mais olha na direção do meu escritório ou sequer mais notam quem eu fora... Não consigo encontrar mais solução. Eu tentei entrar no escritório daquele garoto e força-lo a me ver e a me ajudar. Não foi difícil forçar a fechadura, eu tive tempo para tentar. Passei horas lá dentro, sentado na cadeira que ele não poderia evitar de olhar. Quando os seguranças chegaram e junto com o garoto começaram a vasculhar o escritório e não me viram, eu notei que as coisas tinham saído do meu controle. Agora eu sou invisível? Esquecido por todos? E a minha família? Preciso, talvez, encontra-los e fazer algo! Talvez eles possam me ajudar. Devo largar tudo aqui, não me importo mais com essa carreira desgraçada ou com esse prédio amaldiçoado... Encontrarei os meus! Eles nunca esqueceriam de mim, nem com um milhão de anos passados!”
    Estava lá, tudo perfeitamente detalhado. Todos os eventos que aconteceram comigo, até mesmo os que eu nunca havia contado para outra alma viva. Ler aquilo arrepiou até mesmo a minha alma e eu saí daquele escritório um homem diferente. Como eu poderia considerar aquilo real? O que tinha acontecido com aquele doutor e o que tinha acontecido com todos aqueles homens? Não é preciso dizer que eu não dormi àquela noite, aqueles acontecimentos trespassaram-se pela minha cabeça incessantemente.
    Os dias passaram arrastando-se com dificuldade. Eu falei com as pessoas que trabalhavam no prédio sobre aquele escritório maldito e elas acharam estranho não terem percebido e nem ter visto o lugar anunciado para alugar antes, dias depois, eles removeram tudo de lá e colocaram para alugar propriamente. Falei com outros colegas e logo percebi que eu não era o único à não notar o escritório quinze antes. Tentei até descobrir mais, porém, a única coisa que soube é que a empresa responsável pelo aluguel do escritório não conseguiu localizar o antigo dono para devolver mobílias ou documentos. As coisas acabaram leiloadas ou doadas. Meses depois, o escritório foi alugado e passou a ser somente mais um escritório comum.
    Demoraram semanas para eu sair daquele prédio. Sempre que eu olhava para aqueles corredores, eles me davam calafrios inexplicáveis. Sempre que eu ia trabalhar, lembrava da história daquele homem cujo nome foi esquecido. E sempre pensava em mais um último mistério que nunca foi resolvido. Será que ele acabou voltando para o prédio? Pois ele nunca chegou a escrever a ação de ter ido até o meu escritório e ter escrito aquilo na minha lista de atendimentos, eu não lembro de ter marcado com ninguém aquele atendimento e nem de ter escrito aquelas malditas palavras. E se ele ainda estivesse no prédio depois de todo esse tempo? Só que agora, esquecido à um nível que ele fosse apenas um resquício de existência. Será que presenciou a minha jornada de descobertas terríveis? Será que viu eu destruindo seus trabalhos e mobílias sem ter a capacidade de fazer algo a respeito?
    Não pude deixar de sobressaltar às sombras e não pude deixar de temer que algo aparecesse no canto do meu olho ou por cima do meu ombro. Virei um homem atormentado e deixei de exercer a minha profissão por medo.
    Me recuso a trabalhar durante a noite e nunca durmo no escuro, pois tenho medo que aqueles olhos apareçam para mim também, um dia. Tenho pesadelos com coisas me observando na escuridão e com braços longos e negros de sombras estendidas vindo me alcançar para tomar de mim a minha existência.
    Apesar de atormentado, ainda não me encontro esquecido. Escrevo este relato pois notei que mesmo depois de esquecido, aquele doutor ainda tinha deixado rastros de sua vida passada e que somente o seu nome sumia de suas escritas. Por isso, eu espalhei o meu nome por estes parágrafos que escrevi, a fim de garantir que sempre que alguém lesse isso, saiba que eu não fui esquecido.
    Quem sabe, com o tempo eu perca o meu medo e a minha paranoia. Quem sabe esta carta me traga alento e conforto apesar dos terrores silenciosos que presenciei. E quem sabe haja um dia em que eu não tema olhar por cima do ombro.
1 note · View note
filipemduarte · 2 years
Text
O Desaparecimento de Edgar Nascimento.
    Talvez, a melhor maneira de começar este arquivo seja explicando o contexto por trás dele, e não tem como resumir melhor do que o fato de este ser um único texto compilando uma série de arquivos, declarações e anotações sobre o desaparecimento de um Edgar Nascimento, um policial investigador responsável pelo caso do homicídio de Oscar Lacerda Castro. E sobre como uma possível lenda urbana faça parte desta narrativa.
    Antes de começarmos, devo dar algumas explicações sobre como me encontrei nesta situação. Meu nome não chega a ser importante para esta investigação, exceto, é claro, caso eu venha a desaparecer de maneira semelhante à Edgar, o que eu penso ser uma grande possibilidade, e o motivo você entenderá com o passar dos parágrafos. Recentemente eu me tornei o arquivista responsável por catalogar casos resolvidos e arquivados da Polícia Civil de Fortaleza, onde acabei me deparando com um trabalho interminavelmente bagunçado e igualmente interminavelmente entediante. Eram horas que se passavam remexendo documentos e rearranjando casos negligenciados que o antigo arquivista tinha deliberadamente esquecido de arrumar. Como eu era mais esperançoso e cheio de responsabilidade civil na época que comecei, coloquei em mim a responsabilidade de deixar todos aqueles papeis e documentos em ordem. E quando eu digo papéis, de fato quero dizer papéis. Talvez a única vez que um computador tenha entrado naquela sala empoeirada seja quando eu trouxe para lá, de onde eu escrevo esta compilação neste exato momento.
    Passaram-se meses antes de eu encontrar um caso que me deixou ligeiramente intrigado, pois eu, ainda almejo – ou melhor, almejava, tendo em vista que agora não sei muito bem o que fazer ou sequer se estarei vivo no dia seguinte – ser um investigador eu mesmo, por isso procurei um emprego dentro da delegacia onde poderia aprender direto da vontade, acreditava eu. Tal caso que eu falo é o caso do desaparecimento misterioso de Edgar Nascimento, um policial investigador que trabalhava neste mesmo prédio onde hoje eu escrevo o posfácio da minha curta vida.
    Existem milhares de casos de desaparecimentos, mas este me intrigou por uma única maneira, por conta do único suspeito ser uma suposta lenda urbana. Claramente, minha mente curiosa mergulhou nesta história que pretendo contar hoje em detalhes e passei muito tempo atrás destes rastros, aproximadamente um ano se passou desde o começo da minha pesquisa, me encontro agora em dezembro de 2022 e o natal já passou, todos estão de férias e eu decidi que seria mais do que justo passar os últimos momentos da minha vida na sala de arquivos onde tudo começou.
    Agora, explicarei como irá funcionar esta compilação, e explicarei rápido, pois tempo não é algo que esbanjo. As anotações poderão parecer confusas, mas todas consistem em relatos, transcritos, diários e pesquisas acerca do caso. Algumas serão anotações que eu mesmo fiz, mas quando não forem, eu irei deixar claro. Além disso, eu coloquei as mãos também no diário de Edgar, no qual a maioria das informações foram retiradas. Espero que apreciem este último esforço, seja lá quem estiver lendo esta minha carta exagerada de despedidas, pois vamos começar.
    Escrevo esta declaração no dia 31 de dezembro do ano de 2022, da delegacia da Polícia Civil de Fortaleza, no Brasil. Edgar Alves Nascimento, um homem de 42 anos, desapareceu por volta do final de dezembro do ano de 2012, eu estimo que provavelmente foi no dia 31, o último do ano, assim como agora, os motivos ficarão claros ao longo do relato. Edgar escreve no começo do seu diário, isso em agosto de 2012:
    “Alguns meses atrás eu recebi um novo caso. Um tal Oscar Lacerda tinha desaparecido próximo ao Centro, perto da Imperador, a situação inicial era estranha, por que os últimos relatos que tínhamos recebido era do seu desaparecimento, passamos dois dias inteiros procurando pelo homem, aparentemente era algum tipo de deputado do interior de Sobral que visitava a capital à trabalho, quer dizer, era o que seus amigos... Outros deputados... Falavam, mas era óbvio que não queriam dizer que o homem escapou de seus afazeres no interior para satisfazer suas vontades carnais na capital. O fato é que encontramos o seu corpo em um bairro distante dali e o caso passou a ser um caso de homicídio, mas a verdade é que nenhum legista conseguiu avaliar muito bem como o homem tinha morrido. Não tinha nenhum osso quebrado, nenhuma perfuração externa ou interna, nenhum hematoma ou marcas de agulha (isto é, recentes). Também não tinha nenhuma droga exagerada no corpo, somente as que ele utilizava diariamente, em nenhuma dose grande demais para ser um problema letal. Fora seu problema com drogas, não tinha nenhum rastro de doenças ou problemas de saúde, parecia que o homem tinha simplesmente caído ao chão e deixado de viver. Classificamos como homicídio pois não haviam cartas ou intenções suicidas, mas também não haviam testemunhas, armas do crime ou suspeitos. Era o caso mais bizarro que eu já tinha presenciado em toda a minha vida. Acontecem muitas coisas aqui nessa cidade diariamente, de longe é uma cidade segura, mas nada como isso. Sem rastros, sem testemunhas, sem nada. Bem, era o que eu pensei na primeira semana.
    Depois de longas horas de esforço e estresse, meu parceiro acabou achando uma pista, uma única pista. Por volta da meia noite de um dia antes do que Oscar tinha sido declarado desaparecido, um carro estranho foi registrado passado em alta velocidade em uma avenida próxima do local onde encontramos o corpo. O carro era estranho por que não tinha placa. Ou melhor, tinha uma placa, mas estava completamente vazia. O carro era de um modelo antigo completamente negro com vidros negros também. Era impossível ver alguém pela câmera de trânsito, e acabamos descobrindo também que era impossível rastrear o veículo. Não tinha nenhum boletim de ocorrência para este modelo, e o carro era tão antigo que não deixava muitos rastros de compra. Descobrimos que o carro era um Volkswagen Santana Quantum que deixou de ser produzido em 2003, talvez só colecionadores de carros tinham esses carros registrados. Até fomos atrás deles, mas não deu em nada.
    Lembro de ter passado noites em claro procurando algo sobre aqueles carros, revendo as listas e os depoimentos. Era muito provável que esse carro tenha sido vendido ilegalmente, mas há quanto tempo? E para um carro naquele estado, que estava novo e sem nenhum arranhão, e com aquela idade, precisava ser renovado. Mas não encontramos nenhum registro de nenhum carro com essa descrição que tenha sido renovado de formas legais e nem ilegais, mesmo com alguns contatos, isso não deu em nada. Eu comecei com uma teoria que talvez o nosso suspeito fosse um mecânico, e ele pudesse fazer os reparos sozinho, foi aí que o meu parceiro começou a me olhar estranho. Eu gosto muito do Johnatan, e eu sei que ele só pensava o melhor pra mim, ao me ver obcecado pelo caso ele foi ate o nosso capitão que me pediu pra deixar o caso de lado. Mas eu simplesmente não podia, eu tinha investido tanto tempo nesse caso e eu tinha acabado de ter uma ideia nova, eu não podia largar assim. Eu conversei com o capitão e ele me deu mais uma chance no caso, mas era para ir com calma, palavras dele. Ir com calma! Aquele homem poderia estar se distanciando agora, em um carro que não podíamos rastrear. Acionei os outros para ficarem de olho neste modelo andando pelas ruas, fui atrás de amigos meus que viviam em outras cidades próximas para me avisarem se souberem de alguém assim no interior também. Dias se passaram e nada, eu já estava ficando louco quando eu recebi uma ligação de um informante meu. Não sei o que pode acontecer com o meu diário, então não vou escrever o nome dele, e digo de antemão, ele nunca foi um dos informantes mais confiáveis, mas aquele tom na voz dele, no meio da noite que me acordou do meu sono agitado, aquele tom não poderia mentir, e por que ele mentiria? Não tinha nada a ganhar com isso e nem pediu nada, o que não era do seu feitio. Ele tinha me dito que tinha avistado um carro negro sem placas sair de uma favela na calada da noite, ele me disse várias coisas, mas entre elas (em seu tom aterrorizado que eu tentei acalmar), ele tinha me dito que o carro não fazia nenhum barulho mesmo em alta velocidade, dizia que o carro não parecia ter sombras, como se as luzes do poste atravessassem ele, dizia também que não dava para ver nada dentro do carro e que ele desaparecera na mesma velocidade que aparecera. Naquele momento eu desacreditei daquele homem, mentiroso como era e cansado como eu estava, mal absorvi as informações, eu simplesmente gritei com ele por querer me incomodar no meio da noite e desliguei. No dia seguinte, o meu informante desapareceu, até emiti um alerta, mas ninguém estava interessado o suficiente para encontrar ele. Disseram que ele tinha simplesmente se metido com as pessoas erradas e quando eu falei para o Johnatan o que aconteceu noite passado, ele me disse que talvez o cara só queria a minha ajuda e estava desesperado pra fugir da merda que ele fez, e como todos sabiam que eu estava atrás do infeliz carro negro, ele pensou em me enganar com isso. Devo dizer, a teoria do Johnatan não era tão absurda naquele momento e o cara é um bom investigador então eu comprei, mas aquilo não saía da minha cabeça.
    Eu passei mais algum tempo investigando sobre aquilo, mas estava começando a deixar o caso esfriar quando recebi a notícia. O corpo do meu informante tinha sido encontrado, morto exatamente da mesma forma que Oscar. Para evitar histeria, o capitão abafou o caso para a mídia e encarregou outros policiais, claramente mais inferiores (e com menos reputação) para o caso, apesar das minhas reclamações. A esse ponto, o capitão tinha começado a se estressar comigo, mas eu não podia deixar isso acontecer, mesmo sem o apoio do Johnatan eu comecei uma investigação própria, fui atrás de câmeras de trânsito, mas o nosso querido carro negro parecia ter aprendido com a lição passada e não tinha nada. Eu comecei a me questionar se talvez o carro não tinha sido apenas uma coincidência no caso do Oscar e se, talvez, eu estivesse seguindo uma pista falsa esse tempo todo – apesar da estranheza. Mas a minha ideia mudou quando eu encontrei uma testemunha. Um senhor mais velho, seu José Silveira, dono de um bar que fica até tarde da noite veio até mim na delegacia uma semana atrás, naquele momento ele me explicou que foi me procurar por que soube que eu estava atrás de um carro negro, quando eu me mostrei interessado e o convidei para conversar em uma lanchonete na esquina da avenida, ele me disse que, quando fechava o seu bar – que ficava apenas alguns quarteirões de distância do local onde o meu informante tinha sido encontrado – ele tinha visto um vulto negro e rápido passar pela rua, de inicio culpou à visão que não era das melhores, por que pensara ser um carro mas não fazia nenhum som ao se mover, quando o seu José foi até a rua, ele viu um carro negro, com a placa vazia e as janelas negras virando a esquina rapidamente, sem fazer som. Ele também adicionou que tinha algo estranho sobre aquele carro, mas não soube me explicar. Eu cheguei a perguntar se o carro parecia com a foto tirada pela câmera de trânsito, até cheguei a mostrar a foto para ele, mas o seu José disse que não era nada assim, pois saberia, ele vira muitos carros assim há mais de dez anos atrás e o carro que vira parecia ser mais atual.
    Quando o seu José foi embora, eu fiquei com uma pulga atrás da orelha. Por que aquele relato coincidia tanto com a última ligação que o meu informante tinha me dado, por que alguém usaria um carro exatamente igual ao carro tirado pela câmera? De inicio eu achava que o carro antigo era para evitar rastreio, mas agora não fazia sentido. Por que ele trocou de carro? Será que sabia que estávamos atrás dele? Era possível por que eu não fiz muita questão de esconder meus objetivos ao procurar por aquele carro, porém eu tinha tomado o máximo de cuidado para perguntar para as pessoas mais suspeitas sobre aquele carro no final da minha investigação, então a informação de que eu estava atrás daquele carro deveria ser nova para o suspeito, mesmo assim, eu não consegui encontrar nada desde o primeiro dia em que comecei a procurar.
    Claro, existia milhões de possibilidades, talvez ele tivesse percebido que tinha passado pela câmera no dia ou qualquer coisa dessas, mas assumo que naquele momento eu estava transtornado. Primeiro, pelo fato de que aquele caso só ficava mais e mais bizarro e complicado. E segundo, pelo fato de eu ter ignorado e desligado na cara do meu informante, provavelmente, minutos antes dele ser morto, isso era culpa minha.
    Fiquei transtornado naqueles dias e fiz tudo para ganhar novas evidências, cheguei à inclusive sair procurando sobre um carro que não fazia sons ao se mover. Era uma tecnologia impensável para os dias de hoje, talvez existisse algo no exterior, mas até chegar aqui, era complicado demais.
    Foram nesses últimos dias, no auge da minha paranoia investigativa que eu ouvi um rumor de rua, uma lenda urbana. Era sobre um homem que chamavam de Entregador Fantasma. Diziam que existia esse homem misterioso, que subia em um carro fantasma que não fazia sons ao se movimentar, que era completamente negro como as sombras, e que ele realizava qualquer tipo de entrega em qualquer lugar. Mas diziam que apenas poucos conseguiam o contato desse homem e disseram que não era sempre que ele aparecia, mas que ele sempre fazia o seu trabalho, sem atrasar ou reclamar.
    Fiquei paranoico, de início eu realmente pensei que tivessem inventado essa história para me atormentar, mas fui atrás de várias outras fontes, que não conheciam umas as outras, e todas contavam a mesma história. Claro, com detalhes diferentes e tons diferentes. Alguns falavam apenas de um motorista fantasma, outros diziam que era um espírito que vingava aqueles que sofreram acidentes, e outros diziam que era assassino de aluguel morto vivo. Mas a maioria se mantinha na palavra entregador, por algum motivo que eu não entendo até agora.
    Claramente, quando o capitão notou que eu faltava muito o trabalho e que estava negligenciando meus deveres ele veio falar comigo. Quando expliquei o que tinha encontrado e se revoltou e me afastou temporariamente, para o meu bem, ele disse.
    De qualquer forma, aqui estou eu, afastado do trabalho, mas não consigo descansar um segundo sem pensar nessa maldita história. De vez enquanto, eu fico andando de carro à noite, na esperança de encontrar esse tal motorista fantasma ou entregador fantasma, seja lá o que for. Mas nunca encontro nada.
    Talvez seja só uma história mesmo, e talvez a minha paranoia e obsessão tenham me tomado e eu transformei aqueles relatos em realidades na minha cabeça. De qualquer forma, planejo me acalmar por um tempo e voltar ao trabalho assim que a minha licença terminar. Talvez seja melhor deixar essa besteira de lado e me concentrar em coisas que realmente existem.”
    Esse foi o fim do primeiro e maior registro escrito por Edgar em seu diário. Após aquele dia, as primeiras passagens são mais calmas e ele relata uma diminuição nas suas patrulhas noturnas por volta de setembro, até que para totalmente em outubro, no mesmo mês, ele fala que voltou ao trabalho e os registros são mais espaçados quando antes eram diários, parece que voltou a trabalhar no final de outubro e mal tem registros em novembro. Mas isso muda em dezembro. Porém, antes de seguir para alguns dos últimos registros de Edgar, devo fornecer algumas informações de minha própria pesquisa, pois mostrar o registro agora pode ser um choque.
    Segundo relatos de Johnatan Pereira, o policial que era parceiro de Edgar na época e que se aposentou depois do desaparecimento do seu parceiro, ele tinha voltado totalmente a si quando voltou a trabalhar em outubro, parecia normal como sempre e até pegou alguns casos que o faziam ficar horas até tarde na delegacia, fazendo papelada, que era algo que antes detestava. E também, que para compensar, Edgar tinha decidido não tirar férias naquele ano e passar dezembro trabalhando também, mas Johnatan não o fez, ele tirou férias e viajou para Belo Horizonte quando tudo aconteceu.
    Eu consegui a informação, segundo a secretária da delegacia, que trabalha aqui até hoje, a senhora Bruna Guimarães, que o último dia que ela viu Edgar foi no dia 26 de dezembro, era após o natal e ela lembra bem que tinha ficado para trabalhar pois não queria ficar em casa com a família após as festas. Ela disse que tinha conversado com o Sr. Edgar por um tempo, e que tinha interesse nele, por isso o prendeu até depois da meia noite para conversarem sozinhos. Ela também disse que aconteceram outras coisas após a conversa e que não quis entrar em detalhes, que também parecem ser irrelevantes ao caso. Todavia, ela dissera que Edgar estava perfeitamente normal, apesar de cansado, quando saiu, ela tinha ficado até mais alguns minutos e voltou para casa tarde da noite em seu próprio carro, motivo pelo qual negou um convite de carona vindo de Edgar. No outro dia ela tentou ligar, mas Edgar não atendeu, caia sempre em caixa postal e ela ficou tão irritada que arremessou o celular pela janela.
    De acordo com as câmeras do estacionamento da delegacia, existem registros de Edgar entrando em seu carro por volta do momento relatado pela Sra. Guimarães, o que dá veracidade ao seu relato. Edgar cumprimentou um dos policiais que fazia guarda do lado de fora, infelizmente, não fui capaz de conseguir um registro dele, mas duvido que fizesse alguma diferença. Logo em seguida, foi embora na direção da sua casa. Nem uma hora mais tarde, uma câmera de trânsito registrou o carro de Edgar em alta velocidade em uma avenida próxima, saindo do caminho que levava para a sua casa e indo para os limites da cidade. A mesma câmera, segundos antes, registrou um outro carro seguindo em alta velocidade para a mesma direção, um Chevrolet Ônix 2012 negro com as janelas escuras e com a placa em branco. E que fique registrado, o carro de Edgar era um Volkswagen Jetta. Não há mais registros de Edgar naquela noite, então prossigamos para o seu último registro no seu diário, que não tem data, mas que provavelmente foi escrito no dia 26 de dezembro:
    “Eu vi. Eu não sei o que eu vi, mas eu vi... Ele tá vindo atrás de mim, eu sei disso. Se você estiver lendo isso, por favor, acredita em mim! Eu encontrei aquele carro, aquele maldito carro. Aquele carro desgraçado. Era verdade, era tudo verdade. Ele não faz nenhum som, ele parece ser feito de sombras e metal que range, e é rápido como o vento. Eu fui atrás dele, por que eu não conseguia acreditar nos meus olhos. Por que eu fiz isso, por que? Eu o persegui por... Não sei quanto tempo, parecem que foram horas. Nós saímos da cidade, era tudo mato ao redor... Eu consegui alcançar ele e consegui virar o carro. Bati nele com tudo e ele tombou no encostamento da rodovia, mas o carro não queimou ou fez nenhum tipo de barulho apesar de amassar como um carro comum. Quando eu saí do carro para ver quem estava dentro, eu... Eu notei que o carro era estranho... A luz do meu farol parecia atravessar o carro, mesmo tombado. Ele não projetava nenhum tipo de sombra, NENHUMA! Eu dei um passo para trás, mas algo começou a se mover, saindo de dentro do carro tombado, primeiro eu fraquejei, mas por instinto eu corri até o meu carro e peguei a minha arma, quando eu voltei para o local aquela... Coisa... Já tinha se levantado. Eu não sei se estava confusa ou esperando eu fazer algo... Mas eu apontei a minha arma e ameacei de atirar, ela não pareceu ligar, começou à andar na minha direção enquanto eu tremia, mesmo antes dela aparecer na luz do farol eu conseguia perceber que aquilo não poderia ser humano... Ele andava esquisito, como se não estivesse acostumado a andar e... Eu não ouso repetir o que eu vi... Era terrível, a pior visão que eu já vi na minha vida inteira... Eu gritei para ele parar, mas ele não parava... Então eu atirei e atirei. Depois, eu corri para o meu carro sem saber o que tinha acontecido... Eu não quero saber... Eu voltei para casa... Eu não devia ter feito isso. Eu não devia ter feito isso. Eu preciso me esconder, ele nunca vai me achar. Não tente me procurar, não tente. Essa carta é um aviso. FICA LONGE DAQUELA COISA, ENTENDEU? LONGE...”
    O registro por escrito continua, mas é impossível transcrever rabiscos e palavras sem sentido aparente. Quando elas têm sentido parecem mais xingamentos e repetições das mesmas palavras do que algo coerente. Esse foi a última coisa do diário de Edgar. Segundo os policiais que investigaram Edgar na época, ele ficou sem entrar em contato por um bom tempo e ninguém conseguiu alcança-lo. O seu celular desapareceu, ninguém encontrou. Em sua casa, encontraram registros de que ele saiu às pressas. Um detalhe importante, Edgar tinha mania de marcar todo o dia que se passava com um “X” em seu calendário, o último dia marcado é o dia 25, deixando mais claro que após o incidente, ele deixou de se incomodar com o hábito.
    Há relatos de Edgar em outros lugares através desses últimos dias até o dia 30. O homem não desapareceu por completo, câmeras registram a sua passagem por estabelecimentos, aparentemente para comprar comida e outras coisas. Em todos os registros ele parece um homem insano. Um ocorrido no dia 29 de dezembro mostra que Edgar entrou em uma briga com um homem no meio da noite em um mercado, a vítima da raiva de Edgar era um transeunte que vestia roupas pretas, ele diz que foi ameaçado e agredido pelo homem que saiu correndo logo em seguida, os policiais acabaram encontrando o seu carro no dia 30, mas perderam-no de vista quando Edgar largou o carro e desapareceu na noite. Segundo os policiais que tentaram o perseguir, ele parecia gritar “Fiquem longe” e “Você não vai me pegar também”.
    Ainda há um último registro, porém, não confiável, de testemunhas oculares que dizem ter visto um homem de aparência similar na rodovia fora da cidade. Depois do dia 31, não há mais nenhum registro no mundo que comprove a existência de Edgar Nascimento no ano de 2013 para frente. Ele não deixou rastros e nem foi encontrado em mais nenhuma outra cidade do país. Nem em câmeras ou com testemunhas. Por volta de fevereiro de 2013, o caso foi arquivado e ele foi declarado como desaparecido, segundo o policial responsável pelo caso, fugiu por conta própria e deve ter morrido sozinho no interior, onde ninguém pôde encontra-lo. Eu acredito que a verdade seja um pouco mais sinistra que isso.
    Fazendo minha própria pesquisa sobre o caso, dez anos depois do ocorrido e agora com um acesso mais sólido à internet, e é claro, com o conhecimento para fazê-lo, eu encontrei várias pessoas por aí que relatam o caso deste “Entregador Fantasma”. Mas esses relatos aumentam e diminuem conforme o tempo, não por acaso, neste ano, eles têm ficado extremamente comuns. Exatamente dez anos depois do ocorrido com Edgar. E que fique claro, nada e eu digo, absolutamente nada, existe sobre casos similares depois daquilo, pelo menos, até o ano de 2022, dez anos depois, onde há mais casos de testemunhas que falam ter visto um carro que não fazia som e que era completamente negro, por mais que não haja vítimas como antes.
    Indo atrás desta pista, e tendo em vista que o carro registrado por Edgar que o tal motorista tinha usado no começo das investigações do policial, logo antes (ou durante) a morte de Oscar, era um carro ativo por volta de 2002 (dez anos antes do ocorrido com Edgar), eu resolvi ir atrás desses incidentes levando em conta um espaço de tempo de 10 anos. Em 2002 há os relatos mais antigos dessas lendas urbanas, elas envolvem principalmente sombras estranhas e existe um vídeo de uma qualidade muito questionável gravando um carro, o vídeo tem um áudio terrível que mistura vozes das pessoas que estão gravando com um vento forte. O vídeo mostra uma rua de Fortaleza à noite e um carro negro virando uma esquina distante. Apesar dos meus melhores esforços, não há nenhum som de carro no vídeo.
    Eu também encontrei registros esporádicos similares em 1992 e 1982. Para trás, as coisas ficam mais complicadas, não encontrei nada em 1972 ou 1962. Checando dados muito antigos de jornais do interior de 1952, houve um caso em que a polícia rodoviária tentou multar um carro que passara pela rodovia em alta velocidade durante a noite, mas nenhum morador, nem mesmo os que moravam próximos à rodovia e estavam acordados no exato momento registrado pelo policial que estava de vigia, ouviram o som de qualquer carro passar.
    Outro detalhe sobre os casos que eu encontrei em 1992 e 1982. Aqueles relatos que pareciam ter testemunhas oculares no começo do ano, classificaram o carro como de um “modelo antigo”, mais especificamente, datado de dez anos atrás. Já os últimos casos do mesmo ano não têm nenhuma descrição do modelo do carro, levando a crer que o modelo do carro não se destacou o suficiente para causar uma impressão na testemunha.
    Consegui datar casos mais antigos não por conta do carro, mas sim por homicídios misteriosos que aconteceram da mesma forma que Oscar ou que o informante de Edgar viera a falecer. Esses vão mais para trás e começam a sair do Brasil, parece que eles datam Inglaterra de 1882 e vão até a Escócia onde o rastro mais antigo que tenho é de um assassinato bizarro com a mesma descrição em 1842. O caso aconteceu com uma corte rural e um suposto assassino foi executado pelo povo de um pequeno vilarejo, mas cartas de pessoas que estavam na época relatam que até o fim o assassino negou ser o responsável.
    Agora vem um dos dados mais alarmantes, ao menos para mim. E o motivo pelo qual eu creio que este seja o meu último dia nesta terra. Os casos mais recentes, ou seja, de 1982, 1992 e 2002 sempre parecem ter uma constante em comum com o caso de 2012. Esta constante é um desaparecimento no fim do ano, um desaparecimento de alguém que estava atrás da tal lenda urbana. Em 1982 foi um escritor de contos de terror estrangeiro que tinha vindo para cá afim de escrever sobre exatamente essa lenda urbana. Segundo a sua família, ele parou de contata-los por volta de dezembro e foi dado como desaparecido pelos seus vizinhos de hotel após o dia 31 de dezembro. Em 1992 foi um policial rodoviário que tinha dado alguns dos registros que me fizeram acreditar que o motorista estava ativo naquele mesmo ano, nada sei de sua história, mas é fato que ele teve mais de um encontro com tal motorista. Já em 2002, foi um jovem rapaz, responsável pelo vídeo que eu citei anteriormente. Segundo seus amigos, ele passou semanas falando do que ele tinha encontrado para os seus colegas de sala e foi severamente caçoado por outros. Um de seus amigos mais próximos falou que o rapaz ficou obcecado em gravar de novo o motorista durante as férias de dezembro, por isso, tinha pedido emprestado o carro desse seu amigo por um tempo – o carro nunca foi encontrado. E era para ele aparecer na festa de ano novo da sua família, mas nunca chegou a aparecer, seu desaparecimento foi dado no dia 31 de dezembro de 2002. Um detalhe interessante sobre o caso, o carro do amigo do garoto desaparecido era um Volkswagen Santana Quantum.
    E é claro, como já deve ter ficado claro, Edgar Nascimento se aproximou demais do caso em 2012, ocasionando o seu desaparecimento exatamente no dia 31 de dezembro do mesmo ano. Quando eu percebi essa coincidência, notei que talvez fosse tarde demais para mim, pois provavelmente sou aquele mais próximo do mistério atualmente.
    Termino este registro e falta apenas uma hora para a meia noite, hoje é dia 31 de dezembro de 2022. Quem sabe os outros tenham desaparecido por terem ido atrás do mistério, isso foi um pensamento de horas atrás, mas Edgar estava justamente fugindo dele quando desapareceu, então eu acho improvável. Mesmo assim, eu fui um dos únicos dessas vítimas que não teve nenhum contato direto com o carro ou o motorista, mesmo assim, sigo apreensivo. Pensei em fugir, mas Edgar me mostrou que isso é fútil. Pensei em registrar algo além deste texto, talvez um vídeo, mas aquele garoto também me mostrou que isso pode ser uma tentativa frustrada. Não sei mais o que fazer se não encarar o céu noturno do ano novo, quem sabe os fogos sejam a última coisa que verei antes do meu destino final. Quem sabe, fecharei os olhos, os abrirei e será 2023, essa é a minha última esperança. Se isso acontecer, volto a escrever aqui para dizer como venci tal destino terrível, mas não quero deixar muitas falsas esperanças para trás então me despeço, apreciarei a vista da janela, apesar de conseguir ver pouco o céu e apenas o estacionamento daqui. Os carros estacionados na rua me dão calafrios só de vislumbrar.
    Se, e eu digo apenas se, eu sobreviver à essa situação, cogitarei em excluir este arquivo maldito, pois acabei de realizar que, a existência dessa investigação ser o motivo por eu estar atualmente afligido, é capaz de ser uma maldição para aqueles que o lerem. Pois, se aqui eu compilo todo o conhecimento sobre o tal motorista fantasma e o mesmo persegue os que sabem demais sobre ele, então estou criando uma terrível arma em formato de palavras. E digo mais, se, e somente se, eu acabar sobrevivendo após tudo isso, nunca mais dirigirei muito tarde da noite e evitarei quaisquer carros negros nas avenidas noturnas.
    Parece que o meu destino está enfim selado. Faltam dez minutos para a meia noite e enquanto eu observava o céu noturno à espera de fogos, eu vi. Parado ali, na frente da delegacia, um Volkswagen Jetta negro.
4 notes · View notes
filipemduarte · 2 years
Text
As Cores de Lúcifer.
Nada sei das condições de meu nascimento, se é que posso chamar assim, somente sei da condição em que fui imposto ao ganhar consciência, e esta condição seria aquela que eu iria carregar pelo resto da minha vida: o fato de eu ser um monstro ou pior ainda, um demônio desconhecido aos olhos do homem comum.
Quando este monstro que vos fala nasceu, germinou desnudo, como se eu estivesse brotando da própria terra de onde acordei pela primeira vez. Meu corpo ainda estava dormente e eu sentia o frio, por mais que ainda não soubesse nomeá-lo. Eu de fato, tinha a aparência de um humanoide comum, porém, alguns traços físicos me diferenciavam daquele ser que chamas de homem. Eu tinha duas pernas, assim como um homem, porém, ao invés de pés com cinco dedos, eu tinha três garras e pernas reviradas. Assim como o ser humano, eu me beneficiava de um par de braços, porém, a minha mão esquerda era completamente deformada, pareciam-se quatro garras longas malfeitas que nunca se chegaram a desenvolver e pausaram no meio do processo, enquanto a minha mão direita apresentava uma clara assimetria em relação ao seu par, ela assimilava-se mais à uma mão humana, porém eu tinha apenas quatro dedos e eles eram tortos e em formato de ganchos. Assim como o homem comum, eu portava uma cabeça com nariz, olhos e boca, um par de orelhas mais pontudas do que o comum e um par de chifres tortuosos escondidos por um longo cabelo negro que caia aos meus ombros baixos. Meu tórax era afilado por conta das pernas longas e eu era muito magro e esguio desde sempre, minha pele sempre pálida e meus olhos escuros como a escuridão da noite ou as sombras da ingenuidade.
Quando acordei, fui consumido por uma torrente de sons muito altos para a minha recém nascida audição, pois chovia forte e torrencialmente. Foi neste momento que eu notei que a minha audição era extremamente aguçada, assim como meu tato, pois sentia cada gota de água escorrendo pelo meu corpo desprotegido. Era noite, mas eu conseguia enxergar a floresta onde eu acordei em tons de cinza, o que me fez acreditar que o mundo tivesse aquelas cores. Meu paladar também era apurado, quando abri a boca para deixar as gotas de água escorrerem para dentro de mim foi quando eu notei que sentia sede e fome, foi quando eu percebi muitas coisas sobre mim.
A priori, eu não era um ser totalmente irracional e sem nenhuma consciência previa, caso fosse, eu jamais conseguiria me desenvolver de forma tão rápida ou quem sabe, sobreviver às condições de onde foi arremessado. Eu não tinha o dom a linguagem ou da escrita humana, estes conceitos ainda eram muito desconhecidos naquela época, mas eu pensava de forma clara, desenvolvia ideias como um acadêmico e tinha muitas noções sobre as coisas naturais. Por exemplo, eu sabia que para saciar a minha sede eu precisava de água, mas não qualquer água, mas sim água doce e sabia que eu poderia encontrar tal água em riachos específicos, mas não sabia onde e nem tinha noção de onde estava, aquele território era alienígena para mim. Eu também tinha noção do que eram montanhas, animais, frio, fome, entre outras coisas. Mas devo afirmar que as filosofias e ciências humanas eram misteriosas para mim. Eu sabia controlar o meu corpo de forma adequada, por mais que tive certas dificuldades no começo, eu aprendi rápido à caminhar, usar minhas garras e a correr pela grama.
Assim que eu conquistei os processos de meu próprio corpo, notei que sentia frio e que precisava me aquecer, notei também que sentia fome e sede e que precisava satisfazer tais desejos naturais, caso contrário à minha vida única acabaria tão rápido e abruptamente como começou.
    Então, sem muitas escolhas, vaguei pela floresta enquanto analisava o terreno em que me encontrava. Era uma larga floresta de pinheiros extensos, e com a neblina da chuva forte eu não conseguia ver o fim das copas e nem sequer conseguia me orientar muito bem, me perdi algumas vezes antes da chuva se encerrar e o dia raiar definitivamente, foi quando eu vi a luz do sol e as cores pela primeira vez. O céu se transfigurou em um azul vivo e quente enquanto a grama escorria de um verde aquoso, os riachos tinham sua própria tonalidade anil e transparente enquanto as árvores se misturavam em vários tons de verde. Eu notei pela primeira vez o impacto das luzes e das sombras na paisagem, algo que eu não ainda sabia nomear ou sequer expressar. Ao observar com deleite a paisagem à minha frente, inconscientemente, minha mente quis expressar-se e minha garganta quis emitir um ruído por si própria, mas nada saiu, pois eu ainda não sabia o que era o ato de falar.
    Depois de me esbanjar por um mundo de cores, eu consegui encontrar um riacho para quebrar o meu ritmo sedento e com as minhas garras, eu percebi que era extremamente rápido e ágil, afugentei um esquilo em minhas mãos e o mordi, pois sabia que dali viria o meu alimento, mas quando o esquilo contorceu-se ao se encontrar com os meus caninos, quando o sangue escorreu e ele emitiu aquele som agudo de dor e desespero eu me assustei e larguei o animal, que rapidamente se disparou para o refúgio mais próximo entre alguns arbustos. Eu não entendi o motivo do desespero do animal e me sobressaltei com a reação do bicho. Eu passei a entender que talvez todas as criaturas deste mundo sintam dor e isso me fez cair em demasiada compaixão pelo bicho, que estava, agora, ferido. Eu segui o mínimo rastro de sangue e encontrei a pequena criatura se contorcendo debaixo do arbusto. O pequeno ser emitia sons agudos cada vez mais fracos e cada vez mais tristes e solitários. Morrera ali, sem ninguém para resguarda-lo além de mim. E eu o fiz sofrer em minhas mãos inocentes à busca de comida, fui carregado de culpa e tristeza que eu nunca senti antes, minhas mãos tremeram e lágrimas escorreram do meu rosto esguio e pálido, o que eu tinha feito com aquela pequena criatura que vagava pelo seu lar? Porém, a fome era grande e tinha chegado ao seu limite. Eu não queria comer a pequena criatura, senti extrema dor ao ser forçado a fazê-lo. E pior ainda, com o meu paladar aguçado, conseguia sentir cada mordida com extrema sensação. Devorei-o aos prantos em troca de saciar a minha fome. Eu me permiti aquele momento de tristeza, mas logo levantei para seguir em frente, por que dali em diante eu precisaria comer mais daquelas pequenas criaturas para sobreviver, mesmo me considerando um ser de extrema impureza, por retirar vidas daquele modo tão cruel e terrível, eu tive que aceitar aquele pecado a fim de sobreviver. Desta forma, carregando grilhões de culpa, eu segui em frente, caminhando pela mata úmida e agora iluminada pelo raiar do dia.
    Quando alcancei o final de um monte íngreme, o qual minhas patas tornaram extremamente fácil de escalar, eu vi largas construções se espalhando pelo horizonte, eram estruturas muito mais complexas do que aquelas árvores que tinha visto na floresta. Eu não sabia ainda, mas estava olhando para um pequeno vilarejo, um daqueles que não sequer se igualam à grandiosidade de uma capital ou metrópole, mas para mim aquele lugar era imenso e lindo, suas cores misturadas, aquela fumaça subindo ao céu escapando das construções, aqueles sons distantes e cheiros distintos, era tudo novo para mim, talvez, eu pudesse descobrir algo ali, naquele lugar estranho.
    Antes de alcançar os encalços do vilarejo eu presenciei uma cena única, um largo homem de barba cumprida e barriga grande, sentado em um banco de madeira à frente de uma tela de pintura, olhando para a paisagem e com o seu pincel ele traçava cores que pintavam a mesma paisagem úmida à sua frente. Curioso, eu me aproximei pela grama para observar o que ele fazia naquele quadro em branco, e me surpreendi quando vi, era um homem extremamente talentoso e aquilo era um simulacro perfeito da realidade, onde o homem misturava cores apenas com uma ferramenta e por meio de gestos complexos, ele copiava a realidade em um quadro em branco. Me apaixonei pelas cores, pela sutileza dos traços e pela beleza simplista da paisagem representada. Não era a realidade em seus completos detalhes, mas a expressão do que ela apresentava. Para mim, um demônio que não conseguia me expressar ou falar, aquilo resumia os sentimentos de mais cedo, aqueles que eu não conseguia colocar em palavras, aquele quadro me trazia a sensação de ver as cores pela primeira vez, um sentimento que não se igualava a nenhum outro.
    Perplexo pela obra, eu me aproximei mais um pouco, foi quando o homem conseguiu me escutar, ele virou-se para mim com um rosto levemente irritado por ter sido incomodado e levemente cansado, provavelmente por ter acordado cedo para pintar o quadro e o sono ainda carregava a ranzinza matutina. Porém, ao colocar os olhos para a minha forma hedionda, o homem grunhiu em medo e bateu contra o seu quadro em um sobressalto, fazendo manchar-se a tinta fresca, o homem se derrubou ao chão, em um instinto tolo, eu levantei levemente minha mão deformada por sentir pela da obra ter caído ao chão, mas o homem apenas gritou enquanto tentava rastejar para longe de mim. Entre várias palavras que na época eu não entendia, eu consegui apenas discernir uma que não parecia ter conexão com as outras, e uma que ele havia repetido muitas vezes antes de disparar para longe da minha presença na direção do vilarejo, e enquanto a sua forma corrida para baixo do monte eu ainda ouvia as suas pragas ecoando na minha cabeça enquanto a palavra reverberava em minha mente recém nascida. Colocando a mão nos meus lábios eu repeti a palavra e falhei diversas vezes antes de acertar, abaixando levemente eu peguei o quadro com o cuidado e olhei com pena para a obra manchada, ainda repetindo a primeira palavra que eu aprendi com aquele homem desconhecido e talentoso, capaz de dar vida àquela obra que extasiou:
    - ...Lúcifer... – eu repetia para mim mesmo, ele usara esta palavra enquanto apontava para mim, talvez aquele fosse o meu nome. Tolice de mim pensar isso hoje em dia, pois qualquer humano saberia que era apenas um adjetivo e não um nome próprio, mas eu não conhecia as nuances da gramática ainda, assumi que Lúcifer era o que eu era, e por não ter visto mais nenhum como eu, assumi que eu era o único Lúcifer à vagar por esta terra, e que as pessoas se aterrorizavam com a minha presença.
    Olhando para o quadro tristemente manchado, eu pensava: Talvez esta fosse a minha vocação para o mundo, o meu presente para a humanidade, destruir tudo que toco. Isso novamente me fez sentir-se horrível, por que eu era destinado à acabar com aquela beleza esplendida que não havia me dado nada além de êxtase? Eu não queria ser o portador de um pecado tão grande ou de um destino tão cruel. Por um momento eu cai em um poço escuro de melancolia onde me via apenas como uma criatura terrível marcada por um destino horripilante e maldito, se pudesse praguejar, eu o faria, mas nada fiz além de mergulhar nestes vales infindáveis onde fiquei por um tempo inominável.
    Eu só escapei do meu transe soturno quando consegui o som de passos, vozes, medo e ódio vindo na minha direção. Como a minha audição era aguçada, eu conseguia ouvi-los se aproximando à distância, e como conseguia sentir o perigo, eu fiz a escolha de correr para o bosque e me esconder entre as folhagens, carregando comigo aquele quadro que marcava a minha maldição sobre esta terra. Quando esperei para ver o que se aproximava, escondido entre as árvores, vi novamente aquele pintor que eu havia assustado, mas agora ele carregava algo em suas mãos, parecia um enorme cano de metal com um gatilho na ponta. Outros homens, todos vestidos iguais, embora fossem de feições diferentes, o acompanhavam, eles também carregavam canos semelhantes, mas eram menores e mais compactos. Enquanto o pintor utilizava a sua mão para gesticular e falar algo que eu não entendia, os homens uniformizados usavam as suas pequenas ferramentas para apontar à toda volta, confusos e com medo. Eu não sabia o que eram aquelas coisas que eles seguravam, mas se usavam com aquela intenção, provavelmente deveria ser algo perigoso, e me mantive escondido até os homens se recolherem. Eu vi o pintor irritado e depois, cansado, recolher as suas coisas quando os homens uniformizados foram embora. Ele olhou para os lados e percebeu que eu havia levado o quadro, praguejou algo que eu não entendi e começou a descer o monte para algum lugar no vilarejo. Curioso, eu me mantive distante, mas acompanhei-o.
    O pintor desceu o morro por um caminho esculpido pela mão humana, abriu um portão na cerca e quando ele alcançou o vilarejo eu notei que já escurecia, luzes artificiais me assustaram quando eu vi que as ruas precisavam ser iluminadas e percebi que talvez os seres humanos não tivessem as mesmas percepções que as minhas. Eles eram mais cuidadosos, mais engenhosos, mais frágeis, porém, mais abençoados e não carregavam a maldição da destruição consigo, mas sim a capacidade da criação, algo que eu admirava e ao mesmo tempo invejava.
    O pintor desceu a rua solitária e vazia, eu me cuidei para me manter escondido por enquanto, queria evitar a reação que tinha tido antes. Quando o pintor finalmente alcançou a soleira da sua porta e abriu para uma estrutura iluminada, uma pequena criatura saltou e soltou um grito de felicidade, pulando para abraçar o pintor enquanto o mesmo devolvia o afeto de forma carinhosa e sorria. Eu invejei aquele afeto, aquela felicidade que eu não conseguia sentir, mas ao mesmo tempo contemplei tal ação, com uma sensação de esperança em meu peito. Vi a pequena criatura, que também poderia ser obra daquele homem, segurar a mão do pintor e ambos entraram na construção e fecharam a porta atrás de si.
    Me esgueirei e olhei através da janela aquela vida acontecendo. Essa foi a minha rotina por dias, ou melhor, semanas e meses. A vida daquela garota e daquele homem. Eu percebi que não era tão dependente da comida e da água quanto os seres humanos, então eu só saía quando eu precisava, em todos os outros momentos, eu observava pelas janelas o desenrolar da vida. Naquele tempo, eu aprendia muitas coisas, pois o pintor, em um horário fixo, sempre ia até o quarto da garota e a ensinava muito sobre tudo. Ele a mostrava mapas, escritas e os dois se divertiam juntos, eram felizes um com o outro. Quando o pintor precisava ensinar à garota os dons da escrita e da linguagem, eu aproveitava para aprender junto. Eu meu ritmo, eu aprendi muito mais rápido e em questão de meses conseguia entender com grande facilidade a linguagem humana, as coisas passariam a se tornarem mais obvias e as minhas observações mais precisas.
    Naquele tempo, eu descobri que o homem se chamava Victor e que a pequena garota era a sua filha, ela se chamava Elizabeth. Descobri que o dom da criação humana requisitava tanto um homem quanto uma mulher, e que os seres humanos tinham um modo muito complexo de afeição chamada de casamento. E que Victor já fora casado, por alguma circunstância que não entendi completamente, a sua mulher, cujo nome eles evitam de falar, faleceu, deixando a pequena Elizabeth sob os cuidados de seu velho pai pintor, que vivia uma vida complicada pois ele precisava de dinheiro – uma forma dos seres humanos de trocarem objetos complexos e simples – e aparentemente, eles precisam desse dinheiro para comprarem comida de outros seres humanos dispostos a caçar por eles. O próprio Victor parecia velho e frágil demais para caçar e a pequena e inocente Elizabeth, jovem e inocente demais para tirar uma vida. Apesar de eu, jovem e inocente como ela ter sido capaz. O velho Victor pintava desde criança, e essa era a ocupação de sua vida, o que lhe trazia felicidade e paixão. Porém, ele não era reconhecido apesar de seus quadros serem uma obra prima. E não digo isso por era a única arte que eu conhecia, ao decorrer do tempo, aprendi sobre muitas artes junto da jovem Elizabeth e ao comparar, Victor não era apenas um pintor, mas um bom pintor. Porém, não havia ninguém interessado em comprar suas artes e ele não sabia como vende-las sozinho. Dessa forma, para sustentar Elizabeth ele era forçado a trabalhar durante o dia em uma fábrica, de onde ele sempre voltava sujo e infeliz. A única felicidade na vida de Victor era a sua jovem Elizabeth e os quadros que pintava. Porém, as vezes ele mesmo sacrificava o pouco dinheiro que ganhava para comprar comida para a sua filha ao invés de investir em material para pintura, mais um motivo para que ele não conseguisse pintar tantos quadros quanto gostaria.
    Triste pela sua situação, eu decidi que aquele homem precisava ser recompensado pelo que me ensinou. Mesmo sem saber que eu estava ali, como uma sombra solitária à espreita, ele me ensinara muito sobre o mundo e sobre a linguagem. Por causa dele eu era agora capaz de falar e entender os humanos, por mais que faltasse sutileza e o meu idioma era arrasado. Eu esperei a noite cair e esperei Victor e a sua filha adormecerem para sair dali. Eu adentrei na cidade e fui até a loja onde Victor costuma comprar o seu material de pintura. Foi fácil entrar pela janela, mas eu precisei quebra-la para conseguir passar, fazendo um barulho que me forçou a acelerar a minha ação, com medo dos humanos me encontrarem e terem uma terrível reação com a minha aparência. Com meus braços eu segurei o máximo de tintas, pincéis e quadros que eu pude, joguei-os pela janela em um saco que encontrei ao balcão e quando fui pular a janela para sair da loja, alguém desceu as escadas e viu a minha silhueta saltando, eu só consegui ouvir os gritos e uma voz feminina velha gritando “Parado aí mesmo!” enquanto corria para me alcançar, mas eu temia pelo vislumbre e pela minha descoberta. Eu até pensei em parar, mas isso faria com que os humanos soubessem de mim, isso me faria perder a minha vida com Victor e com a jovem Elizabeth, nada disso eu queria. Apressei-me, segurei o saco e corri dali, sem ser visto. Deixei tudo na frente da porta de Victor e esperei, sorrindo. Eu finalmente conseguira devolver um pouco do que ele me fornecera, e como eu sabia que a pintura era muito importante para o velho Victor, eu passei a noite me deleitando em imaginar a felicidade daquele homem ao encontrar o material para a sua felicidade na sua porta. Naquela noite, eu sonhei com Victor me agradecendo e me abraçando como fez com a jovem Elizabeth, Victor me convidava para entrar e me ensinava a ler, ele me ensinava a pintar aquela linda paisagem que eu ainda carregava comigo, o meu sonho terminou com Victor sorrindo e me chamando de filho.
O dia raiou e eu acordei no bosque onde havia dormido, me apressei alegre na esperança de ainda conseguir ver a primeira reação de Victor quando visse os materiais, mas para a minha surpresa algo estava acontecendo na frente a casa de Victor. Vários carros daquele grupo de homem uniformizados estavam parados na frente da casa, eu ouvi várias vozes misturadas e vi Victor sendo levado pelos homens uniformizados, ele gritava:
    - Eu não sei o que é isso! Eu estava dormindo, eu não roubei nada!
    - Nós iremos discutir isso na delegacia, Sr. Morgan – um dos homens uniformizados falou enquanto impedia uma jovem Elizabeth assustada e chorosa de se aproximar do seu pai, que era arrastado até um carro.
    Eu pensei em fazer algo, mas o que poderia eu fazer? Ao mesmo tempo que estava confuso, eu entendi a situação. Isso me fez mergulhar mais ainda em arrependimento e culpa, tinha deixado a felicidade e esperança me consumir, de fato, tinha esquecido da minha maldição.
    A pequena Elizabeth também foi levada pelos homens uniformizados, e lá estava eu, o pequeno Lúcifer amaldiçoado a destruir tudo que toca. Aquelas pessoas que eu almejava em conquistar foram destruídas por mim.
    Levando o quadro que eu roubei em minhas mãos, eu entrei na casa vazia dos Morgan. Era muito diferente estar lá dentro e não fora olhando por uma janela. Entrei no corredor que levava à sala de estar e à cozinha. Vi as portas que entravam para o quarto da pequena Elizabeth, do Victor e a oficina onde ele pintava os seus quadros. Era uma casa modesta e pequena, mas ainda sim arrumada. A pequena Elizabeth fazia faxina todos os dias quando não estudava ou brincava.
    Eu fui até a cozinha e sentei-me em uma das cadeiras da mesa, imaginei o Victor servindo os seus pratos quentes e complexos que jamais fui capaz de copiar. A pequena Elizabeth corria pela sala e Victor chamava-a para o desjejum, meu velho pintor olhava para mim com tenro carinho enquanto perguntava se eu queria suco.
    - ...Eu... Quero... Victor... – respondi, enquanto sorria, minha mão deformada alcançava o ar e o meu sorriso morreu quando eu vi aquela deformidade que eu era. Lembrava do meu reflexo e lembrava do rosto aterrorizado que eu fiz Victor passar.
    Eu me levantei e caminhei, ainda com o quadro por debaixo do braço, na direção do quarto da pequena Elizabeth e a imaginei brincando no chão. Ela sorria para mim, me chamando de “irmão Lúcifer” e perguntava se eu queria brincar com ela.
    - Do... que... você quer brincar... Elizabeth? – Eu falei, olhando para ela da mesma forma que Victor olhava para ela. A garota respondia que podia ser de qualquer coisa, desde que eu estivesse com ela, então, me sentei e peguei o tabuleiro de damas que ela tanto gostava, comecei a jogar.
    - Sua vez... – Eu falei, enquanto ela quebrava a cabeça. Claramente, eu a deixei ganhar e ela sorria com a vitória, perguntava se eu queria jogar mais uma vez.
    - Eu... Preciso ajudar o seu pai... Ele me chamou para ajudá-lo na oficina...
    Ela fez uma cara de emburrada e eu ri, confortei-a e ela me deu um abraço, falando que só iria largar se eu prometesse a ele que eu voltarei para brincar mais tarde.
    - Eu... Prometo...
    Com o quadro debaixo do braço, eu me levantei e os meus olhos foram em direção à janela fechada onde eu costumava observar as lições diárias, vi o meu reflexo hediondo pelo espelho e abaixei o rosto, não queria olhar para mim mesmo.
    Saí do quarto e fui até a oficina de Victor, onde hesitei na maçaneta. Mas abri, entrando no escritório empoeirado onde vários quadros estavam escondidos por baixo de panos sujos. Era um dos poucos lugares que eu só conseguia ver quando Victor deixava a porta aberta ou entreaberta. Eu raramente conseguia ter uma visão tão completa do local de amor do Victor até agora, então, me deleitei por horas em observar as pinturas que ele tinha, de uma à uma, cada uma era uma surpresa diferente quando tirava aquilo que as escondia.
Me apaixonei novamente pelas pinturas de Victor, uma a uma eu via paisagens, objetos e obras que me faziam chorar. Coloquei a velha pintura que carregava em seu devido lugar antes de tirar o último pano da pintura mais recente, mas ainda incompleta, de Victor. Eu quase conseguia ver Victor, com a sua roupa suja de tinta, suas mãos manchadas por vermelho, verde, azul, amarelo e laranja. Ele sorria para mim, me oferecendo o pincel e perguntando se eu queria tentar.
    - Eu... Só conseguiria estragar... Eu não sou bom para fazer... Coisas... – Eu disse, tristemente, encarando o quadro que eu havia destruído. Mas ele negou a minha afirmação e disse que se eu quisesse, poderia fazer diferente, uma lágrima escorreu do meu rosto e eu fui até o seu quadro mais recente, tirei o pano enquanto segurava um pincel velho e sujo de poeira. Quando vi a obra, meu rosto paralisou e minhas emoções falharam, eu chorei e as lágrimas felizes escorreram pelo meu rosto. Era um quadro meu, Victor estava pintando a mim. Minha forma hedionda estava sendo apreciada e simulada pelas mãos e de fato, aquele homem me amava. Devem ter sido horas que eu me exclamei em êxtase, as emoções eram tão fortes que minhas sensações me falharam, eu não ouvi ninguém se aproximando até uma voz quebrar a minha emoção subitamente.
    - Você está triste? – Uma jovial voz familiar me perguntava, a voz da pequena Elizabeth, quando eu me virei, eu que estava ajoelhado no chão, vi a garota e seus cabelos loiros longos descendo pela sua forma inocente. Em seu olhar, não havia qualquer medo sobre mim e nenhum ódio, fiquei paralisado por um tempo, assustado demais para responder ou fazer algo. A criança parecia hesitar ao ver um desconhecido tão estranho, mas não tinha corrido nem gritado, mas logo falou novamente – Por que você está chorando?
    Dessa vez, encontrei forças para responder:
   - Não... Não estou triste.
    - Então por que você está chorando? – Ela perguntou, notando a minha falta de agressividade apesar da minha aparência. Naquele momento, eu já tinha adotado hábitos mais humanos e estava coberto, meus pés estavam escondidos por botas mal colocadas e rasgadas, meu braço coberto por um sobretudo longo e luvas negras, apesar dos meus chifres estarem para fora.
    - Eu... Eu não sei... Mas eu não estou triste, Elizabeth... Não se preocupe... Estou feliz...
    - Como você sabe o meu nome? – Ela hesitou e eu engoli em seco, mas tentei sorrir.
    - Conheço o seu pai... Vim devolver algo para ele... E... Pedir desculpas...
    - Você fez algo de errado?
    - Fiz... O seu pai... Onde ele está?
    - Ele está lá fora conversando com o policial – Ela disse, agora entrando na oficina de vez e colocando suas pequenas mãos para trás – Que disse que houve um engano e que o ladrão não era ele, uma mulher disse que viu o ladrão de verdade.
    - Ladrão...? – Eu perguntei com a sincera dúvida.
    - Sim, alguém roubou a loja de pinturas – Elizabeth exclamou com certa tristeza – E tentou culpar o meu pai.
    - Não... Eu... – Eu me segurei, talvez esta fosse a minha chance e não podia estragar tudo – Talvez... Talvez o ladrão não quisesse fazer isso...
    - Acho que não, senhor – Ela disse – Meu pai disse que todos os ladrões são maus e que eles só querem prejudicar os outros. Que eles são egoístas.
    - São...?
    - Sim – Ela falou – Meu nome é Elizabeth, mas o senhor já sabe disso, e o seu, senhor?
    Eu hesitei quando a garota estendeu a mão, mas levemente coloquei a minha mão torta coberta com uma luva para cumprimenta-la, rapidamente removi-a com medo da garota perceber que eu não era humano como ela.
    - Eu... Meu nome...?
    - Sim, senhor. Qual é o seu nome?
    - ...É Lúcifer...
    - Lúcifer? Como o da história?
    - Que... Que história...? – Perguntei interessado.
    - Espera, eu vou buscar para te mostrar – Ela disse, correndo para fora do corredor e voltou com um livro em mãos, aberto em uma imagem de um anjo lindo de cabelos loiros e asas largas, pele branca e pose bela, não era nada como eu – Ele foi amaldiçoado, sabe? E foi jogado para fora do céu por Deus, por ter desobedecido, e virou isso.
    Ela virou a página e mostrou a foto de uma criatura horrenda com cascos de bode, chifres e pele deformada, reinando sobre a destruição, era como eu. Aquele de fato era eu? Será que eu já fora belo uma vez e desobedeci a Deus? Ele me castigara com essa maldição? Toquei o meu rosto com a minha mão enluvada e imaginei como seria ser belo e aceito. Lágrimas escorreram pelo meu rosto e Elizabeth olhou-me com preocupação, mas outra voz se aproximava sem a minha percepção, eu levantei com rapidez e vi Victor aparecendo na porta, com um sobressalto o homem gritou assustado, eu tentei falar algo, mas fui incapaz devido a surpresa. O meu sobretudo que escondia o meu braço deformado saltou-se para o lado com a minha rapidez, revelando a minha forma hedionda. Victor puxou Elizabeth que também olhava para mim assustada. Ela com medo e ele com ódio, Victor gritou algo que estava fora de foco para mim.
    Ele abraçou Elizabeth que começara a chorar e eu fui até o quadro que eu tinha destruído na intenção de mostrar para Victor. Talvez, se ele visse o quadro ele entenderia, que eu vim devolver e que eu não queria fazer nenhum mal.
    - O que é isso? – Victor exclamou – O que você quer comigo e com a minha filha, demônio!?
   - Eu... Vim lhe devolver... Isto... Victor... – Eu apanhei o quadro e mostrei. O homem olhou para mim com um nojo que me feriu mais do que jamais tinha ferido.
    - Não quero! Arraste para o inferno de onde veio! – Ele gritou – Ele está aqui! – Victor gritou para alguém que se aproximava e um homem uniformizado apareceu, apontando aquela arma para mim enquanto se colocava entre mim e a minha família.
    - Não se mova, coisa! – O policial gritava enquanto tremia – Ou eu atiro! Atiro de verdade!
    Era tudo um grande engano.
    - Eu... – Falei tentando mostrar o quadro para o policial, mas o homem se assustou, e eu posso culpa-lo? Ouvi o com do tiro que ensurdeceu meus ouvidos sensíveis, vi Elizabeth cobrindo as orelhas e Victor olhando para mim com desprezo, a bala atingiu meu ombro e jorrou sangue vermelho que pintou o quadro mais recente de Victor, uma segunda bala não me acertou, mas perfurou e rasgou o quadro que eu segurava, fazendo-o cair da minha mão, destruindo-o por completo, uma terceira bala alojou-se no meu peito e ali ficou, fazendo sangue escapar e banhar o chão, eu tropecei e me segurei onde pude, quadros atrás de mim se derrubaram.
    O policial tentou atirar mais, só que a arma travou. Eu senti cada dor e pela primeira vez, raiva. Aquele homem estava entre mim e a minha família e ele me fez sentir uma dor que jamais pude compreender, tomado pela maldição, eu alcancei o seu braço que segurava a arma e com um rápido puxão, quebrei seus dedos arremessei-o aos quadros, fazendo sua cabeça bater contra a parede e o homem derramar sangue sob o chão.
    Coberto de sangue, virei para Victor, mas vi apenas Elizabeth ao chão, chorando e gritando desesperada, Victor rapidamente apareceu virando o corredor e entrando na oficina, onde eu permanecia em pé no centro do quarto, manchado do meu próprio sangue. Victor carregava aquela grande arma que eu o vi carregando muito tempo atrás, com ódio em seu rosto, eu não consegui me defender, pois tudo que eu tinha feito era para protege-lo, como eu seria capaz de atacar o meu pai?
    - Fique longe da minha família, seu demônio! – Ele gritou antes de ensurdecer novamente os meus sentidos com o estampido alto e a dor extrema, só que era muito mais poderosa do que antes, eu fui arremessado contra os quadros, quebrando todos em meu caminho e misturado com um grito de susto de Elizabeth, eu gritei de dor extrema e chorava.
    - Por favor... Victor...
    - Como você sabe o meu nome, seu merda?
    - Eu... Observei vocês... Eu só queria ajudar... Eu queria te dar um presente...
    Cuspi sangue, meu peito estava à mostra e eu estava extremamente fraco, Victor olhou para mim com confusão e o seu ódio se intensificou.
    - Você? Foi você que me incriminou? E você estava me observando? E observando a minha filha, seu lunático! – Ele apontou novamente aquela arma para mim, eu só consegui chorar e implorar.
    - Por favor... Dói... Victor...
    Ele atirou novamente e eu gritei de extrema dor, não conseguia mais mexer os meus braços, minha visão tinha ficado embaçada e minhas pernas não se mexiam, a dor era tanta que tudo estremeceu e o meu coração estava mais fraco.
    - Victor... Por favor... Eu amo vocês...
    - Você é um louco! Um monstro! Vai pro inferno! Monstro!
    Quando ele atirou mais uma vez, eu já não sentia nada, minha visão não conseguia mais focar e tudo ficou silencioso. Eu não conseguia mais chorar ou gritar, nem sequer implorar. Tudo que o meu corpo pôde fazer era decair, se misturando com o sangue da minha carne, lágrimas escapavam do meu rosto. E mesmo após tudo ficar dormente e o meu corpo cessar de sentir a dor, ainda doía.
    Em meio a dor, tudo ficou vazio e eu quase conseguia sentir a chuva no meu corpo de novo, a minha última visão foram as cores do quadro em pedaços, aquela paisagem simulada linda, estragada pelo meu toque.
    Se eu nunca tivesse existido, talvez aquele quadro estivesse inteiro. E talvez aquelas cores pudessem ter sido salvas. Ah, e que cores lindas. Lindas demais para um monstro como eu. A única cor que eu mereci, no final de tudo, foi o vermelho.
4 notes · View notes
filipemduarte · 2 years
Text
O Frio do Wendigo.
Eu, honestamente, nunca acreditei em espíritos ou monstros. Isso é, até aquela maldita noite.
Pode me chamar de cético ou de pessimista, mas eu sempre fui um homem que acreditava firmemente apenas no chão onde pisava. Talvez isso se deva à minha criação, ou talvez seja por conta do local onde eu nasci, que, não por coincidência, é o local de onde esse relato aconteceu. Mas independente de qual seja o motivo da minha descrença contínua, eu cresci acreditando que todas essas ideias eram apenas métodos do homem de enganar a si mesmo. Nunca fui uma criança que visitava o seu próprio mundo na infância ou que tinha amigos imaginários, não, essas coisas eu sempre abominei. Eu odiava histórias de ficção ou de contos mitológicos e lendas. E existe um motivo pelo qual todos os meus verbos estão no pretérito imperfeito, por que foi naquela maldita noite de novembro que tudo mudou. Desde então, minha mente não tem sido a mesma e tenho sofrido de sintomas que nunca senti antes. Um frio trespassava o meu corpo não importa onde eu esteja, apesar de eu estar longe de qualquer lugar nevado ou invernal. E quando o inverno chega, meus músculos tremem e eu passo dias em coma e apagado, minha memória não tem sido mais a mesma e eu posso culpa-la? Talvez ela esteja tentando esquecer tudo que me aconteceu, tudo que eu vi e ouvi naquela noite. E apesar de estar longe daqueles bosques e campos nevados, eu ainda sonho com eles todas as noites, como se eu corresse através deles novamente, ensanguentado e exasperado como eu estava antes, foram as respirações mais pesadas da minha vida e quando eu finalmente escapei, minhas pernas tremiam como se estivesse acontecendo um terremoto sob os meus pés. Tudo mudou para mim naquela noite e eu sinto que depois de passar meses remoendo aqueles acontecimentos eu deva finalmente colocá-los em palavras através destas páginas.
Sempre que eu penso por onde começar, aquele lugar me vem à memória como uma brisa outrora fresca de nostalgia que foi transformada em verdadeiro horror traumático. Falar sobre aquele lugar é o momento perfeito para começar, pois um narrador deve descrever o palco onde a história acontece antes de narrar as tramas que lhe aguardam, de que adianta saber uma história sem entender o chão onde ela pisa? Pois então devo escrever sobre aquela região nevada.
Naqueles campos frios, parecia que era sempre novembro. O inverno chegava, mas todos que viviam por lá estavam constantemente vivendo um constante inverno. Os grandes lagos permaneciam congelados, os largos campos continuavam brancos como o céu, a névoa ainda preenchia o horizonte e o sol ainda não era forte o suficiente.
Era puxado e o frio era o principal inimigo de nós, pois apesar de sempre haver as ameaças naturais, o frio era a maior delas. O frio daquele lugar era como um assassino silencioso, mas ele não invade a sua casa para cortar a sua garganta de ponta a ponta, nem mesmo te arranca do chão para enforca-lo ou sequer sufoca-o sem aviso. O frio é um assassino pragmático e invisível, porém, todos sabiam que lá ele estava. Ele não pegava ninguém de surpresa, todos sabiam como combate-lo, todos sabiam quando ele chegava e apesar disso, muitos morriam. Esse era o quão implacável era o frio lá.
Também existia uma constante e opaca neblina que era aquela companheira vazia e intimidadora. Nada ela fazia e nunca era comparada com o frio, pois ninguém, principalmente à primeira vista, comparava-a como uma assassina, mas a neblina também encontrava o seu meio de matar cruelmente assim como o frio, pois era a neblina que fazia os desavisados se perderem no bosque de pinheiros e nunca mais encontrarem o seu caminho de volta, era a neblina que trazia fortes ventanias que obscureciam os rastros e era a neblina que ofuscava as estradas fazendo carros escorregarem até os rios congelados, e estes rios, eram a ironia encarnada, os rios tinham um gelo forte o suficiente para impedir a pesca decente e o transporte de botes, mas era fraco quando alguém precisava dele para sobreviver, até mesmo os rios matavam com intenção naquele lugar.
E apesar de eu estar discorrendo sobre os assassinos naturais e antropomorfizados pelas minhas escritas, devo também dedicar um parágrafo para os verdadeiros assassinos intencionais e orgânicos daquele lugar, os verdadeiros monstros que eu temia quando criança e que eu caçava quando adulto, os lobos, ursos e coiotes selvagens que vagavam aquelas terras como demônios, ao menos eu os considerava assim, tendo em vista a maneira que eles resgavam a pele e devoravam a carne dos que entravam em seu domínio despreparado, porém, eu descobri que existem verdadeiros demônios vagando aquelas terras, naquela noite eu conheci um deles.
E o que posso falar das pessoas que lá viviam? Para chamar um lugar desses de lar, certamente deveriam ser loucas. Mas nunca subestime a capacidade do costume, uma pessoa pode até mesmo chamar um campo de guerra de lar, e à minha compreensão isso se deve à dois fatores importantes: Um é o fato dessa pessoa ter nascido e crescido lá, logo, os assassinos fantasmagóricos – como o frio e a neblina antes citados – e nem mesmo os perigos físicos eram nem surpreendentes ou assustadores, eram rotina; E outro fato eram as pessoas que lhe criavam, pois as crianças que eram criadas lá tinham que ser educadas pelos seus pais e ninguém mais. Haviam escolas de um ensino extremamente básico, porém, a sobrevivência era mais importante e quando se vive em um ambiente tão precário e quer se manter nele, até mesmo as crianças tem que aprender a trabalhar cedo, à criar calos e congelar as mãos tão cedo quanto, isso dava pouco espaço para dedicar-se ao ensino escolar que ficava no centro do pequeno assentamento, desta forma, tudo que a criança nativa conhecia dali eram as tradições orais familiares e delas vinham os conhecimentos que aquela criança iria carregar pelo resto da sua vida ali. Esta forma de educação aparentemente precária para os olhos de outrem acabou gerando a clonagem das gerações. Não havia progresso e nem sequer olhava-se para ele, havia apenas a clonagem onde o pai e o seu filho eram pessoas iguais – eu mesmo era uma cópia de meu pai e coube à pessoas e acontecimentos externos para me retirar da mesmice daquela clonagem.
De fato, as crianças aprendiam o que os seus pais queriam que aprendessem, isso causou com que as velhas tradições passadas pelos nossos ancestrais algonquianos permanecessem fortes em nossas mentes, como velhas histórias para dormir. Como aquelas cantigas que todos nós conhecemos, essas histórias eram passadas de geração a geração. Lendas de espíritos dos bosques e de contos tão magníficos que faziam rios congelados derreterem e o sol brilhar forte o suficiente para amortecer as geleiras e afastar de nós o nosso querido amigo assassino gélido. Porém, como você, meu caro leitor, já deve ter percebido, eu era um homem cético que odiava tais coisas, este relato de que lendas nativas passavam-se de geração a geração pode lhe parecer contraditório, mas devo afirmar que em nenhum momento as informações que lhe forneci foram falsas, e em nenhum momento, nem eu ou o meu próprio pai nos enquadramos como uma exceção da tal regra da clonagem, mas talvez, possamos nos enquadrar em um caso em particular, o caso de que o meu pai era o dono destas ideologias céticas, onde a origem de suas ideias não é importante para entender esta história, o mais importante saber é que ele passou tais preconceitos à mim e como um homem que se destacava da sua própria forma da sociedade que ali habitava, ao negar tais crenças e histórias, meu pai era malvisto, conhecido como o “Velho Lobo Mason” por sua teimosia, mas ao mesmo tempo, por seu vasto conhecimento sobre o bosque da região e era fato, ninguém conhecia mais cada palmo daqueles pinheiros e daquela extensão de terra como o meu velho pai. Ele poderia navegar facilmente por aqueles bosques mesmo com um nevoeiro tão denso que não se enxerga as próprias mãos ao entender o braço à sua frente, novamente, não subestime a ideia do costume e da rotina, esta transformou meu pai em um caçador nato e um navegador infalível, tanto que não foi nem um urso, lobo, coiote, frio ou fome que finalmente me fez enterrar o velho sob o seu caixão de terra e vermes, mas sim, a remota idade. Enterrei meu pai em um inverno de novembro, ao lado da charneca onde vivíamos, era frio e eu não senti muito, levei o seu rifle às costas e continuei a fazer o seu trabalho por ele.
O Velho Lobo Mason tinha me ensinado à caçar e à sobreviver, então, para conseguir comer eu aprendi e aquelas terras que antes pertenciam aos olhos e pés de meu pai, passaram à pertencer à mim, cabia à mim coletar peles para vender aos caixeiros viajantes e cabia à mim dedicar tardes inteiras à retirar estrangeiros perdidos nos bosques de seus confinamentos gelados, se eu chegasse à tempo, passei a viver naquela mesma charneca como o meu pai tinha vivido antes de mim, com as mesmas ideias que ele passou à mim e com o mesmo trabalho e vida que ele levava. Dormia na mesma cama e comia da mesma comida, era assim que o ciclo da vida acontecia naquela cidade, um clone daquele que o criou, mas algo aconteceu para que isso mudasse, especificamente em mim, passaram-se anos que nem notei nessa vida, até um certo dia.
Era, claramente, novembro. O momento em que muitas coisas aconteciam por volta daquele ano e estava especialmente nevado e frio naquele dia, mesmo sendo em plena tarde. Fortuitamente, aquele mesmo frio incomum me manteve em casa afim de me aquecer e realizar outras tarefas que não necessitavam a minha saída, assim poderia evitar forçar-me ao frio e à possível enfermidade, por que apesar de acostumados não levamos uma vida onde hospitais estão à toda esquina, é preciso ter cuidado.
Naquela época, eu me esforçava mais do que habitualmente, o dinheiro vinha difícil e o frio tinha afastado muitos animais cujas peles eu precisava para sobreviver. Logo, eu precisava intensificar a minha caça, por conseguinte, afastava cada vez mais os animais de habitarem aquela região e eu tinha que ir cada vez mais e mais longe para caçar, o que não era um problema, mas demorava mais e eu precisava sobreviver também. Digo isto pois vai ser importante afim de entender as motivações das minhas decisões que virão em breve, pois era justamente naquele tal dia incomumente frio que tal oportunidade veio bater, literalmente, à minha porta. E já digo agora, era melhor ter morrido de frio ou fome antes de ter aceitado tal oferta tão tentadora. Não culpo os homens que bateram na minha porta – logo os introduzirei – mas culpo o maldito destino e a ganância que me moveu.
Foi com apreensão e escassa recepção que eu recebi aqueles que chamaram pelo meu sobrenome e pousavam-se na soleira da minha porta. O mais à frente, dono da fraca e esguia força que bateu sob a minha porta de madeira era um homem esganiçado, vestia trajes apertados e ao mesmo tempo grossos, já dava para notar que ele não estava acostumado com todo aquele frio. Até mesmo para o frio incomum do dia aquilo era um exagero para qualquer nativo, apesar de, ser bem comum para estrangeiros. O homem em questão trajava óculos com um par de lentes quadradas que pareciam usadas pelo tempo e sujas de neve que ele limpava quando eu abri a porta, ele sorriu para mim com educação e disse-me:
- Com licença, o senhor deve ser o Mason! – Ele abriu os braços como quem esperava uma recepção mais calorosa, em seguida, pigarreou para disfarçar a empolgação exacerbada e continuou a apresentação – Será que, antes de continuarmos, o senhor gostaria de nos convidar para dentro? Está um frio dos infernos aqui fora e os meus companheiros e eu com certeza iremos congelar se ficarmos mais um segundo aqui!
Eu olhei de soslaio por cima do ombro daquele homem magricela que agora tinha seus óculos no rosto, destacando seus olhos azuis como o gelo e a sua pele branca por baixo daquela roupa grande. Haviam mais duas pessoas com ele, um largo homem de barriga gigantesca, barba negra alongada e bagunçada, um rosto arredondado e olhos esmirrados, nariz quase torto por natureza, um urso em forma de ser humano. Ao lado dele, uma mulher, pele negra como a noite, alta com olhos de falcão, cabelos curtos e negros escondidos por uma touca branca. Ambos tinham a feição fechada em comparação ao seu extravagante porta-voz e ambos pareciam estar mais acostumados tanto com o frio quanto a estarem em lugares mais hostis.
Depois de analisar os meus convidados surpresa, eu os convidei para dentro. Não havia muito, afinal de contas e como não havia cadeira para todos, o homem grande decidiu ficar na janela olhando para o lado de fora, não que conseguisse ver muito, pois a nevasca aumentou e eles acabaram sendo forçados a ficar ao menos até ela passar. A mulher se recostou sob um canto ainda próximo à lareira e o homem esguio parecia até alérgico a chamas, ele decidiu ficar na mesa de janta que não era muito próxima à lareira por mais que ainda houvesse o fogareiro próximo, mas estava apagado.
Depois de servi-lhes algumas xícaras de café, que o homem esguio aceitou, mas nunca chegou a dar um gole, ocupado de mais com a sua pequena palestra, eles começaram uma conversa onde apenas o homem falou. Ele se apresentou e apresentou os seus companheiros, disse para mim que eles eram na verdade, seus empregados, já que ele tinha os contratado, mas apenas para um pequeno serviço que ele chamou de aventura. Ajeitando seus óculos após completar a sua introdução ele alegremente olhava para os lados constantemente e depois de alguns minutos tendo passado, ele apressou-se:
- De fato, um pequeno lugar tem aqui, não? – Ele sorriu – Por acaso o Velho Lobo está fora? Eu realmente precisava falar com ele, anseio em torna-lo um de meus companheiros temporários para esta aventura sabe, ele é o homem perfeito de quem ouvi falar, conhece estas terras e especialmente o bosque, o qual nutro uma curiosidade maior, no qual eu desejo me aventurar! E seria tolice avançar em terras tão perigosas sem alguém no qual eu possa confiar como um habilidoso guia e talvez até protetor das enfermidades tanto naturais quanto selvagens da região, sabe, meus amigos são ótimos no serviço de proteção no qual foram contratados, mas não conhecem este local tão bem, eu realmente preciso encontrar este homem.
- O senhor conheceu o meu pai apenas por boatos? – Eu perguntei, curioso, mas já sabendo exatamente a resposta que eu iria dar, pois meu pai se encontrava em decomposição ao lado da charneca já fazia anos.
- Ah, sim – O homem falou enquanto os seus companheiros terminavam suas xícaras – Ouvi que o homem certo para nos guiar através desse bosque traiçoeiro definitivamente seria o Velho Lobo.
- Exatamente, seria – Eu respondi de imediato, provavelmente com certo desdém estampado no meu rosto, mas o homem não pareceu captar o meu desdém.
- Entendo – Ele pareceu consideravelmente decepcionado por alguns segundos enquanto observava a nevasca cair do lado de fora. E enquanto a neve caia, ele pareceu ter o seu rosto iluminado por uma recente ideia – E você é o seu filho, não é? Vive na casa indicada e atendeu pelo sobrenome de Mason.
Eu ergui s sobrancelhas e encarei novamente o homem, algo sobre ele me inquietava, mas não saberia colocar em palavras, apenas respondi:
- Correto.
- Pois ele o teria ensinado tudo o que ele sabe, não?
- Vejo onde quer chegar – eu lhe falei.
- E então?
- Me recuso – Eu falei prontamente, não estava disposto a servir de guia turístico para estrangeiros, especialmente a homens tão suspeitos. Se dizia amigável, mas que homem amigável trás consigo dois mercenários? Era um problema que eu me recusava a ter. Se eu tivesse apenas mantido a minha mente naquela recusa, muita coisa deixaria de acontecer.
- Vai recusar sem mesmo ouvir o que eu tenho a dizer? – o homem perguntou, eu apenas respondi que não importava o que ele iria dizer, mesmo assim ele insistiu em continuar falando e tive a sensação de que ele iria continuar insistindo, pelo cansaço, cedi e deixei-o se explicar – Sou um caçador. Mas não somente um caçador qualquer que se mantém em lobos e cervos, não. Sou um caçador peculiar, pois eu caço coisas que teoricamente não existem.
- Não existem? – Perguntei intrigado, e da minha pequena curiosidade ele puxou uma linha de oportunidades.
- Ah sim! Coisas que não existem, sabe – Ele falou, orgulhoso de si – Monstros, ou mais especificamente, lendas.
Assumo, naquele momento eu queria cair na gargalhada, aquele homem era apenas uma fraude, pensava eu. Mas me segurei à apenas uma risada que o homem respondeu com um sorriso antes de voltar a falar:
- No momento, estou atrás do espírito do bosque. Mais especificamente, a ganância e o assassinato encarnados. Andarilho dos ventos frios. O Wendigo.
- Wendigo?
- Exatamente, meu caro Mason. O Wendigo.
- E já conseguiu algum sucesso com alguma caça antes?
- Creio que não, visto que esta é a minha primeira.
- Que piada – Eu não conseguia mais ouvir aquilo, era risível e ia contra tudo que eu pensava. Lembrem-se, eu era um homem cético que não gostava nem de ficções que se diziam ficções e aquele homem estava dizendo para mim que caçava monstros.
- Ah, não senhor. Não rio. Eu pretendo começar a minha belíssima coleção – Ele falou – Mas veja bem, alguns homens nascem para a força e outros para a ambição, as vezes ambos. Mas infelizmente, contento-me em não ser ambos. Sou apenas a ambição, ainda preciso da força. Por isso, eu contratei os meus queridos companheiros ali apreciando o seu delicioso café, e por isso eu pretendo contratar o senhor.
- Ainda me recuso. E me recuso dez vezes mais – Eu me levantei – Normalmente nem permitiria um homem falar destas baboseiras no meu teto, porém, não expulsarei convidados em uma nevasca destas. Porém, peço que não volte a falar disso até chegar a hora de partirem.
- E se eu disser que tenho uma proposta que o senhor não irá querer recusar, Sr. Mason?
E foram essas palavras que iniciaram tudo. Eu deveria ter me mantido firme no meu ceticismo, na minha tolice.
- Proposta? – Perguntei, curioso.
- Sim! Sente-se e contarei para o senhor, foi a mesma proposta que eu fiz para os meus companheiros atrás de mim e tenho certeza que o senhor ficará tentado em aceitar.
Por algum motivo, sentei-me e ouvi o que o homem falava. Em suas palavras bonitas e discursos longos, perdi-me entre nevascas até que esta finalmente cessou. Não acho que seja significativo as palavras ou discursos que ele usou para me convencer, pois de fato parecia o diabo falando. Entre outras coisas, ele falou um valor e um motivo, meus olhos cederam e a minha ganância tomou conta de mim, eu aceitei e apertei a mão do diabo, selando ali, naquele exato dia, a minha destruição completa.
A nevasca parou, o homem e os seus companheiros foram embora, voltariam no outro dia para partir em sua caça impossível, pelo menos assim eu acreditava. Armei-me com o velho rifle de meu pai e quando chegou o dia de ir, eu parti junto deles. Fomos até o limite do bosque através das estradas que não estavam cobertas pela nevasca de ontem e depois disso, passamos a seguir para dentro das árvores a pé, devidamente agasalhados e armados, preparados para qualquer encontro hostil com a natureza que poderíamos encontrar.
O dia passou e após ele veio a noite. Enquanto caminhávamos pela natureza, o frio sempre nos perseguia, por onda andávamos era incomumente frio e mais tarde, a neblina veio. Chegou um ponto que durante a noite era simplesmente impossível querer atravessar quaisquer bosques com três pessoas que nunca tinham andado ali, então, eu sugeri que acampássemos para seguir no próximo dia, eles aceitaram e eu levei-os até uma gruta próxima onde decidimos nos abrigar da fraca nevasca que começava. Mais tarde eu tinha confirmado que aquela era uma boa ideia, pois a nevasca se intensificou proporcionalmente rápido, tivemos que nos aprofundar na gruta para poder acender uma fogueira adequada com os equipamentos que tínhamos e nos aquecer com quaisquer roupas e modos que pudemos.
Enquanto um dos mercenários ficava de vigia próximo à entrada da gruta e a mulher adormecia, eu e o homem sentamos na beira da fraca fogueira remexida pela brisa fria que escapava até esse ponto da gruta.
- Você não é um homem que acredita em muitas coisas, não é, Sr. Mason?
- O que me entregou? – Eu perguntei.
- Seus olhos, eles faltam o brilho.
- Brilho?
- Sim. Eu acredito que todas as pessoas tem seu próprio brilho, aquele da curiosidade, ambição e sonhos. Você não tem isso, parece um homem vazio.
- Julga-me por vazio apenas por não acreditar nestas histórias idiotas?
- Ah não – Ele defendeu-se, erguendo as mãos inofensivamente – Você tem todo o direito de não acreditar nelas. Porém, Sr. Mason, se em nada acredita, como irá viver?
- Eu me sinto bem vivo agora – Eu retruquei, cutucando a fogueira irritadiço.
- Ah não, você sobrevive Sr. Mason – Ele me explicou – Viver é ter o brilho que lhe falta.
Irritado, eu o respondi com tom mais alto.
- Ah é? Pois talvez eu não me importe com o seu tom ou o seu Wendigo! – Levantei-me, irado, e arremessei o graveto que cutucava o fogo junto ao resto da lenha – Talvez eu não queira acreditar nessas idiotices que você chama de caça. E sabe o que acho? Que o senhor, com todo respeito, é um charlatão ou um tolo, e não sei o que é pior!
O homem apenas encarou o fogo enquanto eu falava e disse, quase em voz baixa:
- O senhor vai acreditar...
- Quando o seu Wendigo aparecer? – Eu falei – Por que ele não vai... Preciso tomar um ar. Não se preocupe, eu sei voltar e não lhes abandonarei. Mas amanhã eu lhes mostrarei o caminho de volta para a casa e não precisa se preocupar em me pagar, eu já não me importo.
E assim, eu caminhei batendo os pés para fora da gruta, passei pelo homem que tinha adormecido no chão da gruta com um rifle na mão e apenas entrei na nevasca neblinada sozinho.
O frio era grande e a nevasca era forte, mas as árvores me davam apoio o suficiente para me locomover, mesmo assim, assumo que subestimei a força dos ventos ou o frio, estava incomumente frio novamente e esta nevasca me era vagamente familiar. Eu vaguei por pouco tempo até finalmente encontrar uma árvore onde me sentar e aguardar até a cabeça esfriar. Fiquei pensando nas minhas ideologias e como aquele homem era o contrário de mim, fiquei pensando por um bom tempo em meu pai e se ele teria se irritado desta forma e desistido assim de um trabalho tão lucrativo, mesmo que fútil.
Enquanto o frio trespassava por mim, como um velho amigo, eu escutei o som de algo se mexendo e não era o vento da nevasca pois eu sabia muito bem como diferenciar. Instintivamente, alcancei o meu obro para o meu rifle.
- Droga! – Sussurrei para mim mesmo quando percebi que, na pressa e irritação, tinha deixado o rifle para trás na gruta e por mais que eu conseguisse ver o brilho da lanterna do outro da clareira onde a gruta estava, eu não poderia simplesmente atravessar, precisava me segurar nas árvores devido à força do vento.
E que animal caça em nevascas tão fortes? Lobos e coiotes não se atreveriam, precisava ser algo maior, tanto devido ao som que fazia quanto ao fato de estar conseguindo se mover neste vento, foi quando o frio se intensificou e eu fiquei extremamente parado afim de tentar me esconder e rezar para que o meu cheiro tenha ido com vento, mesmo se eu quisesse, eu não conseguiria me mover naquele momento pois o meu corpo gelou mais do que qualquer frio conseguiria quando a silhueta apareceu na minha frente.
Não era um lobo, coiote ou urso, isso eu posso afirmar, pois andava em suas pernas. Era esguio e por mais que a escuridão não tenha permitido uma visualização melhor, eu conseguia muito bem descrever os seus longos braços afilados e os seus chifres de alce, como se o animal tivesse decidido andar em duas patas e alongado os braços anormalmente. O que seriam os seus olhos pareciam brilhar no escuro ou poderia ser um reflexo da luz. Ele virou a galhada na direção contrária e tranquilamente, como se não tivesse que resistir ao vento, ele caminhou para a gruta. E eu percebi, que ele não precisava, pois ele era o vento e o frio e aquela nevasca era por causa dele.
Paralisado eu fiquei por segundos até ter o impulso de agir. Comecei a me forçar até as árvores com minhas pernas tremendo, já não sabia o que fazer ou por que eu não estava correndo na direção contrária, mas estava indo na direção da gruta. Eu estava próximo à entrada quando ouvi o primeiro grito, o grito feminino de terror que até hoje corrói a minha mente como o início do terror que eu estava prestes a ver.
Eu cheguei na gruta e me arrastei correndo para dentro onde a fogueira estava apagando devido ao vento e vislumbrei uma visão de terror. Eu via, o homem mercenário de longa barba e barriga, como se estivesse insano, jogado por cima da mulher morta e devorando a sua carne. Ele puxava com os dentes a pele da mulher e sua boca ainda estava repleta de sangue quando ele se virou pra mim com aqueles olhos brancos como o inverno, o mesmo brilho que eu vi na criatura.
O homem saltou na minha direção, mas eu precipitei-me onde tinha deixado o rifle e antes que aquela massa gorda e ensanguentada conseguisse me alcançar, eu abri um buraco no seu ombro e depois no seu peito, cai ao chão junto do corpo do homem enquanto o sangue espirrava como uma fonte.
Eu mal tive tempo para me recuperar, pois da carne do falecido eu vi a sombra crescer e notei que não era uma sombra, mas sim o Wendigo, com seus grandes chifres retorcidos se roçando contra a carne, seus braços longos crescendo mais e a sua forma esguia tomando um aspecto horroroso.
Apavorado, eu atirei na carne sem nenhum efeito aparente e depois fugi. Minhas pernas nunca se forçaram tanto e eu nunca olhei para trás mesmo depois de entrar na nevasca assassina.
Meus pés sangraram antes que eu parasse de correr e já era de dia quando eu alcancei o fim do bosque. A nevasca já tinha parado e a minha visão ficado cada vez mais turva. Exausto, apavorado e insano, eu apaguei, apenas para acordar em minha casa, meus pés ainda ensanguentados, meu corpo ainda exausto e minha mente ainda turva com aquelas memórias horrorosas.
Foi assim que a minha vida mudou. Foi este evento tenebroso que me marcou para sempre e por ele eu perco todas as noites pois nunca mais dormi direito. Eu sonho com aqueles gritos e com aquela carne se deformando, com aquele homem se jogando contra mim e com o som do rifle disparando contra carne humana. Nada no mundo me faria sair da minha terra natal, mas aquilo fez.
Aqui encerro meu relato. Nunca mais vi o diabo que me levou até aquele momento e nem sei o que aconteceu com ele. Às vezes, penso que enlouqueci, mas então o Wendigo me visita em minhas memórias para garantir que eu lembre sempre de seu horroroso aspecto. E as vezes, eu penso se ele está me observando. O mais cômico e irônico é que eu passei a ser uma das histórias que eu tanto abominava. Encerro este relato com um frio, pois apesar de ter escapado daquelas terras, durante as noites, eu sinto constantemente um frio incomum aonde quer que eu vá.
1 note · View note
filipemduarte · 2 years
Text
Pensamentos de um Defunto Invisível.
Eu morrerei em breve. Sozinho em uma casa que não é minha. Nunca tendo cumprido os sonhos cuja esperança eu depositava para o meu futuro. E ainda por cima, por algo que eu não consigo nem ver ou sentir. A última coisa que farei, de fato, é escrever esse relato. Se é que o terminarei antes daquilo me alcançar, onde quer que esteja neste momento.
Então, criatura vil. Se lês meu relato após a minha morte, e se rastejas pelo teto como uma aranha doméstica, se espreitas pelas sombras como um ladrão qualquer, quero apenas descrever como eu encontrei o meu fim precoce, irônico e cruel.
Muitos começam tais relatos, que provavelmente seriam cartas de despedida para familiares onde os covardes colocam palavras de arrependimento e desejos ilusórios, com o seu nome. Não vejo utilidade em colocar aqui o meu nome, como se esta história fosse minha. Talvez ela seja parte da minha história de fato, especialmente pelo fato de que a minha história acaba aqui. E talvez, este pedaço final da minha vida faça parte desta história como um todo, mas eu sei, que este pedaço é apenas uma parte de uma narrativa maior que começou antes de mim e terminará, se terminar, após o meu oblívio. Sei também, que não sou protagonista ou herói, não me vejo Aquiles, mas também não sou narrador trágico e pessimista como Brás Cubas. Sou aquele que aceitou o destino da coadjuvação, à mera sombra de uma história, aceitei a minha invisibilidade quanto aos fatos maiores que eu. Se talvez existir um protagonista neste conto, dedico toda a minha indicação para a criatura que abrirá minhas entranhas e arrancará minha traqueia. Pois ela que se deitará sob o meu corpo frio e dilacerado, se esbanjará sobre os meus órgãos estripados e comerá a minha carne póstuma. Mas caso seja demais dar o papel principal ao meu assassino cruel, dê-o à mosca na parede que observa meu trágico fim, à dê este papel de protagonista como um observador, como um Watson, exceto que talvez, não me veja como Sherlock. Aceito a invisibilidade de braços abertos e com isso, já ficou mais que claro que a morte não é nem tentadora ou temerosa, é apenas questão do tempo de ceder à sua vontade, pois no momento que eu avançar para aquela porta, eu serei um homem morto.
Ainda sim, devo contar parte da minha história afim deste pedaço de conto fazer sentido, afinal de contas, é à partir das palavras deste homem morto e autor defunto que você entenderá o horror em que me encontro. Para isto, não preciso contar da minha invisibilidade ao mundo, não preciso contar que sou um homem pequeno que carregava consigo grandes ambições, pois somente nestes momentos e soturna reflexão percebi o quanto estas ambições são tão invisíveis quanto o meu próprio ser. Andei por ruas da vida atrás das lentes de uma câmara fotográfica, onde todos viam as minhas fotos mas nunca os olhos que viam a paisagem. Eu nunca fui um homem, fui apenas um fotógrafo e os meus sonhos morrem comigo, dilacerados nesta poça de sangue que já enxergo sem precisar vê-la de perto. E apesar de saber que em breve estarei em dor excruciante, o meu peito já dói ao sangrar sonhos e necrosar esperanças, minha determinação está toda dedicada à estas palavras e à situação em que me encontro agora, pois foi por conta da minha máquina fotográfica que eu vim parar nesta velha casa onde me encontro atualmente.
Fui pago para um serviço: fotografar esta velha casa abandonada cujo velho dono tinha morrido dentro dela, velho e esquecido. Ninguém soube o nome dele, exceto talvez, aqueles cujos documentos empoeirados decoravam a mesa, pessoas como eu, estes nomes não importavam. O velho morreu no sono, segundo disseram, vivendo sozinho, não foi encontrado mesmo depois do corpo passar dias apodrecendo, e sem família para reivindicar, o funeral se deu sem visitantes. O homem morreu como eu vivi, invisível.
Fui até a casa nesta mesma noite em que escrevo, ainda chove lá fora através destas janelas de vidro e venezianas de seda tão fina que jamais poderei chamar de minha. Gosto de fazer meus serviços no cair da tarde, pois posso caminhar pelas ruas à noite apreciando o céu noturno. Onde poucas pessoas caminham nas ruas e ocupam tal espaço. Enquanto escrevo este relato, o sol nasce. Irônico, pois o sol nasce e eu morro.
Enquanto fotografava o quarto do falecido, eu fotografei as paisagens das paredes abandonadas, do velho assoalho de madeira preservado, dos móveis sujos de poeira e esperanças mortas, dos candelabros que penduravam velas e sonhos suicidados, e é claro, da velha cama onde jazia o fim da felicidade. O último descanso do velho, o túmulo de seda e solidão no qual ele se envolvia em seu último descanso e suspiro. Naquele momento, enquanto apertava o botão da minha máquina fotográfica eu refletia: qual teria sido os últimos pensamentos daquele velho solitário e invisível ao mundo? Eu não tinha refletido antes o motivo da minha pergunta, talvez fosse curiosidade de estar em um local agourado por uma morte tão trágica e pesarosa, talvez fosse por vontade de não querer morrer dessa forma ou talvez fosse por que eu já sabia que esta seria exatamente a forma que eu iria falecer, e queria saber se os pensamentos dele seriam os mesmos que os meus. O flash da foto disparou e iluminou a cama, se juntando à iluminação das luzes próprias do quarto, eu baixei minha câmara e voltei ao meu trabalho. Minutos depois, quando eu terminei de fotografar o quarto por completo e cada detalhe necessário, eu voltei para o velho hábito de verificar cada foto e a sua qualidade, excluir as excedentes e seguir em frente para o próximo cômodo. Foi quando eu vi, a criatura vil que agora me persegue.
Debruçada sob a cama, repousada em um túmulo de seda e solidão, lá estava ela em toda a sua glória putrefata e descarnada. Tinha um semblante humanoide pois tinha braços e pernas como eu, mas não tinha sequer um pelo no corpo, e pior, sua pele parecia completamente arrancada. Era como se saído diretamente de um pesadelo. A coisa parecia coberta de espaços onde cabiam olhos mas ela não tinha nenhum. Todo o seu braço e pernas eram repletos de buracos vazios como o próprio abismo infinito do inferno. Cada pedaço daquela criatura era coberta de morte e solidão, e é claro, de desespero. Ela parecia um dos demônios escapados de Hades, um ser imundo cuja aparência se fora para sempre. A própria visão daquilo me fez vomitar e o meu estômago revirar, o choque me paralisou por minutos e eu não acreditei no que estava vendo através das lentes de minha máquina que nunca me mentiu, porém, quando eu olhava para cima, tremendo de medo, eu não via nada deitado sob a cama.
Naquele momento, questionei minha sanidade, mas sempre que voltava o meu olhar para aquela foto macabra, eu via a coisa e criei um nojo e terror sempre que via o seu semblante. Tão horrendo e pulsante que parecia que tinha um aspecto diferente sempre que eu observava, como se aquelas cavidades oculares vazias estivessem se deslocando pela sua carne deformada. Uma pessoa de consciência ou aterrorizada provavelmente teria corrido imediatamente dali, mas quem sabe isso só ocasionasse minha morte precoce, porém, eu pensei. Eu passei horas nesta casa, minutos neste quarto e nada aconteceu comigo. Talvez, deformada como estava, a coisa estivesse morta. Então eu decidi tirar outra foto para analisá-la melhor e para garantir que eu não estava completamente louco, desta vez, por outros ângulos. E sem surpresas, não importava o ângulo que eu batia as fotos, a criatura continuava ali, deitada em seu sono sepulcral. Eu não sabia se ela respirava, afinal, era uma imagem estática desprovida de movimentos, exceto talvez, por aqueles que o meu cérebro horrorizado inventava. E nem sabia se estava completamente morta, ou se eu poderia despertar o seu sono com as minhas constantes e metidas investigações fotográficas.
Foi então que, lentamente, eu decidi sair do quarto e me coloquei do lado de fora daquele cômodo onde respirei leve pela primeira vez sem perceber que haviam passado horas. Eu não me atrevia à olhar para as fotos mais uma vez, pois elas me causavam uma aversão que eu seria incapaz de descrever aqui. E sentado, encostado com as costas na porta do quarto, eu suava frio e chorava de desespero, realizando, não importava o que eu pensasse, que aquilo era real e que eu estava vivendo um verdadeiro horror. Aquela criatura, invisível aos olhos humanos, provavelmente vibrava em condições que apenas a lente fotográfica conseguia captar. Eu até poderia fazer o teste para descobrir se era sólido, mas eu não tinha a coragem para tentar encostar naquilo jamais. Os vários ângulos mostravam que aquela coisa realmente estava lá e que não fora alguma falha macabra da câmera fotográfica. Todos os sons me assustavam durante aquelas reflexões. O som do vento batendo fraco contra a janela, dos gatos miando do lado de fora e dos cachorros latindo. Foi então que eu comecei à pensar no que poderia acontecer comigo se aquilo despertasse, afinal, tinha garras que pareciam dilacerar concreto e bocarras com dentes afiados que destruiriam meu crânio em segundos, era aterrorizante, uma verdadeira fera horripilante, um diabo bizarro e deformado. Eu morreria sozinho, por que afinal, não tinha ninguém. Sem uma família que sentiria minha falta, eu jantava sozinho todas as noites. Sem amigos que notariam minha ausência, tinha apenas colegas que não sabiam o meu nome. E ainda por cima, nem sequer a empresa que tinha me contratado esperava receber qualquer notícia de mim em dias, eu estava verdadeiramente isolado da existência. Pela primeira vez na minha vida, eu me senti verdadeiramente invisível e aquilo me causou um medo descomunal e irrefreável que apenas foi cessado pelo som do assoalho rangendo levemente.
Eu sobressaltei, poderia ser a minha paranoia novamente, mas o som tinha vindo de dentro do maldito quarto. Engoli em seco, precisava saber. Abri a porta e nada vi. Segurei minha câmera tremendo e suando, lágrimas escorriam pelo meu rosto quando o flash iluminou a sala, eu esperei o golpe mas nada veio. Por que quando eu olhei para a foto que tinha batido, não havia mais nada na cama. Eu poderia ter reagido com alívio, pois teoricamente, a criatura teria ido embora ou nunca existido. Ao menos, morreria tendo um momento de paz. Mas isso não aconteceu pois a minha paranoia só pensava em uma coisa: Onde ela está agora?
E é desta situação que escrevo o meu relato. Vejo, do outro lado desta última sala, a porta que me separa da liberdade. Vejo o sol nascer mas sem esperanças de ver o dia que ele acompanha, porém, eu preciso tentar. E com ele vãs promessas que farão eu me mover novamente. Pois até mesmo os meus pés dormentes precisam de motivação.
Não quero morrer invisível ou sozinho. Não quero ter pensamentos de arrependimento. Se eu escapar por aquela porta viverei pela primeira vez e farei valer a pena. A criatura invisível não me perseguirá pois eu fugirei o mais rápido que puder, desta minha velha vida em direção à uma nova.
Se eu fugir, terminarei este relato com um último parágrafo de como esta experiência me fez viver de verdade e buscar a verdadeira visibilidade no mundo e não morrerei em frio chão ou vento soturno.
Seriam estes os pensamentos de um defunto invisível prestes à morrer? Pois muito bem, à porta.
4 notes · View notes
filipemduarte · 2 years
Text
O Canto da Valquíria.
Antes de começar, eu devo deixar algo claro: Este é um relato duvidoso e eu suponho - e, sinceramente, rezo - que muitas das coisas que estou prestes à escrever sejam meramente obras da minha mente insana.
Naquele dia eu estava sob grande estresse e por mais que seja monótono e enfadonho, devo detalhar os motivos deste estresse pois sem eles a minha louca jornada e as más decisões que tomei não fariam sentido algum, sem este contexto, você acabaria como eu, jogado em um campo de batalha em meio à um mar de tiros e morte.
E é justamente aí que iremos começar.
No ano de 1914 o Kaiser lançou uma ofensiva à Bélgica e deu o primeiro passo para começar a Guerra que iria acabar com todas as guerras. Eu, como muitos soldados, fomos mandados para garantir a vitória, uma luta dos poderosos.
Eu, assim como muitos que marchavam ao meu lado, sabíamos que éramos meramente peças para um trabalho acima de nós. Anos depois, estas palavras ainda podem soar estranhas aos ouvidos daqueles que vivem a ascensão do ódio ao inimigo, mas naqueles tempos, era como se fosse mais um trabalho.
Não éramos tolos, sabíamos o enorme risco que tomávamos. Mas era certo que voltaríamos para casa antes do Natal. Porém, quando a neve caiu nas trincheiras no dia 25 e nós não sabíamos quando iriamos voltar, as coisas começaram à ficar suspeitas.
A vida nas trincheiras era terrível, mas estou certo de que muitos outros soldados relatavam ao mundo os terrores que nós vivíamos naqueles dias. Certamente devem ter contado que o mesmo lugar onde defecávamos e urinávamos era o mesmo lugar onde dormíamos. Certamente contavam como os ratos nos faziam companhia e as vezes o silêncio era tão sepulcral que apenas conseguíamos ouvir o uivar do vento e os chiares dos ratos se remexendo entre as nossas coisas.
E quando chovia, éramos mergulhados naquelas águas insalubres, forçados à conviver abaixados e escondidos sob buracos apertados e nojentos. E o pior de tudo, quanto mais tempo passávamos, mais percebíamos que aquilo não ia durar apenas meses.
Passávamos horas encarando a Terra de Ninguém, aquele lugar hostil e ameaçador. Às vezes, fazíamos investidas infrutíferas, e nossos corpos se amontoavam à mais corpos naqueles quilômetros impenetráveis, repletos de terra morta e imunda, cadáveres putrefatos, mijo e fezes daqueles que morreram com medo, arames, buracos de bombardeios e é claro, o ar frio que nos penetrava como mil facas atravessando nossos corpos cada vez mais esguios e doentes.
Eu vi meus companheiros morrendo. Um à um. Todos aqueles os quais eu compartilhei marcha e cerveja. Aqueles cujas conversas me acalentaram na noite de Natal. Aqueles homens cujos rostos eram os únicos que eu via por meses. Todos eles morreram.
Alguns tiveram mais sorte, foram cravejados por balas nos primeiros dias e morreram imediatamente e com valentia na Terra de Ninguém, até hoje, ninguém recuperou os seus corpos que apodreceram, se tornando um com o campo de batalha como se suas almas tivessem sido levadas por valquírias. Outros só precisaram de um projétil enferrujado de alta velocidade atravessar o seu peito para serem tomados pela gangrena, infecção e pela morte dolorosa. Esses também tiveram sorte, no fim, os vivos tinham inveja dos mortos.
Mesmo sem morrerem lutando, alguns sucumbiram. Vi homens apodrecerem com meus próprios olhos, tomados pela gripe ou simplesmente por doenças cuja minha ignorância ou capacidade mental não eram suficiente para entender naquele momento. Eu vi homens se jogando contra o chumbo das Terras de Ninguém e vi aqueles que estavam fracos demais para se enforcarem.
Certo dia, um dos meus melhores companheiros, cujo nome ficará esquecido para sempre em minha memória pois a dor daquele dia é difícil demais para mim, chegou até mim. Ele estava pálido, esguio e mofado. Seus pés gangrenados, já faziam dias que ele apenas se movia arrastando-se, até, é claro, suas mãos cederem. Ele não tinha como segurar uma arma, estávamos longe demais para qualquer oficial nos encontrar por dias. Ele me implorou para que eu atirasse nele, pois ele sabia, que mesmo que ele voltasse para casa e seus ferimentos fossem tratados, ele jamais seria o mesmo homem. Eu não sou um homem de família e não tenho ninguém esperando por mim, mas aquele homem era, e ele não queria os seus filhos tendo a memória de seu pai esfacelado pelo resto da vida. Queria morrer como um herói da pátria, nas mãos do inimigo. Até hoje carrego essa mentira quando atirei em sua cabeça, a mentira de que ele morreu lutando como um guerreiro e que sua alma foi imediatamente levada à Valhalla onde ele janta com os deuses em suas infinitas lutas.
Que idiota, quem iria querer viver isso novamente? De novo e de novo?
Eu estava à beira da perdição. Chame isso de sorte ou se azar, mas eu era o único homem que não foi seriamente ferido, que morreu em batalhas e que não foi atingido por uma doença incapacitante desde o começo da batalha de Ypres. Eu tinha visto esse inferno começar e estava convencido de que Odin me escolheu pessoalmente para ver esse inferno acabar. E que fique claro, eu não sou um guerreiro feroz digno dos 540 quartos do palácio de Odin ou da dourada árvore Glasir em toda a sua resplandecência. Não, eu sou um homem fraco e sempre fui. Minha mente sempre foi quebradiça desde antes da Grande Guerra e até hoje me surpreendo como fiquei são por tanto tempo. Porém, esse tempo eventualmente chegou ao fim.
Eu tenho sérios lapsos de memória que não consigo lembrar não importa o esforço empregado. Mas o pior não é isso. O pior de tudo são as memórias - ou quem sabe sonhos ou ilusões - que eu não consigo esquecer, não importa o esforço que eu empregue. Lembro de rir-me como um verdadeiro louco literário e lembro dos momentos onde eu sentava recostado sob buracos e escondido pela lama onde esperava apenas morrer de inanição.
E lembro-me do dia. Em um desses lapsos de insanidade, eu escapei com que restava de minhas forças, já doente e com a mente quebrada, e caminhei pela Terra de Ninguém.
À partir de agora, o que irei contar serão memórias tão brandas e rachadas, que parecem mais ser tiradas de um sonho, ou melhor, de um pesadelo. Eu não posso dar certeza de que as coisas que presenciei são verdadeiras ou são obras dos meus devaneios. Eu não estava mentalmente equilibrado para estar na situação que estive, e especialmente para presenciar aquilo.
Enquanto vagava, minha mente também vagava, entre a perdição total, entre o medo e o meu desespero para retornar para a segurança. Mas também vagava entre um total alienamento da realidade e de pensamentos ilógicos. Entre esses pensamentos, algo que não deixava de sair da minha mente eram as valquírias e os soldados nórdicos. Eram os deuses Aesir e Vanir. Pensava na Yggdrasil como se as raízes delas me envolvessem em um quente abraço. Eu ouvia os trovões das chuvas que passavam como se Thor martelasse com o seu poderoso Mjolnir os céus belgas nublados. E via, acima de tudo, as silhuetas das valquírias coletando as almas daqueles que caíram naquela Terra imunda e levando para os céus, porém, sempre que eu corria manco para alcança-las, elas desapareciam em fumaça e visões.
Tinha momentos em que minha razão tentava tomar conta e eu me perguntava se realmente enlouqueci. Chorava e soluçava ao ver o meu fim trágico e covarde. E no fim, eu chorava por não poder ver os salões de Valhalla com meus próprios olhos. Que valquíria recolheria um homem como eu? Ensopado em lágrimas e no sangue culposo de seus companheiros, doente, esguio e faminto. Pálido pelo frio e com a mente estilhaçada.
Foi quando eu vi.
A valquíria com o seu canto se aproximar de mim. E os meus olhos não conseguiam acreditar no que viam, por que durante todo esse tempo, eu vagava sob uma estética onírica e incerta, mas naquele momento era como se eu tivesse, por um segundo, recobrado completamente a minha sanidade e a minha razão, como se tivesse acordado de um longo sonho devido ao choque do que avistei.
Se arrastando com o peso de mil grilhões, ela vagarosamente aproximava-se de mim, que estava fraco demais e aterrorizado demais para se mover ou esboçar qualquer reação. E ela continuava com sua marcha, como se fosse um batalhão de soldados se aproximando para a guerra.
A valquíria não era linda ou bela como o prometido. E nem sequer parecia ter uma aparência de verdade, era como se o que eu visse fosse apenas um produto bizarro da minha mente distorcida tentar reconhecer algo afim de eu não entrar em catatonia completa. Era demais para eu reconhecer, mas o que eu conseguia ver me chocou até o âmago do meu ser e quebrou toda a razão que eu um dia poderia ter tido. E por mais que eu duvide se aquilo realmente aconteceu, eu agradeço pela minha insanidade, pois se eu avistasse aquilo marchando em minha direção enquanto eu estivesse completamente são, eu saberia que aquilo realmente existiu e enlouqueceria por completo com apenas uma visão.
E por mais que seja incompleto e a minha memória esteja faltando pedaços daquela descrição, tem coisas que eu não consigo jamais esquecer, pois me marcaram demais para serem jogadas ao oblívio do esquecimento.
Provavelmente por produto da minha mente, a coisa parecia ser uma amalgama de todos os corpos que eu já vi caírem ao meu lado, de todos aqueles que morreram no campo de batalha. Daqueles que foram explodidos por bombas, daqueles que foram alvejados e tiveram seus braços ou pernas decepadas pelo chumbo, mas também daqueles que gangrenaram e morreram de necrosa enquanto cuspiam o seu sangue negro apodrecido. Daqueles alvejados à morte, daqueles que suicidaram-se ao inimigo e daqueles que foram jogados para fora pois morreram doentes. Ela continha todas aquelas almas condenadas dentro de seu corpo. Seus pés, mãos, braços e cabeças estavam aglutinados e escapando para fora daquele ser amórfico e bizarro que não parecia ser algo verdadeiramente vivo ou morto, parecia uma obra do inferno e um sinal do Ragnarok.
E enquanto a valquíria marchava como uma comitiva, eu conseguia ouvir um som distante. Eu jamais poderei descrever aquele som de uma forma à equiparar o que eu senti naquele momento então nem sequer tentarei. Era algo incompreensível demais para a minha mente, uma canção sem acordes, melodia, letras ou musicalidade. Eram ritmos completamente alienígenas à mente humana e pareciam mais sons da verdadeira agonia invisível onde a dor sentida poderia ser ouvida em forma de uma canção fúnebre e sem sentido.
A última coisa que me lembro foi desta canção e da coisa se aproximando cada vez mais. Jamais saberei o que aconteceu em seguida ou se isso foi sequer real. Quando me dei conta à mim, eu tinha acordado em um hospital para feridos de guerra e jamais ouviria mais nenhum som na minha vida, me tornara surdo completo. Os médicos me informaram que não tinha encontrado uma causa adequada para entender o motivo da minha surdez, culparam o choque e a doença, mas novamente, para um homem que viveu meses nas trincheiras, eu não havia adoecido seriamente um dia.
Tentaram explicar a minha loucura psiquiatricamente da melhor forma possível, mas os últimos relatos sobre mim foram apenas o meu desaparecimento à qual me recordo e de me encontrarem ileso do lado de fora das trincheiras. Segundo alguns soldados que estavam observando a Terra de Ninguém, por um milagre não atiraram em mim quando me viram correndo como um cão condenado na direção das trincheiras, eu colapsei antes de alcançá-las e apenas acordei no dia em que eu me lembro ter acordado no hospital, sem mostrar nenhum sinal de novas loucuras, sem surtos psicóticos e sem exibir um sinal de consciência. Como eu iria explicar para aqueles homens de razão que jamais tinham visto o interior das trincheiras o que eu vi?
Como eu iria explicar para eles o canto da valquíria? Como eu iria explicar para eles o que eu vi sem ser imediatamente mandado para um manicômio? Era impossível.
Mas, eu ainda sonho todas as noites com aquela coisa e o seu canto imortal sendo o último som que eu jamais escutei e terei que viver pelo resto da minha curta vida com aquelas imagens na cabeça, sem saber se eram reais ou não.
Um homem de razão poderia culpar tudo no subconsciente e na mente insana. Mas este mesmo homem jamais saberá como eu me senti naquele momento. Eu não me senti louco ou dormente. Eu não me senti embriagado ou incapaz. Eu me senti extremamente acordado e são quando a coisa marchou à mim, é um sentimento que jamais poderei verdadeiramente explicar, porém, eu ainda decidi relatar nesta carta à qual escrevo na esperança de um dia esquecer e queimar estas memórias da minha mente, mas sei, no fundo, que será impossível.
E antes que tenham pena de mim pela minha situação ou pela eventualidade da minha surdez, não se enganem. O mundo não se tornou silencioso para mim. Eu escuto, todo o tempo, o canto da Valquíria.
3 notes · View notes