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MAG063 — Fim do Túnel
Caso #0143103: Depoimento de Erin Gallagher-Nelson, a respeito de uma viagem de exploração urbana sob a Igreja de São Paulo, em West Hackney.
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Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Depoimento de Erin Gallagher-Nelson, a respeito de uma viagem de exploração urbana sob a Igreja de São Paulo, em West Hackney. Depoimento original prestado em 31 de março de 2014. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento.
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Imagino que você saiba o que é uma exploração urbana. Aposto que você já viu muitos amadores idiotas por aqui que dizem terem esbarrado num fantasma em alguma fábrica velha, então vou te poupar de explicar como funciona. E se você não sabe o que é, bom, a Internet existe. Pesquisa lá.
Eu sou o mais próximo do que você pode chamar de profissional nesse negócio, que é basicamente invadir lugares por esporte. Eu trabalho como fotógrafa, e se eu fizer tudo direitinho, consigo ganhar mais dinheiro com uma estação de bombeamento abandonada do que fotografando uma Barbie humana mimada pra "Revista Odeie-se" ou qualquer coisa assim. Sempre fomos eu e Luke Nelson. Ele era irmão da minha esposa e fazia toda a iluminação dos nossos ensaios. Pelo menos até ele ser... comido pela escuridão na semana passada.
É por isso que eu tô aqui: porque eu não sonhei com aquilo. Aconteceu. Eu não ligo pro que a Steph diz — eu não preciso falar com um psiquiatra, eu preciso falar com vocês.
Nós estávamos embaixo da Igreja de São Paulo, em West Hackney. Um edifício horrível e quadrado que realmente faz você pensar sobre os padrões dos templos de Deus. Quer dizer, só tô dizendo que se fosse minha casa eu ficaria bem irritada. Ainda assim, acho que se ele não quisesse aquilo, deveria ter protegido seu antecessor das bombas nazistas, porque a Igreja de São Paulo costumava ser de São Tiago antes de ser bombardeada até só sobrarem os escombros.
Todo mundo sempre esquece o quanto de Londres existe embaixo de Londres. Quer dizer, aqui não é tão ruim quanto em alguns outros lugares, tipo Edimburgo, onde literalmente enterraram metade da cidade e construíram uma nova em cima — mas alguns lugares não são tão diferentes disso. Eu andava fazendo várias pesquisas sobre a São Paulo que costumava ser a São Tiago, porque aparentemente poderia ser exatamente um desses lugares.
Os projetos de esgoto e subsolo do bairro pareciam indicar que havia uma grande área subterrânea diretamente abaixo da São Paulo que parecia ser evitada por todas as obras públicas — mas os projetos da igreja moderna não mostravam nada abaixo do nível do solo.
Isso queria dizer que a antiga Igreja de São Tiago provavelmente tinha uma presença considerável no subsolo que não tinha sido completamente destruída pelas bombas, e que sua herdeira não ocupou aquele espaço.
Abóbadas vitorianas de meados do século XIX, intactas por 70 anos? Era exatamente o tipo de coisa que tá na moda agora em certas revistas de arte, e eu tinha certeza de que poderia vender algumas para o Getty e vários outros sites de banco de imagens. E ei, não era como se eu já não tivesse invadido uma igreja antes.
Felizmente, a São Paulo de West Hackney era uma igreja anglicana, o que significa que eles não a trancavam tão bem quanto alguns outros lugares. As igrejas católicas podem ser uma verdadeira dor de cabeça, pois elas realmente têm alguns objetos de valor dentro que precisam ser protegidos. Mas essa, assim como a maioria das igrejas cristãs, era simples e sem adornos por dentro. Então, embora tomassem muito cuidado com os escritórios, eles não eram tão cuidadosos em trancar o prédio principal da igreja, porque, sinceramente, não tinha nada pra roubar lá — a menos que você gostasse de hinários.
Eu e o Luke levamos menos de um minuto pra conseguir entrar. Foi na última terça-feira, dia 25. Acho que tecnicamente era quarta-feira, dia 26, já que já tinha passado da meia-noite quando começamos a agir. Assim que entramos, mantivemos nossas lanternas baixas, guardamos nosso equipamento e fomos procurar qualquer coisa que pudesse nos levar pra mais baixo.
A princípio parecia que estávamos enganados e não tinha como descer. Mas aí o Luke avistou o que parecia ser um painel removível no chão, logo à direita do que parecia ser um pódio. Era mais pesado do que parecia, mas depois de um pouco de esforço com o pé de cabra, ele saiu.
Parecia que não era removido há décadas — talvez desde que a igreja nova foi construída. Mas o que me surpreendeu foi o ar que saiu lá de dentro quando abrimos. Ele sibilou, como um suspiro que estava preso há muito tempo, e o ar que subiu daquele buraco era gelado e úmido. Não foi inesperado, mas o que me surpreendeu foi como o cheiro era fresco. Como uma noite de outono depois da chuva.
Não tinha nenhuma escada pra baixo, mas trouxemos bastante corda, então descemos. A escuridão parecia nos engolir. Eu podia jurar que às vezes eu conseguia sentir ela se pressionando fisicamente contra o meu corpo.
No final das contas, faltavam só alguns metros até o chão do túnel subterrâneo, e nossas lanternas mostraram exatamente o que eu já esperava: uma antiga alvenaria vitoriana.
A passagem que se estendia à nossa frente em ambas as direções era absolutamente perfeita, e eu não perdi tempo pra tirar algumas fotos enquanto o Luke preparava os equipamentos de iluminação. Lá embaixo, os flashes eram ofuscantes, mas eu tinha certeza de que estava tirando umas fotos ótimas. Mas quando dei uma olhadinha rápida nelas pela tela da minha câmera, eu comecei a ficar irritada. O Luke estava claramente parado na frente da luz quando comecei a tirar as fotos.
Em cada foto onde a parede oposta estava iluminada pelas luzes fortes era possível ver a forma nítida da sombra de uma pessoa.
Tive uma baita discussão com o Luke sobre isso. Ele insistiu que nunca cometeria um erro tão amador. Eu respondi que ele até podia discutir comigo, mas não com a câmera. No fim, ele saiu furioso pra explorar mais adiante.
Tirei mais uma foto antes de começar a ir atrás dele. A sombra ainda tava lá e parecia estar um pouco mais perto.
Eu não sei por que ignorei aquilo. A mente humana é incrivelmente hábil em ignorar coisas que não fazem sentido — coisas que ela não quer ver. Eu convenci a mim mesma de que aquilo era uma peculiaridade dos ângulos daquele lugar. Eu nem me permiti pensar que poderia ser um problema com a minha câmera extremamente cara, então eu definitivamente não considerei a possibilidade de aquilo ter uma explicação sobrenatural.
Segui o Luke mais adiante até que, depois de mais ou menos uns 20 minutos, chegamos às ruínas de algum tipo de câmara. O telhado tinha desabada, provavelmente por causa do bombardeio que destruiu a Igreja de São Tiago, e os escombros bloqueavam a maior parte dela. Parecia que já tinha sido uma sala redonda, e de cada lado da entrada eu podia ver portas bloqueadas com pedras caídas.
Não tínhamos como mover os detritos suficientemente pra acessá-las, mas era estranho: enquanto as luzes das lanternas passavam por elas, mesmo com a maioria delas completamente cobertas pela alvenaria desmoronada, elas ainda não pareciam tão escuras quanto o corredor de onde nós viemos.
Eu tirei algumas fotos. A composição do lugar era excelente e as portas bloqueadas tinham um tipo estranho de grandeza absoluta. Elas com certeza seriam lindas se tivessem conseguido sobreviver ao que parecia ter sido um ataque direto de uma bomba alemã. Verifiquei as fotos e não tinha nenhuma sombra, o que foi um alívio.
Nós voltamos para o outro lado. Quando chegamos às cordas penduradas no buraco acima de nós, o Luke começou a ficar preocupado. Bom, com preocupado eu quero dizer: ele queria sair dali. Ele queria que guardássemos as coisas, subíssemos de volta e fossemos embora, me dizendo que estava sentindo umas vibes estranhas naquele lugar e tentava me convencer de que já tínhamos visto o suficiente. Olhando para aquele quadrado convidativamente iluminado pelo brilho da lua nas janelas da igreja, fiquei meio tentada a concordar com ele.
O problema era que, devido aos contratempos com as primeiras fotos, eu tinha uma, talvez duas fotos com uma qualidade que eu poderia usar, e isso não era o suficiente. Eu disse a ele sem rodeios que não tinha o suficiente e se eu não fosse paga, ele não seria pago. Eu vi o conflito estampado em seu rosto: ele queria sair de lá, claro, mas aparentemente não tanto quanto queria pagar o aluguel.
Então... continuamos, mais pra dentro do túnel. Não sei o quão longe fomos. Eu parava a cada 10 metros ou mais pra me preparar e tentar tirar uma foto boa, mas as sombras estavam de volta e piores do que antes. Agora apareciam duas ou três sombras em algumas fotos. Não parecia ser tão claramente uma silhueta humana, então eu consegui dizer a mim mesma que devia ser uma peculiaridade de como o túnel refletia a luz — mas, pensando agora, isso não fazia o menor sentido.
Mesmo assim, eu continuava — na esperança de encontrar algum lugar onde conseguisse tirar algumas fotos daquele túnel austero e sombrio, com tijolos tão pretos que quase pareciam carvão. Nós avançávamos, montávamos os equipamentos, tirávamos as fotos, verificávamos e aí eu xingava minha câmera. Não sei quantas vezes fizemos isso. Luke ficava cada vez mais nervoso o caminho todo.
Parecia que não estávamos muito mais do que 10 minutos fazendo aquilo, mas quando olhei meu relógio, estávamos lá embaixo há quase duas horas. A gente tinha finalmente chegado no fim do caminho, e era só isso: um fim. Uma parede de tijolos vazia indicando a parada do túnel que parecia passar por baixo de uma boa parte de Hackney.
Nesse ponto, eu finalmente decidi deixar tudo de lado e voltar. Quando virei pro Luke pra dizer isso, minha lanterna apagou. Ela não fez alarde, só piscou por um segundo e depois apagou com um leve estalo.  Olhei pro Luke prestes a pedir pra ele me passar as pilhas reservas... até ver seu rosto. Acho que nunca vi ninguém tão assustado quanto ele naquele momento. Aí a lanterna dele também apagou e não sobrou nada além da escuridão.
Eu podia ouvir ele tateando por alguma coisa que eu presumi ser as luzes da câmera, e um segundo depois ouvi o clique... clique... clique dele tentando ligá-las. Nada aconteceu. Ele continuou apertando os botões, de novo e de novo, e eu conseguia sentir o desespero dele, mas ainda estávamos presos na escuridão total.
Eventualmente, ele parou, e nós só ficamos lá. Eu queria dizer alguma coisa tranquilizadora, estender a mão e avisar que eu ainda tava lá, mas eu tava com medo de quebrar o silêncio. Eu ouvia só a respiração dele, pesada e assustada. Eu percebi a minha própria respiração: rápida e entregando o pânico que tentava fingir que não tava sentindo.
E aí eu ouvi: a terceira respiração. Era baixa no começo — longa e lenta e muito deliberada. Quanto mais eu ouvia, mais alta ela parecia ficar, como se quem quer que estivesse lá com a gente fizesse questão de que pudéssemos ouvi-la. E aí uma quarta respiração se juntou a ela, profunda e gutural. E uma quinta, uma sexta, e depois mais. Estávamos cercados por todos os lados pelos sons das respirações, ficando mais altas, mais próximas.
Luke soltou um pequeno gemido e, ao mesmo tempo, todas pararam. No lugar delas veio um barulho de raspagem, algo de metal que parecia estar sendo arrastado pelos tijolos bem atrás de nós, mas chegando mais perto, e rápido. Então, vieram passos pesados e fortes — passos vindo em nossa direção, rítmicos e sem pressa.
Quase pensei que poderiam ser as batidas do meu coração latejando nos meus ouvidos — mas o eco me garantiu que vinha do fundo do túnel. Aí o raspar começou de novo, agora vindo da outra direção, e eu caí no chão, apertando minha câmera contra o peito como uma espécie de talismã protetor.
Aí, o silêncio, mais uma vez.
O barulho que quebrou o silêncio dessa vez é o que ainda ressoa em meus ouvidos. Foi muito mais horrível do que os outros por conta do quão familiar era — embora eu nunca tivesse o ouvido daquele jeito antes. Era a voz do Luke, e ele gritava de agonia — um grito estridente e angustiante de dor e medo que varreu todos os meus pensamentos em um segundo e os substituiu por puro pânico. Eu queria correr, mas minhas pernas estavam paralisadas.
Em algum lugar da minha mente eu lembrei do flash da minha câmera e meus dedos instintivamente apertaram o botão.
Quando apertei o botão a gritaria parou com um estalo molhado, e no pior segundo da minha vida, uma explosão de luz atravessou a escuridão.
Eu vi o Luke pairando no ar. Não tinha ninguém ao redor dele, mas na parede, em contornos escuros e nítidos, vi duas sombras longas e finas paradas ao seu lado. Uma delas segurava, com braços esguios, a sombra dele pelos ombros, enquanto a outra segurava a sombra de sua cabeça decepada.
Na minha frente, a verdadeira cabeça pairava ali, suspensa como se estivesse pendurada por algum fio invisível, o sangue escorrendo pelo corpo abaixo dela. Os olhos dele me olhavam como se estivessem implorando para que o flash da minha câmera frágil o salvasse. Eu gritei.
A próxima coisa que eu me lembro foi da luz dolorosamente brilhante de uma dúzia de lanternas no meu rosto. Era o reitor da Igreja de São Paulo e um pequeno grupo do que presumi serem paroquianos. Ele não disse uma palavra enquanto gentilmente me levava de volta pra entrada. Olhei em volta para ver se o corpo do Luke tava lá, mas no fundo eu sabia que a escuridão tinha engolido ele. Ele se foi.
O reitor foi muito compreensivo, apesar de eu não estar falando nada com nada. Ele me tranquilizou com palavras suaves, me trouxe pro azul pálido do amanhecer e chamou uma ambulância pra me examinar. Eu não sei o nome dele, e foi só depois de chegar ao hospital que percebi que ele tinha levado minha câmera.
Desde então, estou sob observação do hospital. Ninguém ouve minha história e o Luke foi oficialmente dado como desaparecido. A Steph tem me apoiado muito, mas consigo ver a dor nos olhos dela. Ela sabe que eu fui a última pessoa a ver o irmão dela e isso tá consumindo ela. Eu realmente não sei o que fazer agora... além de deixar as luzes acesas.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento.
Não deveria ser surpresa pra mim, nessa altura do campeonato, que a pedra fundamental da Igreja original de São Tiago, em West Hackney, foi colocada em 17 de novembro de 1821 por Sir Robert Smirke. Mesmo assim, eu esperava encontrar pelo menos uma esquisitice arquitetônica escondida sob as ruas de Londres que não carregasse a marca dele ou de seus alunos.
Esse encontro em particular não parece ter muito em comum com outras manifestações em prédios semelhantes. Nós vemos uma espécie de padrão dele e da laia dele: sepultamentos com teias de aranha, dificuldade de navegação e agora uma escuridão violenta e assassina. Meu primeiro pensamento foi a Igreja do Povo da Hóstia Divina, já que eles parecem ter uma afinidade com a escuridão, mas não consigo encontrar nenhuma conexão de qualquer tipo entre eles e a Igreja de West Hackney.
Não que algum dos funcionários de lá tenha sido muito útil. Cada um deles afirma não se lembrar de ter encontrado a senhorita Gallagher-Nelson, apesar dos registros de internação hospitalar mostrarem claramente que ela foi resgatada de lá na manhã de 26 de março de 2014. O Tim tem certeza de que pelo menos alguns deles estão mentindo, mas não tem muito que possamos fazer pra conseguir qualquer informação que eles não queiram nos dar voluntariamente.
Não conseguimos falar com a Srta. Gallagher-Nelson. Todas as tentativas de entrar em contato foram impedidas por sua esposa, Stephanie Gallagher-Nelson, que deixou bem claro que não somos bem-vindos e não devemos tentar mais nenhum contato.
Luke Nelson continua desaparecido.
Fim da gravação.
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ARQUIVISTA
Complemento.
Estou tentando acessar o laptop da Gertrude, mas até agora não tive sorte. Nenhuma das senhas óbvias que eu tentei deram certo e eu não sei quem consegue me ajudar e ser discreto. Pode ser que tenham mais pistas nas outras fitas, mas até agora não tive nenhuma notícia da Basira. Eu tô tão perto de encontrar alguma coisa, talvez eu devesse só ir até lá—
MELANIE
Com licença, você tem um minuto?
Arquivista: Srta. King, uh, como você entrou aqui...?
Melanie: A garota nova me deixou entrar. Você tá bem?
Arquivista: Hum? Como?
Melanie: Você tá horrível.
Arquivista: Tem sido meses difíceis. Olha, posso te ajudar? Porque se você só tá aqui atrás de outra discussão—
Melanie: Não! Eu, hum... eu realmente preciso da sua ajuda.
Arquivista: Hum. Interessante.
Melanie: Tá, será que você pode não ser um babaca sobre isso? Eu só preciso de acesso à sua biblioteca.
Arquivista: Então fale com a Diana, ela que administra o lugar.
Melanie: Sim, eu não tenho exatamente as credenciais acadêmicas que vocês exigem, então aparentemente eu preciso de alguém para atestar em meu nome e você é basicamente a coisa mais próxima que eu tenho de um amigo aqui.
Arquivista: Nós conversamos uma vez e acabamos gritando um com o outro.
Melanie: Sim. E isso é mais do que eu tenho com qualquer outra pessoa daqui. Além disso, a Georgie me falou algumas coisas boas sobre você. Isso foi uma surpresa. Você nem me disse que conhecia ela.
Arquivista: Eu... isso foi muito tempo atrás. Antes de ela começar a fazer o "What the Ghost". É uma surpresa pra mim também, pra ser sincero. Nós não terminamos exatamente nos melhores termos... Pra quê exatamente você precisa de nós, afinal? Seus amigos de espetáculo não podem te ajudar?
Melanie: Não, eu, hum... a maioria deles não fala mais comigo.
Arquivista: O que aconteceu? Correu a notícia de que você prestou um depoimento pra gente? Como era mesmo? “Idiotas ingênuos?”
Melanie: Não exatamente. Olha, no meu negócio, sua reputação é tudo o que você tem. A indústria é praticamente composta por céticos que fingem acreditar, que fingem ser céticos—
Arquivista: Acho que a palavra que você tá procurando é "charlatões".
Melanie: Dá pra você parar? Por favor? Eu tô tentando... olha, os Caça Fantasmas de UK se separaram. Quer dizer, não formalmente, mas bom, você sabe, o Pete sempre foi um idiota pra começar e os outros simplesmente se afastaram...
Arquivista: Sinto muito por isso. Eu percebi que vocês não estavam postando mais nada.
Melanie: Eu tentei arrumar uma equipe nova, mas foi difícil. Eu comecei a fazer expedições sozinha, mas eu realmente não tenho habilidade pra gravação. Eu vi umas coisas estranhas. Aí eu... aí eu fui presa.
Arquivista: Continue.
Melanie: Sim, eu... eu invadi o cemitério de trens perto de Rotherham. Fui pega pelos seguranças, e eu... eu não tava muito bem. Quando eu tava sendo expulsa, um cara passeando com o cachorro de noite gravou um vídeo meu gritando com eles sobre  fantasmas. Quando aquilo foi parar na internet...
Arquivista: Sua super importante reputação profissional foi junto.
Melanie: Sim. Olha, eu tenho pistas que realmente preciso seguir, mas, no que diz respeito aos meus colegas, hoje em dia o fantasma sou eu.
Arquivista: Bom, se serve de consolo, eu sinto muito. Eu sei o que é não ter o respeito dos seus colegas. Vou falar com a Diana, vejo se consigo te deixar entrar na biblioteca.
Melanie: Obrigada. De verdade. Enfim, como eu saio desse lugar?
Arquivista: Ah. A Sasha pode te mostrar a saída.
Melanie: A Sasha?
Arquivista: Sim. Ela deve estar em algum lugar por aqui.
Melanie: Ah. Certo... Bom, me avisa sobre a biblioteca, ok?
Arquivista: Pode deixar.
...Que mulher esquisita.
Fim do complemento.
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MAG062 — Primeira Edição
Caso #0080307: Depoimento de Mary Keay, gravado em 3 de julho de 2008. A respeito de seu primeiro Leitner.
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Aviso de conteúdo: menção a suicídio
Tradução: Lia
GERTRUDE
Então?
MARY
Não precisa me apressar, Gertrude. Tenho certeza de que temos todo o tempo do mundo. Além disso, olha pra essa coisa velha e empoeirada. Acho que precisa de um tempo pra aquecer. Você não usa ele muito mais, né?
Gertrude: Chá?
Mary: Por Deus, não. Odeio essa coisa.
Gertrude: Por que você está aqui?
Mary: Pra prestar meu depoimento, é claro. Eu sei que o Instituto e eu nem sempre concordamos, por assim dizer, mas achei que era o mínimo que eu podia fazer.
Gertrude: Por que agora?
Mary: Por que não? Grandes mudanças estão chegando, Gertrude! E eu preciso pensar em deixar algo pra posteridade.
Gertrude: Tá. A indivídua é Mary Keay, gravada em 3 de julho de 2008. Sobre o que é?
Mary: Que pergunta! Deixa eu pensar... Tem opções de sobra, eu acho.
Gertrude: Fique à vontade.
Mary: Já te contei sobre o meu primeiro Leitner? Claro, isso foi antes de ele começar a colecioná-los, então naquela época era só um livro estranho. E pensar que houve um tempo antes de ele ter carimbado sua marca neles. Sinto que tínhamos dado um nome pra eles. Será que nós sequer sabíamos quantos eram? Ou nós só pensávamos em cada um como algo único?
Gertrude: Não. Eu não lembro.
Mary: Eu encontrei com ele algumas vezes, sabia? Deve ter sido há uns quinze anos. Não muito tempo antes da biblioteca dele pegar fogo. Ele nem era tão impressionante assim, pra falar a verdade. Mais baixo do que eu esperava e mais devagar, de alguma forma. Eu esperava um turbilhão intenso de energia, mas ele era gentil, metódico e extremamente agradável de se conversar.
Jurgen Leitner me entediava. Sempre que ele vinha olhar as minhas coisas, ficava quase um minuto inteiro olhando cada livro, só observando, examinando as páginas, e metade das vezes saía sem comprar nada. Já vai tarde, se quer saber!
Gertrude: Eu não saberia dizer. Acho que nunca nos encontramos.
Mary: Acho que não. Você não costuma sair e procurar as coisas por si mesma, não é? Só fica esperando aqui pelas migalhas dos pesquisadores.
Gertrude: Não é tão ruim assim.  Às vezes alguém aparece e insiste em me prestar um depoimento diretamente, apesar de eu não ver sentido nisso.
Mary: Hum. Bem... Eles não entendem lá em cima. Eles não sabem o que esse lugar é. Mas você sabe, não sabe? Nós estamos do mesmo lado, na verdade. Mesmo que o Elias discorde.
Gertrude: Se você diz. Acredito que você estava me contando sobre o seu primeiro encontro com um dos livros.
Mary: Ah, claro. Eu era muito jovem, mas ainda me lembro claramente.
MARY (DEPOIMENTO)
Eu tinha nove anos na época, então foi em... 1955? Foi logo depois que o idiota do meu pai foi morto, e minha mãe ainda estava trabalhando para o seu Instituto. Estávamos morando em Whitechapel naquela época, perto da Turner Street. Não era muito, só alguns quartos e um fogão, mas era o suficiente para nós.
Minha mãe trabalhava muitas horas, pois mesmo naquela época o Instituto não pagava bem seus pesquisadores. E ela complementava nossa renda escassa trabalhando até tarde em uma fábrica na Grove Road. Fazia roupões. Na maioria das vezes, eu era deixada por conta própria. Se ela tivesse algum bom senso, minha mãe teria largado vocês e ido trabalhar na fábrica em tempo integral. Ela teria aprendido muito mais.
Ainda assim, ela acreditava no trabalho. E a única coisa que ela nunca negligenciava era o que ela chamava de meus "estudos verdadeiros". Sou grata a ela, é claro. Eu só queria que ela tivesse superado aquela devoção exagerada por vocês e seu patrono.
Gertrude: Bom, você faz muitas suposições, Mary. E eu pensei que nós estávamos "do mesmo lado".
Mary: Hum, sim. Acho que você tem razão. Eu só gosto de diversificar um pouco o meu portfólio, por assim dizer.
Muitas vezes, durante meus estudos, minha mãe falava comigo sobre as incríveis relíquias arcanas do seu Instituto. Acho de que você pode imaginar minha decepção quando finalmente dei uma olhada na coleção de mediocridades que você chama de "armazém de artefatos".
Mas muito antes disso, a ideia de existirem itens poderosos, sombrios e assustadores já havia se enraizado em minha jovem mente. Eu costumava passar as tardes caçando coisas em lojas de antiguidades e sucata. Existiam várias, naquela época. Procurando por algo estranho, caçando aquela coisa que me chamaria com uma voz sombria e secreta. Eu nunca encontrei, é claro. Não naquela época.
Mas quando vi a Dra. Margaret Tellison se mudando para o outro lado da rua, soube imediatamente que havia algo diferente nela. Ela era alta e magra, com longos cabelos escuros presos num coque apertado. Ela usava um vestido de lã azul-escuro e carregava uma pasta de couro velha que parecia constantemente prestes a se rasgar, embora ela a carregasse com facilidade. Não sei exatamente o que tinha nela que me chamava a atenção, mas assim que a vi, soube que ela era aquilo de que minha mãe sempre falava. Ela era tocada por poderes como aqueles que cuidavam da nossa família.
Ela tinha um pequeno consultório médico na Nelson Street, não muito longe do Hospital Real de Londres. Naquela época, Whitechapel era um bairro majoritariamente judeu, e não tinha muitos médicos não judeus por lá, então a Dra. Tellison não demorou muito pra arranjar uma lista de clientes fiéis.
Eu comecei a observá-la. Sempre que minha mãe estava no trabalho, eu me sentava nos degraus em frente ao consultório dela e observava o fluxo constante de pacientes.
Ao longo das semanas, comecei a notar uma coisa. A primeira vez que uma ambulância foi chamada para levar um de seus pacientes ao hospital, eu não dei muita atenção pra isso. Mas quando outra veio no dia seguinte, e outra três dias depois, começou a me ocorrer que havia alguma coisa dentro daquelas paredes que eu não sabia. Decidi que tinha que ver por mim mesma.
Não passou despercebido por mim que muitos dos clientes da Dra. Tellison não se preocupavam em bater na porta da frente, simplesmente entravam anunciando suavemente sua chegada. Deixar a porta da frente de seu consultório destrancada era sem dúvida bom para seus clientes, mas também me proporcionou fácil acesso quando finalmente superei meu receio.
Eu prestei muita atenção em quão alto era o barulho da porta e sincronizei minha entrada com a passagem de um caminhão de açougue, o rugido do motor abafando o som da porta. E então, fácil assim, eu estava dentro. Me xinguei por não ter passado mais tempo tentando ter uma noção do interior do prédio, pois não esperava que a sala de espera fosse tão grande. Havia três cadeiras de madeira que pareciam desconfortáveis, diversas estantes cheias de livros que pareciam antigos e uma lâmpada fraca numa gaiola de arame. Havia apenas uma única porta que dava para dentro do prédio, com uma camada de tinta branca lisa descascada. Meu plano era encontrar um lugar pra me esconder, mas não parecia ter nenhum lugar pra isso.
Lembro de estar parada lá, ainda pensando no que fazer, quando ouvi passos pesados se aproximando por trás da porta. Eu congelei, olhando em volta desesperadamente em busca de um lugar pra me esconder à medida que os passos se aproximavam. Eu tinha acabado de tomar a decisão de fugir pelo mesmo lugar que entrei quando a porta se abriu. Um homem baixo com um bigode eriçado saiu segurando um pedaço de papel que parecia ser uma receita. Ele acenou pra mim brevemente enquanto passava e saiu pela porta da frente sem dizer uma palavra.
Soltei um suspiro de alívio e olhei pelo corredor de onde ele tinha vindo. Estava mais escuro do que eu esperava. A lâmpada estava queimada ou desligada, e não parecia ter nenhuma janela que deixasse entrar o brilho fraco da luz do dia. Havia uma escada de um lado, em frente a uma porta marcada com o nome da Dra. Tellison, que presumi ser o escritório dela.
Ao me aproximar, notei uma rachadura considerável na madeira abaixo da escada e, olhando mais de perto, vi uma pequena porta para um depósito embaixo da escada. Abrindo a porta o mais silenciosamente possível, vi que estava vazio e, a julgar pela poeira, não parecia ter sido usado algum dia. Rastejei pra dentro e fechei a porta atrás de mim, feliz por descobrir que minhas suspeitas estavam certas. Através da rachadura na madeira, eu tinha uma visão clara da porta da doutora e esperava conseguir ver o que estava por trás dela.
Não precisei esperar muito pra descobrir. Poucos minutos depois de me ajeitar em meu esconderijo, vi a porta do escritório se abrir e a Dra. Tellison sair. Ela entrou rapidamente na sala de espera e, depois de alguns segundos de conversa abafada, levou um homem idoso de volta ao seu escritório. Ela entrou primeiro, deixando o paciente fechar a porta atrás deles. Ele não a fechou, e eu tive uma boa visão do local de trabalho dela. Era ladrilhada, limpa e brilhante, com uma grande mesa de exame de couro marrom sobre a qual o velho se empoleirava enquanto ela pairava ao seu redor, o cutucando, medindo e fazendo perguntas que eu não conseguia ouvir.
Havia uma escrivaninha pequena e vazia em um canto, um armário afixado na parede que presumi guardar os remédios e equipamentos dela, e no chão eu pude ver um cofre baixo de ferro. Eu imediatamente soube que quaisquer segredos terríveis que me atraíssem para aquela médica estariam guardados naquele cofre.
Não vi nada de importante naquele dia, nem no dia seguinte, quando voltei para o mesmo lugar. Me esgueirei na escuridão estreita sob aquela escada por quase uma semana antes de aquilo acontecer.
Sempre tive o cuidado de estar em casa quando minha mãe chegasse lá, mas isso não era difícil, e a Dra. Tellison nunca parecia trancar a porta de seu consultório. Lembro que era domingo e o verão estava deixando meu esconderijo insuportavelmente quente. Devia estar quase tão quente no consultório, já que a doutora deixava a porta aberta quase o dia todo para permitir que qualquer corrente de ar soprasse pelo cômodo. Eu a vi inspecionar e tratar quase uma dúzia de estranhos ao longo da manhã, mas ainda assim não havia nenhum indício de nada desagradável.
Mas pouco antes de encerrar o dia, uma mulher baixa e elegante apareceu. Ela tinha cabelos castanhos encaracolados, parecia estar com a saúde perfeita e sorria como uma idiota enquanto entrava no consultório da Dra. Tellison. A doutora a cumprimentou de forma bastante simpática, mas quando o check-up começou, tive um breve vislumbre de algo cruel em seus olhos. Um olhar predatório.
Depois de mais ou menos dez minutos de consulta, a Dra. Tellison foi até um armário e pegou uma pequena seringa. Ela conversava amigavelmente com a paciente enquanto esterilizava a veia e empurrava a agulha para dentro. Ela continuou conversando enquanto o êmbolo descia. Ela continuou falando aquele murmúrio alto e amigável até quando a mulher com o cabelo castanho encaracolado começou a convulsionar violentamente.
Uma vez. Duas vezes. E aí ela morreu.
Enquanto eu observava isso, meu coração estava acelerado. Eu poderia mentir e dizer que o que eu vi me deixou com medo, mas acho que nós duas sabemos que a emoção de assistir a esse assassinato inspirou um sentimento muito diferente dentro de mim. Uma coisa sombria e cruel que até hoje não consigo nomear exatamente. Mas era lindo e estranho.
Apesar de que o que aconteceu depois foi ainda mais estranho. A Dra. Tellison ergueu o corpo ainda quente de sua paciente totalmente sobre a mesa antes de cortar o tecido do vestido com um par de tesouras, expondo uma extensão de pele nas costas da mulher.
Então, ela abriu o cofre. 24-18-3-50 e depois a chave. Eu só precisei assisti-la fazendo isso uma vez. Lá dentro, vi dois livros — um pequeno e encadernado em couro, o outro grande e disforme.
Ao pegar o maior dos dois, ela afastou o que parecia ser uma pequena pilha de ossos de animais e pegou uma caneta-tinteiro que parecia ser perversamente afiada. Ela se inclinou sobre o corpo imóvel sobre a mesa e começou a escrever — não no livro, mas na carne da mulher que havia matado. Mesmo do meu esconderijo, eu conseguia ver que a caligrafia dela era confusa e apertada, deixando um pouco da tinta azul escorrer pela mulher como sangue.
Depois de quase vinte minutos escrevendo apressadamente, ela deu um passo para trás, parecendo esperar a tinta secar. Ela então pegou um bisturi limpo de seu armário e, com um cuidado que não teve ao escrever, começou a cortar as costas da mulher morta, arrancando a pele sobre a qual ela havia escrito e deixando para trás um pequeno pedaço de carne esfolada. Ela a pendurou, ainda pingando, em um gancho que eu não havia percebido na parede, depois se aproximou do telefone e fez uma ligação.
A ambulância chegou tão rápido que me perguntei se estavam esperando por ela. Três homens uniformizados do Serviço de Ambulâncias de Londres entraram. Eles exibiam expressões mal-humoradas e amargas e não trocaram palavras com a Dra. Tellison enquanto embrulhavam a mulher em um saco de cadáveres e a levavam para fora.
A doutora entregou ao mais velho deles um envelope que eu só posso presumir que continha uma grande quantidade de dinheiro e eles foram embora. Tenho certeza de que eles nunca nem chegaram perto do hospital.
Agora estava escuro lá fora e eu sabia que minha mãe ficaria preocupada, mas eu não tinha como sair dali sem ser vista. E eu nem queria, enquanto ainda tinha chances de assistir mais daquele ritual estranho.
À medida que a pele do gancho secava, a doutora abriu o grande livro e vi que suas páginas espessas estavam grosseiramente costuradas na lombada com uma linha grossa. Ao folhear aquelas páginas, elas caíam com uma suavidade inconfundível.
Ela parou em uma página aparentemente aleatória perto do final do livro e começou a ler em voz alta, seu dedo fino traçando as linhas do texto que eu não conseguia ver.
Enquanto ela falava, senti o ar ficar denso e pesado, um cheiro de terra molhada rolando pelo prédio e se instalando em meu peito. Eu não sei exatamente quando ele apareceu. Na verdade, mesmo agora, ainda não consigo identificar o momento em que eles chegam — foi como adormecer, simplesmente aconteceu.
O velho que agora estava diante da Dra. Tellison era familiar para mim, apesar de eu não saber o nome dele. Lembrei que era um de seus pacientes que havia sido levado em uma ambulância cerca de três semanas antes. Lá estava ele, curvado e encolhido. Ele falou com a voz embargada, implorando para que ela o soltasse, exigindo saber o que estava acontecendo. Em troca, ela o questionava sobre seu testamento, sobre seus dados bancários ou onde ele escondia dinheiro.
Eu não podia acreditar — um poder como esse e ela estava usando para tentar ganhar dinheiro. Isso me enojou. Ainda enoja.
Eu soube então que ela não merecia o livro.
Depois de dispensar o velho, ela desabou na cadeira da mesa, exausta, e adormeceu.
Eu peguei a navalha do meu pai do bolso. Era meu bem mais precioso e tudo o que tinha me restado dele depois que ele a usou para cortar a própria garganta. A única decisão sensata que ele algum dia tomou.
Eu rastejei pra fora do meu esconderijo tão lenta e silenciosamente que ela mal se mexeu quando a lâmina deslizou por sua traqueia. Eu nunca tinha matado ninguém antes. Eu particularmente não gostei. Minhas inclinações, previsivelmente, eram mais pra observar do que fazer aquilo eu mesma.
Ainda assim, senti uma satisfação no final. Eu tentei amarrá-la, mas não deu certo, e a página dela ficou uma bagunça horrível. Imagino que ela não goste de lá. Precisei de muito mais prática pra acertar — isso sem contar ter que aprender sânscrito — mas eu consegui, no final.
Depois de uma vida inteira, conheço todos os segredos, menos um. E eu tenho uma boa ideia de como encontrar ele.
Gertrude: Isso explica por que você rompeu com o Instituto. De quem vem o livro?
Mary: O Fim, é claro. Eu nunca conseguiria servi-lo realmente — simplesmente não acho a morte tão interessante. Mas sempre achei que ter uma única devoção fosse restritivo demais. Basta perguntar ao Eric. Ou o que restou dele.
Gertrude: E quanto ao outro livro? O menor.
Mary: Só um pouco de vísceras. Poemas sobre animais moribundos, também em sânscrito. Solta muitos ossos. Eu acho que nem tem um título de verdade. Inútil, mesmo. Acabei vendendo pro Leitner, embora ele tenha voltado pra mim depois do ataque.
Gertrude: Eu realmente deveria contar isso pro Elias.
Mary: Com certeza! Mas ele não é muito bom entrando em ação, não é? Ele só vai ficar feliz por eu ter prestado um depoimento.
Gertrude: E você tem alguma prova disso? Do seu "livro mágico".
Mary: Aqui, você pode ficar com essa página. Eu me certifiquei de que estivesse em inglês.
Gertrude: Quem... Quem é?
Mary: Uma surpresa, querida! Só certifique-se de estar sozinha quando for ler. Adeus, Gertrude. Me deseje sorte.
Gertrude: Bem... Eu não sei muito bem o que acrescentar a isso. Se o que ela diz for verdade, devo pensar cuidadosamente antes de ler essa página em voz alta. Eu provavelmente deveria destruí-la... mas eu odeio o cheiro de pele queimada.
Enfim, essa é uma decisão pra outro dia.
Eu preferiria tomar uma xícara de chá, eu acho.
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ARQUIVISTA
Tem muita coisa aqui. De muitas maneiras, o contexto que isso dá à estranha relação de Mary Keay com a morte é a parte menos interessante disso. Eu sabia que a família dela estava ligada a Jonah Magnus e ao Instituto de alguma forma, mas não fazia ideia de que Gertrude estava envolvida. Mesmo que não gostassem uma da outra. Talvez eu já devesse saber disso.
Elias pode não ter matado ela, mas tem muita coisa que ele não tá me contando. Mas tenho medo de perguntar. O Instituto Magnus não é o que parece ser, e até eu descobrir o que ele é e para que serve, não posso deixar o Elias descobrir o quanto eu já sei.
Mas, apesar de tudo isso, eu tô estranhamente animado. Porque o que mais me chama a atenção, mais do que qualquer outra coisa naquela fita, é o barulho da tábua do chão muito distinto no final. Algo que não mudou nos oito anos desde que esse depoimento foi prestado. Nunca tive qualquer motivo pra olhar com cuidado uma parte aleatória do chão. Essa parte nem sequer foi violada pelos vermes... porque tinha o compartimento escondido da Gertrude embaixo dela.
Hum. Nenhuma página estranha feita de pele. Mas tem um computador e uma chave. Eu me pergunto o que ela abre. Fim do complemento.
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MAG061 — Acostamento
Caso #0160112: Depoimento da detetive Alice “Daisy” Tonner, a respeito da abordagem de trânsito de uma van de entrega na M6 perto de Preston na tarde de 24 de julho de 2002.
Ouvir em: Spotify | Youtube
Aviso de conteúdo: brutalidade policial
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Você não se importa se eu gravar isso, né?
Daisy: Fique à vontade.
Arquivista: Certo.
Daisy: Claro que se mais alguém ouvir...
Arquivista: Você vai me prender.
Daisy: Ha. Não.
Arquivista: Certo. Hum, então, você veio entregar uma das fitas? Da Basira? As, uh, as fitas de áudio. Então... Posso ver? Por favor?
Daisy: Tô pensando.
Arquivista: Certo. Pensei que você precisava que eu olhasse elas?
Daisy: Você não sabe, né?
Arquivista: Não sei se entendi.
Daisy: As fitas. Por que ela tava entregando elas pra você?
Arquivista: Ela... ela queria minha ajuda. Vocês não tinham um toca-fitas na delegacia.
Daisy: Ela pensou que tinha sido você.
Arquivista: Quê?
Daisy: Nós duas pensamos.
Arquivista: Espera, vocês achavam que eu tinha matado a Gertrude?!
Daisy: Sim.
Arquivista: Quê, hã, por quê?
Daisy: Olha pra você: você tá obcecado com isso, nervoso pra caramba e é a única pessoa que se beneficiou da morte dela.
Arquivista: Bom, eu... Quer dizer... Não fui eu.
Daisy: É. Eu sei. O pessoal do TI finalmente terminou de repassar as filmagens da semana em que ela desapareceu. Não tem câmera no arquivo, mas temos várias filmagens suas. Observei seus movimentos durante a semana toda. Você não matou ela.
Arquivista: Eu não... o que isso tem a ver com as fitas?
Daisy: Não tínhamos o suficiente pra te prender. A Basira tava com medo de você fugir.
Arquivista: Então, o quê? Vocês me deram algumas fitas pra me manter por perto?
Daisy: É.
Arquivista: E agora que vocês sabem que eu sou inocente...?
Daisy: Hum. Eu acho que deveríamos te cortar, mas a Basira é mole. Ela gosta de você. Não faço ideia do porquê. Talvez ela continue te entregando as fitas, o que não me envolve — eu não pretendo ver ou ouvir mais nada sobre isso.
Arquivista: Bom... obrigado, detetive Tonner.
Daisy: Daisy.
Arquivista: Obrigado, Daisy.
Daisy: Claro.
Arquivista: Se você não se importa que eu pergunte, há quanto tempo você foi mandada pra seção...
Daisy: Eu me importo sim. 14 anos.
Arquivista: Acho que você não gostaria de prestar um depoimento?
Daisy: Sobre oquê?
Arquivista: Sobre o que você quiser. 14 anos — você deve ter visto um monte de coisas paranormais.
Daisy: E você quer que eu te conte sobre elas.
Arquivista: Uh, eu...
Daisy: Tá bom.
Arquivista: Quê?
Daisy: Tá bom. Vou te dar um depoimento sobre como consegui a minha primeira Seção 31. Você parece surpreso.
Arquivista: Quer dizer, eu tinha perguntado mais como uma formalidade, a Basira não me passou a impressão de que você era do tipo de pessoa que compartilha coisas.
Daisy: Talvez você tenha me pegado de bom humor.
Arquivista: Certo, então... que bom. Você precisa que eu repasse a nossa política de privacidade?
Daisy: Não, desde que você entenda a minha política: se isso vazar, eu vou quebrar todos os ossos do seu corpo.
Arquivista: Tem coisas piores que poderiam acontecer com eles...
Daisy: Quê?
Arquivista: É... nada. Depoimento da detetive Alice “Daisy” Tonner, da Polícia Metropolitana de Londres. Qual é o assunto?
Daisy: Abordagem de trânsito de uma van de entrega na M6 perto de Preston na tarde de… 24 de julho de 2002.
Arquivista: Gravado diretamente do indivíduo em 1º de dezembro de 2016.
Início do depoimento.
DAISY (DEPOIMENTO)
Isso aconteceu muito tempo atrás. Eu já era policial há dois anos. Eu nem tava com o Met ainda naquela época. Eu atuava em Lancashire em uma unidade de policiamento rodoviário. Isso foi antes da agência de rodovias assumir a maior parte do trabalho pesado, então tínhamos muitas coisas pra fazer. Não era muito divertido, mas precisava ser feito. Abordar motoristas bêbados era o meu favorito. Eu sempre torcia pra eles recusarem o bafômetro ou talvez até me atacarem. Nada mais engraçado do que um babaca bêbado tentando evitar ser preso.
Eu geralmente rodava com Isaac Masters. Ele trabalhava com a PRF há muito mais tempo do que eu e era ainda mais duro do que eu. Mas eu sei por quê. Ele tentava ser um bom policial, dar uma chance pra todo mundo, mas nós víamos muitos acidentes — não tem muita coisa no mundo que seja pior do que um acidente de carro realmente grave. Isso te afeta. Você endurece com as pessoas que não respeitam a estrada, e tem muita gente assim por aí.
Estava chovendo naquela noite — aquela chuva pesada e forte onde você não consegue ouvir mais porcaria nenhuma. Aquela que bate no telhado como se alguém estivesse pulando nele. Eu e o Zack estávamos parados no acostamento, observando o trânsito e tentando beber café. Tínhamos pegado em um posto de gasolina a alguns quilômetros de distância, mas era um daqueles copos de isopor abertos. Quando voltamos pro carro, a chuva já tinha molhado tudo e nós ficamos com dois copos de uma lama fria.
Então nós dois estávamos bem de mau humor. Talvez fosse uma hora da tarde, mas não dava pra saber. As nuvens não deixavam passar nenhum sol e tudo parecia cinza, úmido e sem vida. Não conseguíamos nem conversar por causa do barulho da chuva batendo no teto, então ficamos ali sentados em silêncio, bebendo lama morna.
A rodovia estava mais silenciosa que o normal. Uma tarde de quarta-feira não tem muito trânsito, mas a chuva costuma trazer mais carros. Naquele dia estava bem vazio. Todo mundo parecia estar dirigindo com cuidado por causa da chuva, o que também não era normal, e eu fiquei dividida. Parte de mim queria achar algum idiota em quem eu pudesse descontar meu mau humor, e a outra parte de mim não queria ficar mais molhada do que eu já tava.
Parecia que eu não teria escolha, de qualquer jeito — pelo menos não até eu ver a van. Era um velho Citroën C15 surrado. Havia alguma coisa escrita na lateral, mas eu não conseguia ver direito através da chuva. Estava muito suja ou era pintada de um tom desagradável de branco acinzentado.
Mais importante ainda, estava dirigindo a mais ou menos 40 quilômetros por hora. O limite é 120. Tecnicamente, não existe velocidade mínima pra andar em uma rodovia, mas a van não parecia estar acelerando e aquilo era meio estranho. Tínhamos motivos suficientes para pará-los, se quiséssemos. Eu não tinha certeza se deveria deixar passar ou não, mas o Zack claramente já tinha se decidido. Ele estava no volante e acendeu as luzes enquanto dirigíamos atrás deles.
A van parou no acostamento ao lado da estrada e ficou ali parada. Os faróis, que estavam acesos por causa da chuva, se apagaram. Aí eles só ficaram esperando.
O Zack saiu primeiro. A chuva estava tão densa que ele teve que pegar a lanterna pra enxergar direito. A luz passou pela van e pude ver ferrugem rastejando pelas bordas dos painéis.
Caminhamos até o lado do motorista. Eu conseguia ver formas escuras lá dentro, mas elas não estavam se mexendo. De perto, consegui ler o nome escrito ao lado: "Entregas de Breekon e Hope". Estava coberto por uma camada espessa de sujeira que a chuva não conseguia lavar.
Zack bateu na porta e ela se abriu. O homem que saiu parecia normal — tão normal que hoje em dia nem consigo lembrar do rosto dele. Ele disse que seu nome era Tom. Não fui eu que olhei a carteira de motorista dele, então não sei o sobrenome.
Dois homens saíram do outro lado. Eles eram enormes. Rostos duros parecendo um par de estátuas velhas de pedra vestidos com macacões e bonés. Eles perguntaram o que tava acontecendo, falando alternadamente com um sotaque caipira tão forte que soava tão falso que eu até pensei que eles estavam de brincadeira. Eu tava pronta pra dar uma dura neles quando um barulho me interrompeu.
Zack estava conversando com o “Tom”, que dava uma explicação qualquer pra direção lenta — cautela, chuva forte, estrada vazia, essa porcaria toda. Eles também ouviram, e ele parou no meio da frase pra olhar pra mim.
Da parte de trás da van veio um som de gemidos. Parecia um gemido de dor, mas longo e arrastado. Continuou por quase um minuto inteiro e foi quase, sei lá, meio melódico. Olhei pro Tom e pros falsos passageiros caipiras, mas seus rostos estavam ilegíveis.
Zack agarrou Tom com força pelo braço e o levou até as portas traseiras da van, exigindo que ele as abrisse. Ele não tentou resistir, simplesmente assentiu e pegou um molho de chaves. Ele colocou uma na porta, girou e a van se abriu.
Eu vi que os dois marmanjos tinham se aproximado de nós, então eu já tava me preparando pra brigar, mas não tinha como eu ter adivinhado o que tinha ali.
Era um caixão. Um caixão velho de madeira. Áspero, sem verniz. Eu conseguia ver as lascas onde os pregos tinham sido martelados de qualquer jeito. Tinha uma grossa corrente de metal enrolada ao redor dele e trancada com um cadeado pesado. Aquele gemido estranho tava vindo de dentro dele. Era o único som que atravessava a chuva forte.
Fiquei tensa e peguei meu cassetete — se aquelas pessoas fossem sequestradores ou algo pior, nós estaríamos em apuros. Eu tava pronta pra uma briga, mas eles só ficaram parados lá, sem se mexer, olhando pra nós. Tudo naquela situação parecia errado.
Olhei pro Zack e ele parecia estar pensando a mesma coisa. Ele olhou para os dois homens de macacão e os mandou pegarem o caixão, depois olhou pro Tom e perguntou se ele tinha a chave do cadeado. Enfiando a mão na jaqueta, o homem que se chamava de Tom pegou uma chave grande de ferro e a entregou ao meu parceiro. Ela não se parecia com as outras chaves.
Eu queria voltar para o carro e chamar alguns reforços, mas Zack era um oficial superior, e se ele achava que deveríamos abrir o caixão primeiro... eu apoiaria sua escolha.
Zack pegou a chave e caminhou em direção ao caixão, que agora estava na pista molhada, iluminado apenas pelos faróis do nosso carro. O gemido tava mais alto agora, quase abafando o som da chuva forte. A água tinha começado a escorrer da madeira, mas todo o resto do caixão ainda permanecia imóvel.
À medida que nos aproximamos, pude ver as palavras "Não Abra" riscadas na superfície da madeira. Mas não parecia que meu parceiro tinha ligado pra isso — ele colocou a chave na fechadura gentilmente, estremecendo ligeiramente ao tocar o metal e a girou.
As correntes se soltaram como se fossem acionadas por uma mola. Eles se viraram violentamente e Zack deu um pulo pra trás, escorregando e caindo de costas. Preparei meu cassetete para o caso de os estranhos fazerem algum movimento, mas eles estavam... imóveis.
O gemido tinha parado. O único som era o ranger das dobradiças quando a tampa do caixão começou a se mover. Foi devagar, primeiro abrindo apenas uma fresta antes de finalmente se abrir completamente. Tava escuro demais pra ver o que tinha lá dentro no começo, mas quando apontei minha lanterna pra lá, ouvi Zack arfar. Acho que eu também arfei.
Dentro daquele caixão de madeira havia uma escada. Ela descia aparentemente até além do chão, e parecia ir mais fundo do que era possível ver. Ela era íngreme, escavada no que parecia ser pedra sólida, e a rocha que compunha as paredes não combinava com o asfalto molhado ao nosso redor nem com toda a terra que estaria por baixo dele. Era completamente impossível.
Tentei perguntar ao Tom ou aos seus colegas o que era aquilo, gritei com eles pra explicarem o que diabos tava acontecendo, mas eles só ficaram parados ali encarando ela. Então eu bati em um deles com o meu cassetete.
Foi em um dos homens grandes de macacão, não tenha certeza de qual deles. Foi como bater em madeira maciça, e o golpe sacudiu meu braço, me fazendo derrubar a única arma que eu tinha. Mesmo assim, ele só ficou lá, encarando o caixão. Ouvi um som de algo se movendo atrás de mim. Eu me virei e vi o Zack entrando no caixão, sua lanterna iluminando o buraco abaixo. Ele já tinha desaparecido até a cintura e estava com uma expressão no rosto que eu nunca tinha visto antes — relaxado, como se ele estivesse dormindo.
Eu gritei com ele, comecei a correr mas senti uma mão enorme segurar meu ombro. Agarrei a mão com o meu braço livre, tentei escapar dela, mas o aperto era muito forte. A textura da carne era como a de uma borracha dura. Tudo o que eu consegui fazer foi observar meu parceiro adentrar a terra, descendo por escadas que nem poderiam estar ali. Depois de alguns segundos ele desapareceu completamente de vista.
Eu esperava ouvir alguma coisa — gritos, um pedido de socorro, alguma coisa — mas eu ainda só ouvia a chuva. A tampa se fechou bem devagar, e aí ele se foi. Só um caixão deitado no acostamento da M6.
A mão largou meu ombro quando os dois homens de macacão começaram a se aproximar e calmamente enrolaram as correntes de volta.
Tive uma súbita explosão de raiva e peguei meu cassetete. Eu investi contra eles, mas o que tava mais próximo de mim se moveu mais rápido do que eu imaginava ser possível. O punho dele acertou meu peito como uma bala de canhão e eu senti algumas costelas quebrarem. Desabei no chão e só fiquei deitada lá enquanto Tom e os dois homens trancavam o caixão, o colocavam de volta na van e iam embora. Eu nunca mais vi Isaac Masters.
Quando chamei ajuda, eu esperava uma perseguição, uma investigação — algum tipo de justiça. Não era como se não tivéssemos um monte de pistas. Em vez disso, recebi um formulário que eu não reconheci, me mandaram assinar e depois fui transferida pro Met. Desde então, tem sido uma história de fantasma atrás da outra.
Arquivista: Certo. Obrigado. Você tá bem?
Daisy: Não. Nunca contei essa história pra ninguém além do meu antigo sargento.
Arquivista: Eu... não sei se eu...
Daisy: Eu tenho que ir.
Arquivista: Sim, claro, eu te acompanho até a saída. Uh, tem mais uma coisa — eu tava querendo perguntar pra Basira, mas você deve saber mais...
Daisy: Eu terminei.
Arquivista: Ah, sim, é só que... você sabe alguma coisa sobre vampiros?
Daisy: Sim.
Arquivista: Ah! Ah, é só que...
Daisy: Um tempo atrás tivemos alguns problemas. Irregularidades em apreensões em casos de pessoas desaparecidas. Suspeitos sendo liberados sem o devido interrogatório. As gravações das entrevistas mostravam que os sujeitos não diziam uma palavra, mas os policiais que os entrevistavam deixavam eles irem mesmo assim. Não sei os detalhes da investigação, mas agora temos um novo procedimento de operação.
Arquivista: Que seria...?
Daisy: Os casos que correspondem a determinados parâmetros devem ser monitorados por outro oficial fora da sala por vídeo. Na circunstância muito específica em que o suspeito não diz nada, mas o oficial interrogador age como se tivesse dito, ele é imediatamente tirado da sala. Aí eles ligam pra mim.
Arquivista: Só pra você?
Daisy: Tem alguns outros por aí que também fazem isso, mas eu cuido de mais ou menos uma dúzia de delegacias. Algemo as mãos e as pernas do suspeito, levo ele pro meio da Floresta de Epping e o queimo até só sobrar as cinzas. Nunca sobra nada pra dar problema. Eu não sei se eles são exatamente vampiros, mas é assim que os chamamos.
Arquivista: Meu Deus. De quantos você já... cuidou?
Daisy: Hum... cinco nos últimos nove anos.
Arquivista: Entendi...
Daisy: Não conta pra Basira. Ela não sabe sobre esse procedimento. Eu não sei se ela entenderia, ela... ela não tá... preparada pra esse tipo de trabalho.
Arquivista: Claro que não.
Daisy: Não fala nada pra ela, ok? Eu nunca estive aqui. Se ela quiser te dar mais fitas o problema é dela, mas você fica quieto sobre essa visita. Entendeu?
Arquivista: Claro!
Daisy: Bom.
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ARQUIVISTA
Complemento.
Essa foi... uma entrevista interessante. Parece que ainda não terminamos com os caixões sinistros. O conteúdo foi surpreendente, no mínimo, mas não nos dá nenhuma pista real sobre sua origem, propósito ou até mesmo sua relação com Breekon e Hope. Será que eles são simplesmente entregadores? Guardiões? Reféns?
Pelo menos eu também tenho a confirmação de que os vampiros que Trevor Herbert descreveu não são só invenções de uma mente viciada em drogas. Eu provavelmente não deveria ficaria tão feliz em descobrir que tem caçadores ainda mais violentos nos perseguindo durante a noite, mas aí está.
Vou admitir que me sinto um pouco magoado pelas verdadeiras motivações da Basira. Acho que não é muito surpreendente, não tenho estado muito... estável nos últimos meses. De qualquer forma, não vou falar sobre isso.
Mesmo se eu não estivesse realmente com medo da detetive Tonner, falar disso só prejudicaria nosso relacionamento, e eu preciso dessas fitas. Não posso me dar ao luxo de deixar o tempo que a Gertrude passou no Instituto desaparecer no esquecimento.
Vou ouvir a que eu recebi e esperar por notícias da Basira. Ou talvez eu deva tentar entrar em contato? Eu realmente deveria ter pegado o número dela ou algo assim. Bom, isso é um problema pra depois. Preciso ir pra casa. Tentar dormir um pouco.
Eu só queria que não estivesse chovendo.
Fim do complemento.
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MAG060 — Efeito do Observador
Caso #9721207: Depoimento de Rosa Meyer, a respeito de uma sensação persistente de estar sendo observada.
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Aviso de conteúdo: paranoia, escopofobia
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Depoimento de Rosa Meyer, a respeito de uma sensação persistente de estar sendo observada. Depoimento original prestado em 12 de julho de 1972. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento.
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Aquilo ainda tá lá — ainda tá me observando. Não tem nenhum lugar pra onde eu possa ir, nenhum lugar que eu possa me esconder onde aquilo não vai continuar me olhando. Eu não sei por quê. Não faço ideia do que ele quer de mim, ou se ele já planejou alguma coisa além de só ficar me encarando de onde quer que ele esteja se escondendo. Não consigo comer, não consigo dormir — já faz meses e ele ainda tá lá.
Você não consegue ver ele, eu sei. Eu também não consigo ver, mas isso não importa, porque ele consegue me ver. E é isso que importa. Eu consigo sentir o olhar dele queimando a minha nuca. Será que ele me odeia? Será que ele só quer que eu continue vivendo com medo? Eu não sei por que isso tá acontecendo comigo.
No começo, eu pensei que era uma pessoa, algum stalker se escondendo. Eu tinha essa ideia de que se eu continuava sentindo que alguma coisa tava me observando, então devia ser uma pessoa fazendo isso. Devia ter alguém me seguindo. Não é como se eu nunca tivesse tido stalkers antes.
Comecei a examinar os rostos de todos por quem eu passava, tentando ver se eu os reconheceria, se tinha os visto antes em algum lugar. Será que eu reconheci o homem de sobretudo verde no ônibus hoje de manhã? Aquele cara na bicicleta deu meia volta na estrada e passou por mim de novo? Não. Não eram eles. Não era. Ninguém estava me seguindo, mas alguma coisa estava me observando. Ainda está.
O estranho é que é uma sensação com a qual eu deveria estar acostumada. Tenho sido assistida por pessoas há anos. Eu apresento o quadro "Look East" pra BBC News quase todos os dias — bom, eu costumava apresentar. E do outro lado da câmera havia dezenas de milhares de pessoas, mas eu nunca senti isso vindo delas. Às vezes, enquanto mantinha os olhos fixos naquela câmera, falando sobre os últimos assaltos que tinham acontecido, eu tentava sentir — tentava imaginar todas as pessoas me vendo, me assistindo. Mesmo assim, mesmo quando eu tentava, nunca passava de uma lente vazia e sem vida. Talvez seja bom que eu nunca tenha sentido isso antes.
Perdi meu emprego em duas semanas. Essa sensação tomou conta de mim, eu não conseguia me concentrar, não conseguia olhar pra câmera, não conseguia ler as palavras vazias e sem vida na página. Acabei tendo meio que um colapso ao vivo. Ainda bem que você morar em Londres, senão, poderia ter visto.
Eu sei quando isso começou. Olhando agora, tudo parece tão claro, como se um botão tivesse sido apertado bruscamente e, de repente, minha vida foi destruída. Foi três meses atrás, em abril. Eu estava fazendo o inventário de alguns bens do meu irmão, e cabia em grande parte a mim cuidar disso depois da morte dele. Meus pais estavam sofrendo muito e não estavam com cabeça para viajar até a pequena casa dele em Southampton pra tentar organizar os poucos pertences dele.
Acho que eu não tava com a cabeça muito boa, pra começo de conversa. Ninguém deveria ter um derrame e morrer tão jovem. Quer dizer, ele só tinha 38 anos e não era exatamente super saudável, mas pareceu ser tão... do nada. Sempre fui bastante religiosa e acreditava que as coisas aconteciam por uma razão, que as bênçãos finalmente chegariam aos honestos e a desgraça aos ímpios, mas agora não sei.
Talvez dê pra dizer que a minha curiosidade foi o que trouxe isso até mim? Mas não abri a caixa porque tava curiosa, eu abri porque eu precisava pra fazer o inventário completo dos pertences do meu irmão morto. Eu sinceramente não acho que isso seja uma transgressão. Ela nem sequer tava marcada como especial — não era lá um baú de carvalho ou um caixote de latão com três fechaduras —, era só mais uma caixa de papelão marrom como qualquer outra.
Eu nem acho que alguma coisa nela me pareceu especial. Pensando agora, sinto que ela era marcante por si só, que chamava a minha atenção e eu ficava olhando pra ela por mais tempo do que pras outras caixas empilhadas ao redor da casa. O lugar tava tão silencioso... era um testemunho solitário do isolamento do Christopher. Ele nunca se casou, e parecia não ter nada naquela casa sombria que mostrasse que ele tinha amigos com quem conversar.
De muitas maneiras, aquilo me lembrava da minha própria vida. Tenho vários amigos em Norwich, mas nenhuma família além do Christopher e meus pais, embora eu tenha os meus motivos. Ainda assim, mexer nas coisas do meu falecido irmão me levou a algumas reflexões que me deixam desconfortável, e eu tava bebendo mais do que bebia normalmente.
Foi no meu segundo dia lá embaixo que eu abri a caixa. Eu estava vasculhando todas as caixas de documentos antigos dele, e tinha muitas. O Christopher tinha trabalhado pro departamento de história da Universidade de Southampton. Não sei no que ele se especializou — nós nunca conversávamos sobre o trabalho dele — mas, com base no que eu encontrei de seus estudos, ele escreveu alguns livros sobre mitos e fetiches antigos, sobre aqueles objetos que várias culturas acreditavam ter poder sobrenatural ou religioso imbuído neles.
Seu primeiro livro foi sobre a santa cruz do cristianismo e como ela funciona como um fetiche na nossa cultura. Isso me ofendeu um pouco — fiquei preocupada que ele estivesse banalizando uma fé que, até onde eu sabia, ele compartilhava comigo. Ainda assim, tentei ler um capítulo sobre a utilização da cruz em mitos de vampiros, mas era muito rebuscado e, sinceramente, um pouco chato. A maioria das caixas eram parecidas, cheias de anotações, recortes e pesquisas que não significavam absolutamente nada pra mim. Deixei essas de lado pra verificar com Angus Cartwright, um dos colegas de Christopher que eu contatei pra dar uma olhada nos documentos dele que eu não conseguia entender.
Algumas das caixas, no entanto, continham o que eu só consegui presumir serem pesquisas práticas: objetos de fetiche e totens de todo o mundo, pequenas figuras de animais esculpidas em ossos, cordões de contas de vidro amarradas em padrões intrincados com nós, estatuetas grotescas quase humanas feitas de madeira e couro velho. Alguns deles eram mais do que um pouco perturbadores, mas só um conseguiu me mandar pra paranoia que eu tô agora.
Como eu disse, foi uma das últimas caixas que eu abri no segundo dia. Já tava tarde, e eu já tinha esvaziado a maior parte de uma garrafa de vinho. Quanto mais eu penso nisso, mais eu acho que abrir aquela caixa não foi diferente de nenhuma das outras. Não senti nada estranho, nenhum cheiro... nada. Era apenas uma caixa quase vazia, se não fosse por uma única nota datilografada e um espelho de mão velho.
Eles estavam lá dentro, totalmente inofensivos. Se era uma armadilha, não tinha como saber.
Peguei o bilhete primeiro. A digitação era perfeita — conseguiram deixá-la completamente centralizada, apesar de o pedaço de papel parecer ter sido arrancado de um pedaço maior. Estava escrito, com todas as letras maiúsculas:
"ATRÁS DE VOCÊ."
Acho que não preciso nem dizer o quão perturbador aquilo foi. Eu me virei e olhei pra trás quase antes de entender direito o que eu tinha lido. Havia uma janela atrás de mim com vista para a rua abaixo do escritório do meu irmão e para o céu escuro acima dela. Mas não tinha nada lá — ninguém andando pela rua, nenhum carro passando, nada que parecesse fora do lugar de alguma forma.
Olhei de volta pro bilhete, dei de ombros e estendi a mão pra pegar o espelho. Era um pouco mais pesado do que eu esperava e, sob uma espessa camada de poeira, a moldura parecia dourada, ou pelo menos folheada a ouro. O vidro em si estava um pouco sujo, mas ainda parecia estar intacto. Não faço ideia de quantos anos tinha ou em que época pode ter sido feito. Embora eu tenha revistado a caixa cuidadosamente, não consegui encontrar nada que pudesse explicar onde Christopher conseguiu aquilo.
Olhei no espelho. Eu estava uma bagunça. Cabelos sujos, olhos vermelhos de tanto chorar, lábios manchados de roxo pelo vinho. Eu não havia tido tempo nenhum pra me cuidar ou sequer olhar pra mim mesma desde que tinha chegado à casa do Christopher, e aquele espelho de mão antigo realmente me mostrou isso.
Suspirei, balancei a cabeça e me preparei pra abrir a próxima caixa quando o ângulo do espelho mudou ligeiramente na minha mão e eu gritei. Agora ele refletia a janela atrás de mim e eu vi um rosto olhando pra dentro. Estava escuro lá fora e ele estava quase inteiramente escondido nas sombras, então não consegui ver muito bem os detalhes, mas ele era enorme... parecia ocupar a maior parte da janela atrás de mim. A única coisa que eu conseguia ver com muita clareza eram os olhos — olhos brilhantes, ofuscantes e esbugalhados, com pupilas tão escuras que fizeram eu me sentir enjoada, absorvendo tudo, observando com uma intensidade gananciosa. Eu podia sentir o olhar dele queimando a minha nuca — sentir os olhos que nem piscavam.
Meus músculos travaram em terror, e o espelho caiu da minha mão, girando só uma vez antes de cair no chão e se quebrar em mil pedacinhos.
Sete anos de azar, né? Talvez seja isso. Talvez eu tenha que sentir esse pânico horrível dos olhos que eu sei que estão me seguindo por sete anos antes de eles finalmente irem embora. Eu espero que não. Mas talvez até isso seja pensar positivo. Talvez agora essa seja a minha vida pra sempre, e isso nunca, nunca vai parar.
Tentei pensar se eu seria capaz de continuar, se fosse esse o caso. Acho que tentaria, pelo menos até meus pais falecerem. Eu não suporto a ideia de eles perderem os dois filhos.
Obviamente, foi aí que meus problemas de verdade começaram. Eu poderia descrever o rosto como uma alucinação rápida e horrível, mas a sensação de estar sob constante escrutínio e observação não é algo que eu consigo explicar muito bem. Considerei a possibilidade de só estar enlouquecendo. Ser observado não é um sintoma incomum de psicose ou esquizofrenia e tenho estado atenta a outros sintomas, mas em todos os outros aspectos, eu me sinto bem. Claro que eu tô tendo dificuldade pra me concentrar, mas é só porque eu não consigo dormir porque eles estão me observando. Aqueles olhos invisíveis que se escondem por toda parte e não me deixam descansar.
Eu não tô louca. Tenho certeza que não tô. Ainda tenho o que sobrou do espelho. Agora é só uma moldura de ouro amassada. Tentei colocar um vidro novo nela, mas os únicos olhos que ela mostra são os meus.
Mas eu conversei com o Angus. Ele parecia um pouco nervoso com os questionamentos que eu tava fazendo — ou talvez era só a intensidade com a qual eu fazia as perguntas — mas ele me respondeu. Ele não reconheceu o espelho, mas alguns anos atrás, Christopher estava pensando em escrever um livro sobre os totens do que ele chamava de "cultos externos" — pequenos grupos organizados de adoradores cujas crenças não eram simplesmente desvios do paganismo ou de outras grandes religiões, mas pareciam se concentrar em seres sagrados ou conceitos completamente à parte do que seria considerado uma prática religiosa normal. Alguns pareciam ter mais em comum com o xamanismo antigo do que com uma adoração hierarquicamente organizada, e todos eram altamente secretos.
O Christopher aparentemente tinha coletado vários artefatos que eram considerados sagrados por algumas dessas seitas, embora eu não tivesse encontrado nenhum detalhe sobre isso nos documentos dele. Angus não tinha certeza, mas ele acreditava que o espelho poderia ser um desses objetos. Aparentemente, Christopher abandonou o projeto cerca de um ano antes de sua morte, optando, em vez disso, por seguir uma linha de pesquisa sobre esculturas cerimoniais inuítes.
E é aqui que finalmente chegamos ao motivo pelo qual estou aqui. Porque o Angus me disse que meu irmão não estava fazendo aquela pesquisa sozinho.
Aparentemente, ele havia feito várias viagens a Londres para consultar o seu Instituto. Não sei por que ou sobre o quê, e ninguém aqui parece ser capaz ou disposto a me ajudar a descobrir, mas ele esteve aqui. Eu não vou descansar até descobrir o porquê. Não que eu conseguisse descansar, de qualquer forma.
Aqueles olhos ainda assombram os meus sonhos e me seguem pelo mundo real, mesmo aqui. Especialmente aqui.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento.
Meio estranho esse aqui. O final do século XX parece estar um pouco mais bem arquivado do que a maioria dos arquivos, por isso não vimos tantos depoimentos falsos surgindo desse período.
A maioria dos detalhes do depoimento da Srta. Meyer parece se comprovar — a Sasha recebeu uma confirmação da BBC de que ela realmente foi uma das âncoras do Look East Evening News entre 1970 e 72, até sofrer um colapso nervoso e danificar várias câmeras em seu estúdio em Norwich.
A verificação do Martin com a Universidade de Southampton também parece confirmar os detalhes da vida e morte de Christopher Meyer. Até tentei ler um ou dois dos livros dele, mas eles eram um pouco rebuscados demais até pra mim, e não pareciam ter nenhuma relevância em particular pro caso.
Não consegui localizar nenhuma evidência de que ele fez uso da biblioteca ou dos serviços de consulta do Instituto, mas mesmo hoje em dia esses registros não são mantidos tão minuciosamente quanto deveriam, então isso não significa necessariamente que ele não esteve aqui.
O mais interessante foi o que o Tim descobriu sobre as duas últimas décadas da vida da Srta. Meyer, antes de ela morrer na prisão em 1993. Depois do depoimento, ela aparentemente passou quase 12 anos trabalhando em empregos de baixo nível, até que sua mãe e seu pai faleceram de câncer e doenças cardíacas, respectivamente.
Não tem nada de interessante sobre esse período em nenhum registro oficial, mas em 24 de outubro de 1984 ela assassinou um motorista de van de entregas chamado Danilo Costich.
Ela descarregou a carga original da van, que era composta por papéis de arquivo e envelopes, antes de enchê-la com vários barris de gasolina. Ela foi detida ao sul da ponte Vauxhall depois de ultrapassar um sinal vermelho e colidir com outro carro. Por sorte a gasolina não pegou fogo e ela foi detida pela polícia enquanto tentava fugir do local.
Originalmente acusada de direção imprudente, não demorou muito pra ligarem ela ao assassinato do Sr. Costich, e ela recebeu uma sentença de 17 anos na Penitenciária Feminina de Holloway. Ela morreu de pneumonia nove anos depois.
Um crime bizarro e aparentemente sem motivo. O único detalhe que ainda me incomoda é que a empresa para a qual Danilo Costich trabalhava, a Paper Run Limited, é a mesma empresa que na época fornecia a maior parte dos artigos de papelaria para o Instituto Magnus. Tenho um mau pressentimento sobre pra onde exatamente ela tava levando aquela gasolina.
Fim da gravação.
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Arquivista: Vocês não se importam se eu gravar isso, né?
Elias: Bem, pra falar a verdade...
Tim: Essa é uma das coisas sobre as quais queríamos conversar.
Martin: Isso aqui é uma intervenção.
Arquivista: Como é?
Elias: Se você quiser que essa seja uma audiência disciplinar oficial, John, podemos providenciar.
Arquivista: Tá. Podem falar.
Sasha: Nós nos preocupamos com você, John, e você tem estado bastante instável desde o incidente com a Prentiss.
Martin: E nós gostaríamos muito...
Elias: De não ter que te demitir.
Martin: De ter certeza que você tá bem.
Arquivista: Olha, eu entendo que estive um pouco... distante recentemente.
Tim: Você tava vigiando a minha casa.
Sasha: Você me seguiu durante meu horário de almoço e revistou a minha mesa.
Martin: Você disse que eu menti sobre um assassinato!
Arquivista: Eu... Eu... Isso foi porque...
Sasha: Você acha que nós matamos a Gertrude?
Arquivista: Não! É que... Talvez. Talvez tenham matado, eu não sei.
Elias: John, isso é um absurdo. Isso vai muito além de um ambiente de trabalho tóxico. Admito que parte disso é minha culpa por ter deixado as coisas chegarem a esse ponto, eu deveria ter intervido mais cedo.
Tim: Você ainda não acredita na gente, né?
Arquivista: Não é que eu não acredite em vocês, é só que... quer dizer, vocês podem ter matado ela!
Tim: Sério, escuta o que você tá falando.
Martin: Você tá errado!
Arquivista: Nós já estamos muito além do que é certo e errado, Martin — tem monstros lá fora, e eu não sei quem ou onde eles estão ou se algum de vocês... Se vocês querem que eu confie em vocês, então me desculpem, mas eu preciso de provas.
Elias: Aqui.
Arquivista: E o que é isso?
Elias: Uma cópia de todas as filmagens das câmeras da semana em que Gertrude desapareceu. A polícia finalmente terminou de limpá-las e examiná-las e nos deu uma cópia.
Arquivista: Não tem câmera no Arquivo.
Elias: Mas tem em todos os outros lugares. Incluindo em todas as entradas do Arquivo. E todos os vídeos mostram um relato notavelmente detalhado de todos os nossos movimentos durante aquela semana. Até os seus.
Arquivista: E você acha que isso dá um álibi pra todo mundo?
Elias: A polícia com certeza acha, mas fique à vontade pra confirmar você mesmo.
Arquivista: Obrigado. Eu vou.
Sasha: E não vamos mais ficar com essa paranoia.
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ARQUIVISTA
Estive assistindo às filmagens das câmeras que o Elias me deu. Elas realmente parecem dar um álibi consistente pra todo mundo, e ninguém é visto entrando ou saindo dos arquivos além da Gertrude. Pelo menos não até o Elias descer lá e encontrar o sangue.
Os próprios movimentos da Gertrude são um tanto instáveis e ela parece entrar e sair dos Arquivos a qualquer hora do dia e da noite, em alguns momentos aparecendo bem bagunçada.
Isso pode ser examinado com mais atenção mais tarde, mas por enquanto eu… Não consigo decidir se essa inocentação dos meus colegas é mais um alívio ou uma frustração.
No mínimo, parece que eu venho sendo... Venho sendo bastante injusto com eles.
Só espero que eles não tenham perdido totalmente o respeito por mim.
Mas uma coisa que não me tranquiliza em nada é o novo significado que isso dá aos túneis embaixo do Arquivo, porque parece cada vez mais provável que quem ou o que quer que esteja vivendo lá embaixo seja a mesma coisa que matou a Gertrude.
Fim do complemento.
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MAG059 — Recluso
Caso #0052911: Depoimento de Ronald Sinclair, a respeito dos anos que passou em uma casa de recuperação para adolescentes na Hill Top Road, em Oxford.
Ouvir em: Spotify | Youtube
Aviso de conteúdo: insetos, aranhas
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Depoimento de Ronald Sinclair, a respeito dos anos que passou em uma casa de recuperação para adolescentes na Hill Top Road, em Oxford. Depoimento original prestado em 29 de novembro de 2005. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento.
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Eu deveria ter vindo contar isso pra vocês antes, na verdade. Ouvi falar do seu instituto nos anos 80 e pensei: "Devo contar a eles?" Mas não vim. Pensei que vocês se interessariam mais por castelos e marcos antigos e não tivessem tempo pra acontecimentos estranhos em uma casa suburbana em Oxford. E vocês também são acadêmicos, então provavelmente têm padrões mais altos do que a história de terror de um maluco.
Mesmo assim, vi na semana passada que eles estavam planejando construir novamente naquele terreno. Outra casa onde ficava a antiga casa dos Fielding. Eu não sei, não é como se vocês tivessem poder pra parar a construção, mas eu só... Eu precisava contar isso pra alguém. E era menos provável vocês me expulsarem do que o Departamento de Planejamento da Câmara Municipal de Oxford.
Olha, morei com Raymond Fielding por quase três anos e pode acreditar em mim quando eu digo que não tem nada de bom em perturbar aquele lugar horrível. 
Eu era uma criança ruim. Eu melhorei muito nos últimos 40 anos desde então, mas naquela época eu era um bandidinho. A culpa não era totalmente minha — eu vim de uma família ruim. Meu pai foi embora antes de eu nascer, e não sei se você sabe como era ser mãe solteira no final dos anos 40, mas era difícil o suficiente pra minha mãe acabar tendo um problema sério com álcool.
Não vou falar dos detalhes podres da minha infância, mas digamos que não é surpresa que eu tenha saído da escola e entrado no sistema antes do meu aniversário de 13 anos. Eles tentaram alguns lugares pra me endireitar. Naquela época, esses tipos de lugares não eram tão prestigiados, e a única lição de vida que eu aprendi que valeu a pena foi a de como levar uma surra.
Finalmente, quando eu tinha 15 anos, depois que o sistema judiciário terminou os trabalhos comigo pela terceira vez, tive a oportunidade de reingressar na sociedade e me ofereceram um lugar em uma casa de recuperação na Hill Top Road.
É estranho. Tentei conseguir informações sobre ela várias vezes desde então, mas não tem nada lá. É como se nunca tivesse existido. Quer dizer, isso foi bem antes da era digital e muitos arquivos se perderam, mas isso ainda me incomoda. Foi a coisa mais traumática que já aconteceu comigo e, no que diz respeito a qualquer registro oficial, não tinha nem como eu estar lá.
Raymond Fielding era mais jovem do que eu esperava. Em todos os outros lugares os responsáveis eram velhos moralistas e grossos, carrancudos com calos nos dedos. Um monte de ex-militares que discursavam por horas sobre como suas vidas desperdiçadas haviam sido salvas pela disciplina do exército e faziam o possível pra impor isso a nós.
Ray, como ele insistia que o chamássemos, era diferente. Ele não tinha muito mais do que 30 anos e deixava seu cabelo castanho crescer longo — não pelos padrões de hoje, eu acho, mas teria deixado qualquer um daqueles autoritários com corte militar enfurecido. Ele era amigável e acessível, mas não parecia estar tentando ser nosso amigo. Ele era tranquilo e sorria bastante. Mas tinha alguma coisa em seus olhos que me deixou com receio de tentar tirar vantagem dele.
Eu não gostei dele desde o começo. Os outros adultos que conheci na minha jornada pela delinquência eram horríveis e variavam de benfeitores arrogantes e condescendentes a bandidos agressivos, mas eu sempre sabia. Eu sabia o que eles eram e qual era o meu lugar perto deles. Ray era um mistério, e isso me perturbava. Ainda assim, ele não era muito rigoroso com as nossas idas e vindas e as outras crianças que viviam lá pareciam bem.
A única coisa que me surpreendeu foi como era raro ver alguém voltar. Na maioria das outras casas de recuperação em que fiquei sempre tinha alguns moradores mais velhos, aqueles que acabavam arrumando companhias criminosas ainda piores e voltavam ocasionalmente, geralmente pra vender drogas ou recrutar alguém.
As anfetaminas eram a moda no início dos anos 60, então fiquei surpreso quando me mudei para Hill Top Road e não vi nenhum rebite ou cristal por lá. Parecia que nenhum ex-aluno da familiazinha do Ray voltava lá pra visitar.
Na época, eu só presumi que aquele bairro era muito bom, então provavelmente não era o tipo de lugar que pessoas do meu tipo — como eu pensava naquela época — costumavam visitar. Eu não tava errado. Os moradores locais nos odiavam. Nunca tivemos nenhum problema sério, mas os olhares que recebíamos só por fumar na rua me faziam querer quebrar uma janela às vezes.
Mas eu nunca fiz isso. Eu não sei muito bem por que não fiz, pra ser sincero. Antes de conhecer o Ray, eu teria feito. Já tinha quebrado muitas janelas no passado. Mas tinha alguma coisa em morar naquele lugar que entorpecia aquela vontade.
Minhas memórias de grande parte do meu tempo lá são... bem, não exatamente confusas, mas eu sinto quase como se estivesse observando as memórias de outra pessoa. Lembro que às vezes parecia que eu fazia coisas sem realmente querer fazê-las. Como se fosse só a memória muscular me movendo, ou uma corda me guiando suavemente.
Nunca foram coisas ruins ou perigosas, só... coisas que eu normalmente não teria feito, como escovar os dentes. Fico feliz por isso agora que passei dos 60 anos e os meus dentes são algo que eu valorizo. Mas aos 15 anos esse pensamento nem passava pela minha cabeça. Mas quando eu morava na Hill Top Road, eu os escovava todas as noites, pra cima e pra baixo e de um lado pro outro, meu braço se movendo como se eu nem precisasse pensar naquilo.
As outras crianças que moravam lá faziam o mesmo. Pelo menos eu acho que faziam. Lembro de eles serem meio tediosos — não é que fossem chatos, exatamente; passávamos tempo juntos, fumávamos e brincávamos e tal. Mas tinha alguma coisa neles. Como se algumas coisas que eles diziam e faziam não tivessem nenhuma intenção por trás.
De vem em quando dava pra ver um lampejo de alguma coisa. Tipo naquela vez em que eu e Dick Barrowdale fugimos depois de escurecer e colocamos fogo nas latas de lixo do Sr. Hainsley. Mas na maior parte do tempo eles ficavam quietos, quase tranquilos. Com certeza eles diriam a mesma coisa sobre mim e, na época, não parecia ter nada de errado. Eu fazia o que eu fazia porque era o que eu tinha que fazer. Eu nem sequer pensava em me questionar. Não sei se realmente reconheço quem eu me tornei enquanto morava naquela casa.
Mas eu comecei a ler. Havia uma loja em Cowley que tinha um balde de revistas velhas com que custavam 6 centavos porque não eram a edição mais recente. Eu costumava gastar todo o dinheiro que tinha lá e depois sentava debaixo da árvore no jardim dos fundos e as lia várias vezes, de cabo a rabo. Elas eram idiotas, na real, mas eu amava. No verão, com as folhas fazendo sombra suficiente pra me refrescar, eu diria que ficava mais feliz do que nunca.
Na maior parte do tempo, o Ray parecia contente em ficar longe da gente e nos deixar por conta própria. Ele tinha seu próprio escritório no porão onde passava a maior parte do tempo, e geralmente confiava em um de nós para ir ao mercado comprar comida e coisas pra casa. Além da igreja, que ele nos fazia frequentar com ele todos os domingos, ele raramente saía da casa. De vez em quando um ou outro morador do bairro superava a aversão por nós por tempo suficiente pra  perguntar a Ray como estavam as coisas e se ele estava bem.
Com o passar do tempo, comecei a ter a sensação de que, com exceção dos adolescentes que ficavam em sua casa, Raymond Fielding era tipo um recluso. Um recluso bem querido, com certeza, mas ver ele sair de casa em qualquer dia que não fosse domingo era uma coisa bastante significativa.
Além da igreja, tinha uma outra atividade corriqueira que ele sempre insistia que participássemos. Geralmente fazíamos nossas refeições na sala de jantar — que às vezes era um pouco apertada pois, quando a casa estava cheia, éramos em oito além do Ray, e mal cabíamos na mesa.
Nas noites de domingo, no entanto, todos nos reuníamos para o jantar e, antes de nos sentarmos para comer, ele tirava a toalha de mesa branca e brilhante que a cobria e nos reuníamos ao redor da madeira escura. Lembro que ela era esculpida com vários tipos de desenhos e padrões estranhos e rodopiantes. Parecia que se você escolhesse uma linha — qualquer linha —, poderia segui-la até o centro, até alguma verdade profunda, caso seu olho conseguisse acompanhar os traços que tivessem te chamado a atenção.
O centro da mesa parecia, a princípio, simplesmente parte do tampo de madeira, mas se você olhasse de perto, como eu fazia com bastante frequência, você conseguiria ver uma linha marcando bem o meio como se fosse uma caixinha quadrada esculpida com padrões parecidos com os outros que se espalhavam sobre o resto da mesa. Não lembro quanto tempo ficávamos sentados à mesa naquelas noites, e também não faço ideia do que costumávamos comer.
Então eu passei alguns anos relativamente em paz. Eu estudei pra valer, fiquei longe de problemas e, à medida que meu aniversário de 18 anos se aproximava, parecia que eu conseguiria encontrar alguém que me ensinasse um ofício decente. Naquela época, eu fui o mais velho da casa por alguns meses, já que os outros saíram de casa quando cada um completou 18 anos. Um homem de terno aparecia — quase sempre era um diferente —, Ray assinava alguns papéis e meu ex-irmão saía pela porta e ia embora pro mundão. Eu não os via depois disso, mas na época eu não pensava muito sobre disso. Presumia que eles estavam muito ocupados tentando sobreviver em um mundo que eu sempre considerei extremamente hostil.
Agnes chegou na casa dois meses antes do meu aniversário, no meio do inverno. Ray nunca tinha falado dela — nunca fez uma daquelas pequenas reuniões dele para apresentá-la. Um dia, ela apareceu de repente em casa e ninguém nem pensou em questionar isso. Ela era mais nova do que as outras crianças, talvez dez ou onze anos de idade. Ela não falava muito. Ela tinha um rosto pequeno e fino e longos cabelos castanhos, sempre amarrados em duas tranças apertadas que ela enrolava nos dedos sempre que você tentava falar com ela. Admito que ela era um pouco assustadora, pensando agora, mas pra ser sincero na época eu nunca questionei isso, do mesmo jeito que nunca questionei nada daquilo.
Mas ela nunca ia à igreja. Nunca se sentava à mesa de jantar quando ela estava descoberta. Sempre que Ray entrava na sala e ela estava lá, ele geralmente só se virava e saía. E teve uma vez que eu podia jurar que ele olhou pra ela com algo nos olhos que, mesmo no meu estado entorpecido, percebi ser medo.
Eu tava tão focado na minha liberdade iminente que nem prestei muita atenção a esses acontecimentos, e não tenho muito mais o que dizer sobre a Agnes ou o que ela fez durante o tempo que passou na casa. Tudo o que eu sei é que, quando o homem do Comitê Infantil apareceu com os papéis pro Ray assinar, ela estava parada no pé da escada, me observando com uma expressão que parecia quase divertida.
Ray assinou os documentos pra me devolver totalmente à custódia do Estado. A maioridade naquela época era de vinte e um anos, mas a partir dos dezoito eu deveria encontrar trabalho e moradia por conta própria. Era tudo meio surreal — ver canetas marcando minha vida em seus diferentes estágios sem que eu mesmo segurasse nenhuma delas.
Quando o homem de terno me disse para segui-lo com um sotaque vindo direto da BBC, a Agnes se aproximou e gesticulou para que eu abaixasse para ouvi-la. Eu fiz isso, mas em vez de um sussurro conspiratório, ela só me deu um beijo rápido na bochecha e saiu correndo pelo corredor. Fiquei parado ali por um momento, confuso, antes que meu guardião temporário mais uma vez me mandasse segui-lo.
Eu o segui, e o ar frio do lado de fora me atingiu como um tapa na cara. Caminhamos por alguns minutos até o fim da estrada e parecia que minha pequena mala estava quase congelando em minha mão. Ele me disse para esperar lá enquanto ele ia buscar o carro, depois desapareceu em uma rua lateral.
Fiquei lá enquanto o vento cortante atravessava meu casaco fino. O sol estava brilhando, mas não ajudava muito a suavizar a intensidade do ar de fevereiro enquanto eu esperava.
Então, de repente, eu não estava mais esperando. Eu me virei, larguei minha mala no chão e comecei a caminhar de volta para a casa de Raymond Fielding. Eu não queria voltar. Eu não tinha motivos pra voltar, mas aparentemente decidi voltar mesmo assim, porque eu sabia que era pra lá que eu estava indo.
Depois de dois anos e meio eu já estava bastante acostumado com aquele sentimento, mas dessa vez tinha mais alguma coisa ali. Alguma coisa no fundo da minha mente, um terror frenético e devastador. Mas não adiantou nada. Eu tava voltando pra Hill Top Road, e não importava o que eu sentia sobre isso. A minha vontade nem fazia diferença ali.
A porta estava destrancada quando eu voltei e a casa estava silenciosa. Meus olhos dispararam ao redor, procurando por alguém que pudesse me dizer o que estava acontecendo — por que os finos fios que me guiavam pela vida me arrastaram de volta pra lá — mas eu tava sozinho. Caminhei até a porta que descia pro porão, pro escritório do Ray, e de repente fiquei chocado ao perceber que ninguém além dele nunca entrava ali. Pelo menos, não que eu saiba.
Mesmo assim, estendi a mão e girei a maçaneta silenciosamente, e a porta se abriu revelando um lance de escadas que levava para baixo. Lâmpadas em abajures esféricos iluminavam o caminho, e me ocorreu que, dado o tempo que Ray passava lá embaixo, era surpreendente a quantidade de teias de aranha ali. Elas cobriam todos os cantos e revestiam parcialmente as paredes. Ao descer as escadas, fechando a porta atrás de mim, vi ainda mais teias e cheguei à inquietante conclusão de que o que cobria as lâmpadas nuas não eram mesmo abajures, mas sim grossos aglomerados de teias de aranha.
A cena que eu encontrei quando finalmente cheguei ao pé da escada estava bem longe do que eu esperava encontrar. Em vez de um escritório cheio de livros, papéis, mesas e coisas assim, a sala era grande e estava quase vazia. As paredes e o teto eram de terra e aquilo parecia mais uma toca do que qualquer outra coisa.
No meio da sala estava aquela mesa hipnótica estranha, embora a forma como ele havia trazido aquela coisa pesada de madeira pra lá estivesse além da minha compreensão. O lugar inteiro estava coberto por uma espessa teia de aranha, e nos aglomerados grossos ao redor dos cantos da câmara eu vi formas que reconheci.
Doris Hardy. Dick Barrowdale. Greg Montgomery. Os mais velhos que saíram da casa antes de mim.
Eles estavam imóveis agora, envoltos em seus casulos pegajosos. Seus corpos pareciam deformados e inchados de um jeito que eu não entendia. Mas isso é só porque naquele momento da minha vida eu ainda nunca tinha visto um saco de ovos de aranha.
Raymond Fielding estava sentado na cadeira. Ele parecia o mesmo de sempre, aquele sorriso sereno e indecifrável ainda no rosto. Seu casaco de couro marrom parecia se mover ao redor de seu corpo. A textura na luz fraca parecia mais ser uma pele grossa.
Ele não disse nada, só observou enquanto eu continuava caminhando em direção à mesa. Apesar de todo o terror que estrangulava meu coração naquele momento ao descobrir o destino grotesco dos meus amigos, eu ainda conseguia sentir a expressão plácida e indiferente em meu rosto, e me vi diante da mesa como se não tivesse nada de errado.
Estendi a mão e puxei o quadrado de madeira do centro da mesa. Por si só, parecia ser uma pequena caixa de madeira, e a tampa abriu suavemente enquanto minhas mãos se moviam num movimento ensaiado. Dentro havia uma maçã — verde, fresca e ainda molhada com o orvalho da manhã.
Eu sabia que eu ia come-la. Eu podia sentir as lágrimas tentando desesperadamente escorrer dos meus olhos, mas em vez disso decidi não chorar. Coloquei a caixa na mesa, estendi a mão e peguei a maçã.
De repente, senti uma explosão de dor na bochecha. Foi como se alguém tivesse pressionado um ferro em brasa em meu rosto, e eu poderia jurar que ouvi a carne chiar quando soltei um grito e caí de joelhos.
Levei as mãos ao rosto e percebi duas coisas muito importantes naquele momento. A primeira foi que meu rosto parecia estar intacto; eu não conseguia sentir nenhum ferimento ou queimadura. A segunda foi que levantar a mão foi um ato verdadeiramente voluntário. Eu mesmo quis fazer aquilo, e qualquer que fosse o poder que estivesse me dominando, me puxando pra sua teia, eu estava livre dele.
Olhei para Raymond Fielding, cujo rosto finalmente mostrava uma expressão real — confusão e raiva. Quando ele se levantou, vi pequenas formas se contraindo e caindo de sua jaqueta, e eu corri. Subi correndo aquelas escadas, saí pela porta e fugi para a noite. Não olhei pra trás e até hoje rezo todas as noites para que os outros naquele porão já estivessem mortos.
É isso mesmo. Em duas horas eu estava fora de Oxford, dentro do primeiro trem que consegui pegar. Pulei fora em Birmingham pra evitar um fiscal de passagem. E foi lá que eu passei os anos seguintes. Levando em conta o começo da minha vida, até que me saí muito bem. Agora tenho conforto, educação e dinheiro. Tento pensar que deixei meu passado pra trás, mas esse tipo de negação não me ajuda a dormir. Só tive minha primeira noite verdadeiramente tranquila desde aquele dia depois de ler sobre o incêndio que queimou a casa.
Mas agora eles estão construindo lá. Eles estão revivendo um terreno que deveria ser deixado queimado e vazio. E eu comecei a sonhar de novo.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento. 
O Sr. Sinclair não estava exagerando quando descreveu as dificuldades de rastrear informações sobre qualquer casa de recuperação para adolescentes na Hill Top Road. Ou sobre Raymond Fielding, no geral.
Embora eu esteja naturalmente propenso a suspeitar de alguma conspiração, o Martin me informou que as lacunas são parecidas com as de outros arquivos perdidos ou danificados. Faltam muitos registros desse período, não só relacionados a Fielding, mas a muitas outras instituições semelhantes na área. Também não existe nenhuma tentativa de encobri-los ou redirecioná-los. Parece que o armário que guardava esses registros foi perdido ou danificado nos anos seguintes.
Fiz o que pude pra evitar que Martin lesse esse depoimento com muitos detalhes. Não estou interessado em ter outra discussão sobre aranhas. Na verdade, depois de ler esse depoimento, não tenho interesse em pensar em aranhas nenhum pouco a mais do que me é exigido profissionalmente.
Isso levanta mais questões sobre a relação entre Raymond Fielding e essa tal Agnes. Só posso esperar que algumas respostas estejam em outro lugar nos Arquivos. Eu não ficaria surpreso. Entre Ronald Sinclair, Ivo Lensik e o Padre Burroughs, parece que ainda tenho muito a descobrir sobre a Hill Top Road. 
Fim da gravação.
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ARQUIVISTA
Complemento.
Todo mundo tá me evitando. Eles começaram a trabalhar mais longe de mim do que o normal e, quando eu chamo eles por qualquer motivo, eles estão sempre ansiosos pra sair daqui o mais rápido possível. Eles trocam olhares furtivos quando pensam que eu não tô olhando.
Eu não gosto disso. Sinto que eles estão planejando alguma coisa.
Fim do complemento.
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MAG058 — Comida Para Viagem
Caso #8450512: Depoimento sem assinatura a respeito de um possível canibalismo ao tentar cruzar a Trilha do Oregon.
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Aviso de conteúdo: canibalismo
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Depoimento sem assinatura a respeito de um possível  canibalismo ao tentar percorrer a Trilha do Oregon. Carta original datada de 10 de novembro de 1845. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento. 
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Já aceitei que não vou sobreviver a isso. O frio arranha a minha pele e parece cortar até minha própria alma, e eu estou com tanta fome que mal consigo ficar de pé. Mas eu não vou ceder. Ainda consigo ouvi-lo me provocando. Me tentando. Mas prefiro morrer a participar de uma refeição tão profana. Tampouco tirarei minha própria vida, não importa qual seja o tamanho de meu sofrimento. Tenho certeza de que minha recompensa final chegará em breve, e receberei meu salvador com a consciência limpa e o coração cheio de fé. O pastor Lawrence me disse uma vez que não existem barrigas vazias no céu, e tenho certeza de que ele está certo.
Me pergunto se verei Benjamin lá. Espero que sim, apesar de todos os seus defeitos e sua tagarelice incessante. E ao lado de todos aqueles que perdemos, tenho certeza de que olharemos para a perdição e veremos Eustace Wick se contorcendo em agonia entre as chamas que ele merece.
Falando em chamas, devo pedir desculpas a quem tiver encontrado essa mensagem pelo estado do papel. Estou tendo que escrever isso perto do fogo que tenho, tanto para ter luz quanto para impedir que a tinta congele. Provavelmente haverá alguma queimadura, mas espero que fique legível.
Nunca deveríamos ter tentado cruzar a Trilha do Oregon. Sei disso agora. Eu deveria ter ficado em Savannah e construído a vida que podia — talvez aceitado me casar com Adam Hawthorne. Ele era uma década mais velho que eu, mas não ouvi nenhuma reclamação de sua esposa anterior enquanto ela era viva, e teria sido um destino melhor do que congelar até a morte nessas montanhas, ouvindo as provocações incessantes de Benjamin.
Mas minha vida anteriormente era repleta de provações e viagens, e havia uma parte da minha alma que sentia que este era simplesmente o meu destino. Então, quando meu pai se juntou à minha mãe no Céu, três anos depois de nos mudarmos para a pequena cidade de Savannah, em Missouri, parecia que me mudar novamente era o que o nosso bom Senhor planejava para mim.
Foi então, quando tive que escolher entre tentar ganhar a vida com 20 acres de solo do Missouri que meu pai havia deixado para mim ou construir uma vida por conta própria, que Benjamin Carlisle gentilmente pediu permissão para consertar sua carroça em minhas terras. Não vou negar que ele era um homem bonito. Mesmo agora, o frio preservou aquela expressão agradável de seu rosto, por mais magro que ele possa estar. Fiquei um tanto encantada por ele, mas não pensei mais sobre isso, já que eu mesma era uma mulher de aparência simples. Fiquei bastante surpresa quando levei uma jarra de água para sua lareira naquela noite e ele me perguntou diretamente se havia algum lugar na cidade de Savannah onde ele pudesse encontrar uma esposa.
Bem, este me pareceu um pedido um tanto estranho, embora eu mesmo soubesse pouco sobre cortejo. Benjamin explicou que estava saindo da casa de um tal de José e viajando ao longo da trilha do Oregon em direção ao Vale do Willamette, um paraíso exuberante na fronteira. Disse ele que os colonos da região do Oregon ofereceram terras para aqueles que os seguissem. 320 acres de terra para os solteiros, segundo ele, mas um colono casado poderia reivindicar 640 acres. Isso, e a perspectiva de mais um par de mãos para ajudar no trabalho agrícola, era um grande incentivo.
No geral, ele disse que se conseguisse encontrar uma esposa antes de chegar ao interior do Oregon, ele pretendia se casar. Bem, depois que ele me contou isso, expliquei minha situação a ele e o pastor Lawrence nos casou no dia seguinte. Mesmo agora, não consigo me arrepender totalmente dessa parte dos eventos que me trouxeram até aqui, e se tivéssemos chegado ao Vale do Willamette como havíamos planejado, acredito que teríamos sido muito mais felizes do que a maioria das pessoas.
Eu tinha poucos bens para embalar e pouca comida sobrando, mas levei o que pude para a carroça de Benjamin. Era final de maio quando iniciamos nossa viagem, e se eu conhecesse melhor a rota que iríamos seguir, saberia que era perigosamente tarde para iniciar aquela viagem. Mas eu não a conhecia. 
Em muitos aspectos, Benjamin foi tão impulsivo ao planejar a viagem quanto foi ao escolher uma esposa, e só depois de algum tempo na estrada percebi o quão mal preparado ele estava para as muitas dificuldades da estrada. Eu nunca perguntei exatamente de onde ele era ou por que ele queria se estabelecer no Oregon. Nas poucas vezes em que toquei no assunto, ele sempre encontrava um jeito de desconversar, e eu tive a impressão de que ele estava fugindo de problemas no leste. Eu nunca insisti no assunto. Eu era muito grata a ele por me levar junto, por compartilhar sua comida e cama comigo e por ter me resgatado, a meu ver, de uma vida de tristeza e sujeira no Missouri.
Tornou-se evidente, à medida que viajávamos, que as bênçãos não eram totalmente unilaterais. No fim das contas, eu era muito mais ágil para lidar com as dificuldades do caminho do que ele, e bem mais hábil para manter a carroça em movimento. Cuidei dele quando teve febre enquanto atravessamos o Colorado, e mais de uma vez consegui evitar um ataque de nativos, prendendo a carroça em uma pequena ravina até que o grupo de guerreiros passasse. No fim das contas, sinto que mais do que fiz por merecer.
Ainda me lembro da primeira vez que Benjamin viu os crânios daqueles viajantes que nos precederam e que não se saíram tão bem quanto nós perto de nosso acampamento. O pobre homem quase desmaiou. E não pude deixar de pensar que, se não fosse por mim, ele provavelmente teria se juntado àquelas pobres almas que partiram. Decidi não compartilhar esse pensamento em particular.
Chegamos ao Rio Laramie e à Fortaleza John em outubro. Era um pequeno e miserável entreposto comercial de peles no Wyoming, com paredes grossas de madeira, sólidas o suficiente para impedir a entrada de guerreiros nativos, e havia vários sinais de que muitas pessoas haviam passado recentemente pelo local.
O gerente, um homem enxerido que se apresentou como Bruce, nos disse que havíamos perdido a oportunidade de cruzar as Montanhas Rochosas com segurança e que as passagens ficariam cobertas de neve dentro de um mês. Ele disse que poderíamos passar o inverno na Fortaleza John se tivéssemos comida e dinheiro para isso ou poderíamos dar meia volta e ir embora. Pelo seu tom de voz, parecia que ele não se importava muito com qual das opções escolheríamos.
É claro que ficamos arrasados e passamos vários dias discutindo nossas opções e tentando tomar uma decisão sobre o curso de ação mais sábio, embora soubéssemos que, para cada hora que passávamos em tal conferência, nossas escolhas se tornavam menores e as consequências mais penosas.
Foi nesse momento que fomos abordados por um homem que se apresentou como Eustace Wick. Ele era uma figura baixa e gorducha, de ombros largos e com a pele áspera e escura de alguém que passou a maior parte da vida sob o brilho implacável do sol. Sua barba longa e desgrenhada era grisalha, mas seus olhos brilhavam com uma astúcia e uma inteligência que eu não esperaria ver em um rosto tão desleixado. Ele também possuía outro atributo que me surpreendeu, embora seja algo muito mais sinistro, pensando agora: ele tinha em sua boca um conjunto completo e saudável de dentes.
Então, o Sr. Eustace Wick perguntou sobre nosso propósito na Fortaleza John e, dando muito mais detalhes do que me deixava confortável, Benjamin explicou a ele nossa jornada e nosso dilema. Mas com a menção das palavras Vale do Willamette, os olhos do baixinho se iluminaram e um sorriso praticamente dividiu seu rosto em dois, pois ele era, segundo ele, o melhor guia desde Sacagawea e poderia nos levar pelas Montanhas Rochosas muito antes das neves atingirem com força... por um preço.
Ao dizer isso, ele sorriu, e todos os dentes quadrados e brilhantes em sua boca pareceram refletir a luz.
Fiquei hesitante por já ter conhecido muitos vendedores ambulantes e bandidos que queriam se passar por guias e, enquanto Benjamin pechinchava o preço, minhas dúvidas aumentaram, pois Eustace Wick não oferecia muita resistência e acabamos conseguindo seus serviços por apenas vinte dólares. Era muito dinheiro, com certeza, mas pelos serviços que ele estava oferecendo e pelos perigos envolvidos, não era praticamente nada.
Infelizmente, apesar de toda a minha hesitação, logo ficou claro que Benjamin estava decidido a contratar o homem. Para ser justo com ele, nós não tínhamos recursos para passar o inverno na Fortaleza John e, se tentássemos voltar, havia todas as possibilidades de que o clima ainda se tornasse mortal para nós. Estávamos presos entre a cruz e a espada, e Benjamin determinou que, guiados por Eustace Wick, tentaríamos seguir. O pobre tolo não tinha ideia de que era o próprio diabo quem nos conduzia para a espada.
Ninguém tentou nos impedir de partir, embora ficasse claro pelos olhares que acreditavam que já estávamos mortos. Minhas próprias esperanças não eram muito maiores, mas o homenzinho agora cavalgava na carroceria e brincava enquanto viajávamos, mantendo Benjamin mais animado do que eu o via há meses. Isso começou a desaparecer quando o ar frio começou a nos atingir e os caminhos através das rochas se tornaram mais íngremes e estreitos. A jornada era difícil, mas seguimos em frente por quase uma semana
Eustace Wick parecia ser tão bom quanto havia prometido, mantendo-nos nas trilhas por onde a carroça poderia passar sem muito perigo. O frio, porém, roubou-nos o sono e, depois daqueles primeiros dias, as outrora belas vistas e os picos ondulados das montanhas pareciam transformar-se em costelas irregulares e vis que se projetavam da carcaça do mundo e eram consumidas pelos abutres.
Benjamin ficou quieto. Eu fiquei mal-humorada. Eustace Wick ficou ainda mais animado do que antes, e quando os primeiros flocos de neve começaram a cair, ele estava praticamente gritando de alegria. Minhas suspeitas sobre suas motivações começaram a congelar como um bloco de gelo dentro de meu peito, duro e pesado.
Quando acordamos uma manhã, depois de uma semana e meia de viagem, e encontramos as rodas de uma de nossas carroças quebradas e destruídas sem possibilidade de reparo, não consegui me surpreender. A neve estava caindo espessa a essa altura. Já havíamos usado todas as nossas rodas de reposição ao longo dos muitos meses de jornada. Estávamos presos lá e certamente morreríamos.
Foi então que Eustace Wick apareceu de pé em uma rocha próxima com o mesmo grande sorriso no rosto. Ele nos disse que parecia haver uma tempestade de neve chegando, mas ele havia encontrado uma caverna próxima onde poderíamos nos abrigar. Ele nem sequer fingiu preocupação com o estado da carroça. Benjamin e eu o seguimos, e como o esperado, lá na encosta da montanha havia uma caverna rasa, mas bem escondida.
É difícil dizer exatamente em que momento específico eu percebi que Eustace Wick estava planejando nos comer. Pode ter sido quando ele não fez nenhuma menção de recuperar qualquer alimento da carroça quando nos levou ao seu covil. Poderiam ter sido as pilhas de lenha já cuidadosamente empilhadas contra a parede oposta, cortadas em troncos. Pode ter sido apenas o jeito que ele olhou para Benjamin com aqueles dentes brancos e quadrados, exibindo um sorriso sobrenatural.
Mas em algum ponto entre a carroça e a caverna tive a certeza de que nosso suposto guia nos atraiu até ali com a única intenção de nos matar e comer nossa carne. Não tive tempo de comunicar esse pensamento ao meu marido, que ainda parecia terrivelmente alheio à situação, e uma vez dentro da pequena caverna não havia privacidade para discutir o assunto.
Então eu só pude sentar ali, observando Eustace Wick acender uma fogueira enquanto Benjamin tentava se esquentar e conversar com o homem que ele ainda não havia percebido ter mudado de nosso guia para nosso sequestrador. Eu simplesmente esperei e observei enquanto a tempestade começava a cair lá fora, e o calor do fogo foi rapidamente abatido pelo vento frio e gelado.
A noite começou a cair. O fogo era a única luz que projetava sombras dançantes nas paredes atrás de nós. Eu podia sentir fome me corroendo e tinha certeza de que não era a única, mas tive um pensamento estranho de que o homem barbudo agachado do outro lado das chamas estava esperando que alguém mencionasse o assunto, então me recusei a falar. É claro que meu marido não era tão discreto e começou a lamentar nosso esquecimento ao deixar a pouca comida que ainda tínhamos na carroça.
Com isso, o sorriso de Eustace Wick ficou ainda mais largo, se é que isso era possível, e ele disse que tínhamos toda a comida que precisávamos. Ele olhou para o fogo e começou a murmurar algo. Parecia uma oração. Acho que ele estava agradecendo, do jeito lunático dele.
Lembro exatamente das palavras. Ele fixou os olhos em Benjamin e disse: "Venha, carne. Sê a minha convidada, e tudo que me dás, me seja abençoado."
Quando ele disse isso, um silêncio caiu sobre a caverna. O vento cessou e as sombras na parede pararam de se mover, como se estivessem observando a cena com muita atenção. Eustace Wick desembainhou uma faca longa e afiada e foi até Benjamin, que não fez nenhum movimento para se defender. Seus olhos estavam arregalados, olhando para o canibal louco que se aproximava dele com uma expressão de medo e êxtase. A cena toda era tão irreal que levei quase um segundo inteiro para me lembrar de sacar minha arma.
Durante toda a viagem mantive a pistola do meu pai escondida dentro de minha crinolina. Benjamin sabia disso, é claro, mas obviamente nunca mencionou isso a Eustace. Se eu conseguisse recarregá-la, poderia tê-la sacado antes, mas com apenas um tiro e sendo uma atiradora inexperiente sabia que precisava esperar o momento certo.
No fim, acabei esperando demais, pois no momento em que coloquei o cano na têmpora do assassino asqueroso e puxei o gatilho, ele passou a lâmina pela garganta de meu marido. Houve um estrondo terrível, um esguicho de cérebro e um jato de sangue. Os dois homens caíram mortos no chão e eu me vi sozinha no silêncio da noite gelada. Acredito que não preciso contar as lágrimas que derramei naquela noite. Lágrimas que viravam gelo antes mesmo de tocarem o chão. Chorei por meu belo e estúpido Benjamin e chorei por minha própria vida, agora certamente perdida no frio, na neve e na fome.
Foi quando esse último pensamento passou espontaneamente pela minha mente que eu ouvi. Muito tênue, chamando suavemente. O som da voz de Benjamin.
Chamei por ele, por um segundo muito feliz pela possibilidade de ele estar vivo, mas assim que toquei sua pele gelada que já começava a ficar azul, percebi que não poderia ser verdade. Apesar disso, sua cabeça começou a se virar em minha direção e seus olhos congelados se abriram. Seus lábios se separaram bem acima do corte vermelho escancarado em sua garganta e ele falou.
"Coma-me", disse ele.
Dei um pulo para trás, balançando a cabeça, rezando para que o Senhor me livrasse dessas visões horríveis, mas a voz dele veio mais uma vez, mais alta e mais clara, desta vez me implorando para comê-lo. Ele me disse o quão gostoso ele seria, melhor do que qualquer carne de porco salgada. Eu poderia cozinhá-lo no fogo, disse ele, e o frio o manteria fresco pelo tempo que eu precisasse. Gritei com ele — gritei para ele ficar quieto, para que o demônio que havia se infiltrado lá dentro voltasse para o inferno, mas não fez diferença. Ainda assim, ele implorou para ser comido.
Já se passaram cinco dias e Benjamin continua implorando. Ele me insulta e me amaldiçoa, me chama de covarde e diz que eu prefiro morrer a fazer parte de algo maior do que eu. A entrada da caverna está praticamente bloqueada pela neve e mesmo que eu cavasse para sair, não teria para onde ir. Eu nem sei onde estaria o que sobrou da carroça. Mas acho que posso tentar agora que terminei este relato dos eventos que me levaram ao meu destino.
Espero que quem encontrar isso não nos julgue muito duramente. Estávamos simplesmente buscando uma vida melhor. Deixo isso aqui no casaco de Eustace Wick na esperança de que possa ser protegido das depredações do inverno. Quanto a mim, tentarei cavar uma saída e chegar o mais longe que puder.
Não vou sobreviver, mas espero que o Senhor entenda que não é suicídio. Acontece simplesmente que não aguento mais ficar presa aqui, onde o cadáver do meu marido me implora para comer sua carne.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento. 
Certamente uma história grotesca, mas não tenho acesso ao tipo de informação necessária para verificar nenhum dos detalhes fornecidos pela anônima Sra. Carlisle. Não consegui encontrar registros de nenhum Eustace Wick. Há um Benjamin Carlisle mencionado no censo de 1838 do condado de Burke, na Carolina do Norte, mas é só isso.
A oração aparentemente proferida pelo Sr. Wick é um desvirtuamento da antiga graça luterana: "Vem, Senhor Jesus, sê o nosso convidado, e tudo que nos dás, nos seja abençoado". Houve um notável pregador luterano chamado Horatio Wick que é mencionado brevemente em várias histórias de Massachusetts como tendo se desentendido violentamente com seus colegas da igreja, o Sacramento da Eucaristia, mas, aparentemente, ele se afogou em 1832.
O que mais me interessa é como esta carta não assinada, se é que podemos acreditar nisso, chegou de uma caverna congelada no Wyoming ou Idaho até a coleção pessoal de Jonah Magnus.
Fim da gravação.
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Tim: Olha, eu tentei falar com o Elias sobre isso. Ele não parece estar muito bem.
Martin: Ele tá sobrecarregado. Você sabe como ele tá confuso desde a Prentiss.
Tim: Como ele tá confuso!?
Martin: Ah, desculpa, desculpa, eu não quis dizer que você também não tá, só que…
Tim: Não! Porque eu não comecei a perseguir meus colegas de trabalho!
Martin: Talvez se você tentasse falar com ele...
Tim: Claro, como se ele já não me olhasse como se eu fosse um assassino.
Martin: Olha, a gente só tem que deixar ele passar por essa fase. Eu sugeri a terapia, mas ele só se nega.
Tim: Bom, nós temos que fazer alguma coisa.
Martin: É, talvez.
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ARQUIVISTA
A conversa anterior foi ouvida por acaso no dia 19 de novembro de 2016. Isso reafirma minhas preocupações atuais sobre o Tim, embora de alguma forma me assegure de que é improvável que Martin seja o culpado, ainda mais depois da nossa última conversa.
Eu preciso ter mais cuidado.
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MAG057 — Espaço Pessoal
Caso #0090404: Depoimento de Carter Chilcott a respeito do tempo que passou isolado a bordo da estação espacial Dédalo em setembro de 2007.
Ouvir em: Spotify | Youtube
Aviso de conteúdo: isolamento, paranóia, tentativa de suicídio
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Depoimento de Carter Chilcott, a respeito do tempo que passou em isolamento a bordo da estação espacial Dédalo em setembro de 2007.
Depoimento original prestado em 4 de abril de 2009. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento.
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Estamos sozinhos lá fora.
Eu conheço as estatísticas. O tamanho do universo, as probabilidades e proximidades e as promessas de outros seres existindo lá fora entre as estrelas, mas eu já estive lá. Não tem nada. Nada além de um limbo vazio e apático entrelaçando planetas mortos e estrelas mortas, todos juntos como uma tapeçaria de solidão sem sentido.
Os humanos existiram por uma fração de segundo na existência do universo, e seremos extintos com a mesma rapidez. E quando finalmente partirmos eternamente para o vazio silencioso da morte, não restará nada além do universo frio.
E nada marcará nossa passagem aqui porque existe nada que possa fazer isso.
Pode me mandar embora, se quiser. Se contente com suas fantasias ilusórias de alienígenas e visitantes de outros mundos, mas não tem nenhuma prova que eu possa te dar além do testemunho de alguém que passou tanto tempo olhando pra aquela infinidade escura e vazia e sabendo — realmente sabendo — o que significa estar flutuando abandonado em um universo vazio.
Eu sabia que os experimentos de isolamento poderiam ser difíceis quando me inscrevi. Não sou um idiota ingênuo que pensou que aguentaria alguns efeitos colaterais peculiares pelo bem da ciência. Não — eu sou astronauta, então sei pesquisar. Quando fui escolhido para o projeto — um estudo do isolamento a longo prazo estabelecido nas condições da órbita terrestre baixa — li o máximo que pude sobre casos anteriores e experimentos semelhantes nos últimos 30 anos, me familiarizando com os efeitos colaterais e prováveis problemas psicológicos.
Era assustador, pra dizer o mínimo. Eu não tava ansioso pra experimentar o que os testes anteriores prometiam que aconteceria com a minha cabeça, mas acho que eu não tinha muita escolha. A minha inscrição na Estação Espacial Internacional ficou flutuando no limbo por tanto tempo que, quando uma instituição privada me contatou dizendo que haviam lançado o Dédalo recentemente, que era um pequeno satélite tripulado, e precisavam de membros qualificados pra tripulação, aproveitei a chance de finalmente poder ir pro espaço.
Eu deveria ter percebido que o que eles queriam dizer com "membro da tripulação" era "rato de laboratório". Mas, pra ser sincero, mesmo depois de ter descoberto isso, minha animação pelo projeto não diminuiu. Eu ia pro espaço.
Tecnicamente, havia duas outras pessoas na tripulação. Digo tecnicamente porque nunca passei nenhum tempo com eles além da viagem até o Dédalo. Os nomes deles eram Yan Kilbride e Manuela Dominguez. Tenho certeza de que eles provavelmente cuidaram muito mais da estação do que eu, mas até onde eu sei, eu era o único lá em cima.
Pelas conversas que eu ouvi antes da missão começar, cada um de nós tinha um experimento individual pra cuidar, mas eles também estavam lá de reserva pro caso de algo dar muito errado com o meu, já que os cientistas que nos observavam não podiam intervir.
Lembro que o homem responsável pelo meu projeto em particular, Conrad Lukas, fez uma careta exagerada de desgosto quando me disse que eu não estaria completamente sozinho lá. Tive a clara impressão de que ele era uma daquelas pessoas que sentem que as restrições éticas não fazem nada além de amarrar as mãos de um verdadeiro cientista, o deixando à mercê das limitações de seus subordinados.
Minha seção da pequena estação espacial era completamente independente. Tinha comida, cobertores pra dormir e equipamentos de exercício de gravidade zero, tudo pro meu uso pessoal. A única entrada pro resto do satélite estava trancada e selada. Podia ser aberta de ambos os lados, mas do meu lado exigia um código. Eu tinha acesso ao código em caso de emergência, mas eu ainda tinha muita missão pela frente pra sequer pensar em ser o responsável por acabá-la mais cedo.
Eu também tinha uma grande janela arqueada. Ela me dava uma boa visão da Terra lá embaixo, assim como muitas oportunidades de olhar pro espaço, o que eu fiz bastante naqueles primeiros dias.
Me disseram que os outros astronautas fariam o possível pra evitar a janela enquanto faziam manutenção ou reparos do lado de fora. O Controle de Missão também me forneceu muitos livros, filmes e outros entretenimentos, pois, como Conrad me disse na primeira reuniçao, o experimento era sobre isolamento, não sobre tédio. Então quando tranquei a porta pela primeira vez eu tava me sentindo muito animado com a coisa toda, pra ser sincero.
Eu sabia que tava sendo monitorado. Tinha uma câmera pequena montada na parede que ficava de olho em mim. Não era invasiva ao ponto de eu não conseguir sumir dela quando quisesse, mas na maioria das vezes eu ficava feliz em comer, ler e me exercitar na frente da lente atenta.
É claro que aqueles que avaliavam o meu progresso nunca se comunicavam comigo diretamente e talvez nem estivessem assistindo à transmissão o tempo todo, então, se eles tinham opiniões sobre como eu tava fazendo meu trabalho, eu nunca ouvi. Mesmo que meu trabalho fosse só ficar sentado em uma sala no espaço esperando minha mente fritar.
Tentei não me confortar muito com o fato de que havia pessoas observando cada movimento meu, pois senti que encontrar esse conforto iria muito contra a essência do experimento. Eu tinha que me sentir sozinho de verdade. O que pelo menos não demorou muito pra acontecer. Sinceramente, não consigo ver como ter que me amarrar pra dormir ou beber suco de canudo em um saco de papel alumínio pode ter muito efeito no isolamento, mas eu que não ia contestar.
Acredito que algumas pessoas teriam ficado mais perturbadas do que outras por estarem orbitando a Terra, mas não me pareceu muito diferente de nenhum dos outros estudos sobre isolamento conduzidos nas últimas décadas. Na verdade, o verde e azul silencioso e ondulante da Terra logo abaixo era outra fonte de conforto — saber que outras bilhares de pessoas viviam suas vidas sem ter ideia do que estava acontecendo bem acima de suas cabeças.
Esses dois confortos duraram quase seis semanas. Eu estava ciente de que era ali que eu deveria começar a sentir alguns dos efeitos colaterais mais angustiantes.
Eu já tinha passado pela apatia e por uma crise de insônia. E eu não tava usando minha máquina de exercícios direito há quase duas semanas, mas ainda assim não esperava que as alucinações fossem tão graves quando elas começaram.
Fui acordado duas vezes com o barulho da porta abrindo, só pra encontrá-la tão fechada quanto sempre esteve. Durante os dias eu ocasionalmente ouvia passos, o que nem deveria ser possível em gravidade zero. Teve também um apagão por mais ou menos 20 minutos em algum momento que pode ou não ter sido real. Aparentemente não perdemos energia em nenhum outro sistema, só nas luzes.
Então tudo isso era razoavelmente angustiante, mas pelo menos tinha a vantagem de não ser inesperado. Não... o primeiro aviso que eu recebi sobre como as coisas iam piorar foi o traje espacial.
Os relógios marcavam 14:30 UTC e eu tava assistindo Extermínio de novo, um dos melhores filmes que tinham disponibilizado pra me entreter, quando uma movimentação na janela chamou minha atenção. No começo, achei que poderiam ser alguns detritos orbitais passando, mas depois eu avistei, ainda na borda da janela arqueada.
Era uma mão. Uma mão vestindo uma luva branca e volumosa de um traje espacial. Ela começou a flutuar lentamente pela janela, seguida pelo resto do braço, depois pelo tronco, até que quase todo o traje estivesse flutuando lentamente pela janela.
No começo fiquei animado com a ideia de ver outro ser humano, mesmo que fosse rápido ou que pudesse comprometer parte do meu trabalho, mas à medida que o traje se movimentava meticulosamente pelo espaço, ele girou o suficiente para que eu pudesse ver claramente através da viseira.
Não tinha ninguém lá dentro. O traje flutuante estava completamente vazio.
E de repente eu comecei a ficar com muito medo.
Por fim, ele atravessou pela noite direto para o outro lado, e eu parei pra tentar me acalmar depois de presenciar uma cena profundamente estranha de se assistir. Consegui me acalmar, mas só até olhar de novo pela janela.
Não tinha mais nenhuma roupa vazia flutuando, mas notei algo que, por algum motivo, não me ocorreu enquanto observava o traje vazio. Resumindo, aquilo era impossível, e eu devo ter olhado de milhares de ângulos diferentes pra tentar entender.
A Terra tinha sumido.
No começo, presumi que deveria ter sido uma mudança de posicionamento, mas isso não fazia sentido. O planeta lá embaixo nunca tinha sumido da minha vista antes, e se mudassem isso tão radicalmente eu tenho certeza que teria sentido.
Mas isso não mudava o fato de que onde a Terra deveria estar havia um espaço vazio e escuro. Devo ter ficado observando por horas, esperando ver o sol. Definitivamente nós ainda estávamos nos movendo e, pelo que eu pude perceber, ainda parecíamos estar nos movendo em algum tipo de órbita, mas sem ter um planeta abaixo, eu não faço ideia de porquê mantivemos o mesmo padrão. Independentemente disso, o sol deveria ter aparecido em algum momento.
Depois de dois dias esperando, finalmente aceitei que o sol e a lua também tinham sumido.
Não tava completamente vazio lá fora. Ao longe, eu ainda conseguia ver estrelas brilhando. Provavelmente estavam mortas há muito tempo, mas eu sabia que não tinha nada que elas pudessem fazer pra me salvar.
Em algum momento do primeiro dia eu lembrei da câmera. Concentrei minha atenção nela e comecei a gritar e pedir por ajuda na vã esperança de que alguém pudesse estar assistindo à transmissão e conseguisse entrar em contato. Eu chorei e implorei para aquela câmera por quase quatro horas até ser repentinamente atingido por um pensamento aterrorizante.
Flutuei até a câmera e segurei com cuidado os cabos de alimentação que saíam da parte de trás da parede. Eu os segui, procurando onde eles a conectavam à energia ou ao aparelho de transmissão. Em vez disso, o que eu encontrei foi um par de fios cuidadosamente cortados.
Transmitindo nada. Alimentando nada. Ligados a nada.
A câmera nunca nem tinha sido ligada e com certeza não tava transmitindo nada pra Terra. Então, quais dados eles estavam coletando?
Eu ainda não faço ideia de qual é a resposta pra essa pergunta, mas senti que recuperei um pouco de sanidade depois de passar uma hora muito curta destruindo a câmera.
Depois disso, chegou a hora de quebrar o código e abrir a porta que dava para o resto do satélite. Eu tinha decidido que mesmo que isso fosse só um truque bem elaborado e convincente pra examinar as reações a certos estímulos em um ambiente de testes, ainda assim aquilo tava muito além do que eu tinha me voluntariado pra fazer. De um jeito ou de outro, eu decidi que tava fora desse experimento desgraçado.
Abri o pequeno cofre que guardava o documento com a senha e quebrei facilmente o lacre do recipiente. Eu tava desesperado pra sair por aquela porta o mais rápido possível e levei alguns minutos pra memorizá-la.
E109GHT8.
Eu ainda me lembro vividamente de quando inseri aquele código várias e várias vezes na tentativa de abrir aquela porta. Cada vez que eu o digitava meticulosamente com o máximo de precisão que ainda existia dentro de mim, cada vez que o campo de senha lia o que eu aparentemente tinha digitado, ele dizia:
"Ninguém está vindo."
E as portas continuavam fechadas.
E foi isso. Eu tava preso e sozinho em uma salinha flutuando no espaço — no espaço vazio e deserto. Eu tinha muita comida e água então a fome não era uma preocupação, mas em algum momento da primeira semana o relógio parou de funcionar.
Sem um relógio e sem nenhum sinal do sol ou da lua, ficou completamente impossível calcular qualquer tipo de tempo. Se eu tivesse que adivinhar quanto tempo passei naquele exílio esquisito, diria que foi algo entre três e seis meses. Mas isso se baseia completamente nos meus padrões de alimentação e sono que eram em grande parte movidos pelo desespero e pelo terror silencioso e doloroso de estar totalmente abandonado. Eu não conseguia nem ler meus livros ou assistir a nada já que os personagens pareciam mortos e sem vida, o vazio de suas existências artificiais ficava muito nítido pra mim.
As alucinações pararam. Eu não tinha nem o conforto de uma companhia nos meus delírios, embora em algum momento a linha entre sonhos e realidade tenha ficado muito tênue. Eu estava dormindo, amarrado à minha cama no meio do vazio, e ao mesmo tempo flutuando por cemitérios antigos ou pelo mar aberto e vazio. Não eram alucinações, embora fossem sonhos, mesmo que o frio parecesse escoar por eles e penetrar em meus ossos.
Passei tanto tempo tentando abrir aquela porta, mas nada funcionava. Os mecanismos e a parte elétrica não eram acessíveis pelo meu lado. Finalmente desisti de tentar quando abandonei o que restava da minha esperança. Foi aí que eu notei outra coisa que me alarmou de uma forma muito diferente.
Fiz alguns cálculos e percebi que meus estoques de comida e água não pareciam estar acabando. Durante todo o tempo que estive lá, no que agora eu só conseguia considerar como minha prisão, não parecia ter havido nenhuma mudança significativa nos meus suprimentos. Ninguém poderia estar me reabastecendo porque não tinha ninguém além de mim lá. A comida era inacabável, então isso significava que eu poderia ficar preso naquele lugar pelo resto da minha vida — se é que eu ainda poderia envelhecer?
Comecei a considerar muito seriamente a ideia de que eu tinha morrido e estava no Inferno. Falando dessa preocupação, o jeito como eu finalmente consegui escapar pode até ser considerado irônico. Eu morri de fome. Bom, não morri, eu acho, já que tô vivo o suficiente pra falar com você, mas cheguei bem perto.
Não sei quanto tempo fiquei flutuando ali, amarrado naquele casulo solitário que eu chamava de cama, me recusando a comer ou beber, esperando pelo fim. Depois de tudo aquilo, eu não tinha nenhuma garantia de que era possível morrer, mas eu tinha que tentar. Quando finalmente perdi a consciência pelo que eu esperava ser a última vez, foi o maior alívio que já senti.
Não sei exatamente quando percebi que não tava morto. Em vários momentos eu voltei à consciência e sei que senti a reentrada na atmosfera com bastante intensidade, mas é difícil distinguir pensamentos claros de antes do hospital.
Ninguém nunca me contou realmente o que aconteceu além do fato de que descobriram que eu estava em sério perigo de morte e meus colegas do Dédalo me socorreram e conseguiram me manter vivo até terem uma oportunidade de me mandar de volta.
Não fui atrás de saber mais detalhes; não mesmo. Eu sei o que aconteceu. E nenhuma versão lógica da história que eles possam me contar vai mudar isso.
Não entrei mais em contato com o Conrad e, até onde eu sei, ele não fez nenhuma tentativa de entrar em contato comigo. Mas me pagaram tudo, o que foi uma surpresa.
Eu fiquei querendo contar pra alguém o que realmente aconteceu por quase um ano antes de encontrar o seu Instituto. Não tem nada que vocês possam fazer sobre isso, mas eu queria tirar esse peso do meu peito.
Então, obrigado por me deixarem colocar no papel.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento.
Embora exista muita cobertura da mídia sobre o lançamento do satélite Dédalo no início de 2007 pelo Grupo Estratosfera, que é um consórcio de várias empresas científicas e aeroespaciais, parece que a operação verdadeira da instalação é protegida com muito mais sigilo pelas várias organizações envolvidas.
Martin conseguiu confirmar que, durante os dois anos de operação, ele tinha mesmo um total de três funcionários a bordo: Yan Kilbride, Manuela Dominguez e o Sr. Chilcott.
Porém, tirando isso, não conseguimos encontrar muita coisa além dos muros da burocracia corporativa. Mas o Tim conseguiu obter uma lista das empresas envolvidas no consórcio.
Três nomes se destacam: Pinnacle Aerospace, que pertecence majoritariamente à família Fairchild, um grande investimento privado de Nathaniel Lukas e a Optic Solutions Limited, que é uma empresa aparentemente inofensiva que fabrica câmeras especializadas para pesquisas e aplicação industrial, que é, no entanto, notável por ter seu endereço comercial em Ny Alesund, na Noruega.
Receio que isso seja o máximo que eu possa fazer neste momento sem chamar atenção, por isso talvez seja sensato deixar o assunto de lado.
Fim da gravação.
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SASHA
John?
Arquivista: Hum...
Sasha: O que você tá fazendo?
Arquivista: Sash... hum, eu não consigo encontrar a pasta do caso da Hill Top Road. Pensei que tivesse te entregado pra investigar sobre as crianças?
Sasha: Você entregou e eu devolvi.
Arquivista: Ah, certo.
Sasha: Mesmo que eu não tivesse devolvido, eu preferiria que você ficasse longe da minha mesa.
Arquivista: Ah, é claro, desculpa. Eu não sabia que você ainda tava aqui, se não teria te perguntado.
Sasha: Claro.
Arquivista: Vou ver se está com o Tim então.
Sasha: Aliás, John. Eu já te pedi antes.
Arquivista: O quê?
Sasha: Por favor, não grave as nossas conversas.
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ARQUIVISTA
Idiota. Achei que a Sasha já tinha ido embora. Eu queria dar uma olhada na mesa dela pra ver se encontrava qualquer coisa que pudesse explicar seu comportamento estranho nos últimos tempos. Não consegui olhar muito, mas tudo parecia normal, tirando alguns pedaços de papel rasgado. Eles poderiam ser de arquivos ou só papel de rascunho rasgado, é difícil dizer.
Eu tô perdido. Mas por que ela iria querer destruir arquivos? Ainda assim, acho que é melhor eu me afastar da Sasha por um tempo depois disso. Só vou ficar de olho à distância por enquanto.
Mas eu encontrei várias fotos dela com o namorado novo, o que me deixou um pouco mais tranquilo.
Bem, mais ou menos. Tem alguma coisa nele que não parece muito certa. Alguma coisa no sorriso, talvez?
Quer dizer, todas as fotos são da Sasha e do Tom — que foi como me disseram que ele se chama — se divertindo juntos, mas... é difícil explicar exatamente, mas cada uma delas parecia de algum jeito ser uma foto tirada de um banco de imagens.
Fim do complemento.
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MAG056 — Filhos da Noite
Caso #0160311: Continuação do depoimento de Trevor Hebert, a respeito dos últimos anos de sua carreira como caçador de vampiros.
Ouvir em: Spotify | Youtube
Aviso de conteúdo: entomofobia, insetos, horror corporal, menções a câncer
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Continuação do depoimento de Trevor Hebert, a respeito dos últimos anos de sua carreira como caçador de vampiros. Depoimento original prestado em 10 de julho de 2010.
Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres. Nota: estão faltando várias páginas no arquivo da época em que ele aparentemente não morreu de câncer de pulmão no instituto.
Continuação do depoimento.
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Ela morreu no final.
Ela era velha e triste, mas não merecia aquilo. Sempre me perguntei o que teria acontecido se eu tivesse chegado lá um pouco mais cedo. O problema é que, uma vez que eles enfiam os dentes em você, você já estará praticamente morto, mesmo que eles não te drenem. Jorrar no chão ou encher a barriga de um vampiro não faz muita diferença pro pobre coitado que estiver sangrando.
Já me perguntei várias vezes se tava ficando louco, sabia? Quer dizer, ninguém mais parece ter visto aquelas coisas, e eu já encontrei várias em toda a minha vida. Talvez eu tenha sentido o cheiro deles. Tipo, ninguém nunca conseguiu escapar, e eu ter fugido de Sylvia MacDonald me deu uma intuição para identificá-los. Tem alguma coisa neles. Eles são caçadores. Mas com o passar dos anos eu também me tornei um caçador e talvez os predadores se reconheçam. Tudo que eu sei é que hoje em dia eu quase consigo sentir o cheiro do sangue vindo deles. Mas isso não quer dizer que eu não cometa erros — eu posso errar muito feio, na verdade.
Encontrei Alard Dupont no verão de 1982 e o assassinei pouco depois. Eu usei a palavra assassinato aqui, que eu não tinha usado antes, porque ele foi o único que eu matei que eu sei que era humano. Na maioria das vezes eu lamento a morte dele, mas há um certo conforto nela. Se eu fosse só um serial killer tendo alucinações, não vejo por que minha mente não teria transformado Dupont em um vampiro também. O fato de ter conseguido matar pessoas normais me dá a certeza de que as criaturas que caço são reais, entende?
Isso não quer dizer que a morte de Alard Dupont não tenha sido o resultado de várias decisões extremamente ruins da minha parte. No início dos anos 80, eu estava completamente dominado pelos meus dois vícios. Como mencionei, depois de um tempo, a caça se tornou um vício por si só. Dos dois, sempre achei a heroína o mais fácil de largar. A heroína é calma. É um pedacinho de paz em um mundo cheio de nada além de desgraça. É difícil largar isso pra sempre... mas a caça? A caça é um propósito. Não é só um jeito de passar o dia, é um motivo pra que de fato haja um dia. Tentei desistir dela por um tempo depois do Dupont, mas aquilo queimava em mim muito mais do que qualquer problema que eu tivesse enquanto estava sóbrio.
Mas em 1982 esses vícios estavam praticamente descontrolados. Fazia vários anos desde a última vez que eu tinha encontrado um vampiro e cada momento em que eu não estava chapado era gasto na busca por qualquer coisa suspeita. Eu estava fora de forma. Peguei uma infecção por injetar entre os dedos dos pés, o que acabou me levando pro hospital e me fez perder dois dedos, embora eu felizmente tenha mantido o pé. Mas naquela época, isso só me deixava mancando e me causava uma quantidade razoável de dor. Talvez se eu tivesse sido mais rápido, se eu tivesse conseguido acompanhar o Dupont com mais facilidade... Eu teria percebido meu erro. Talvez se minha mente não estivesse tão embaçada pela heroína eu poderia ter percebido, ou talvez se eu não estivesse morrendo de ansiedade pra matar outro vampiro. Qualquer uma dessas coisas poderia ter salvado ele. Talvez até se ele tivesse um nome que não me fizesse pensar no Drácula. Mas nenhuma dessas coisas era o caso, então insistir nelas é inútil.
Eu não sei se o Dupont era tecnicamente mudo ou não. Eu não tive nenhuma experiência real com essa condição e ele não parecia ter nenhum problema de audição. De qualquer forma, eu nunca vi ele falar, o que agora eu acho que você já sabe que é algo que eu consideraria um sinal de alerta considerável pro vampirismo. Um amigo meu com quem compartilhei um abrigo algumas semanas antes e que compartilhava uma fraqueza semelhante por narcóticos mencionou o quão incrível era que seu traficante sempre fosse capaz de saber exatamente o que ele queria sem que nenhum deles dissesse uma palavra. Pensando agora, eu deveria ter percebido que isso não combinava muito com os vampiros que eu já tinha encontrado antes, que nunca mostraram nenhum sinal de lerem mentes, mas eu tava louco pra matar.
O garoto que me disse isso era estranho. Devia ter uns dezenove anos, dizia pra todo mundo que seu nome era Stanley Kubrick. Estava sempre fazendo referências à sua carreira no cinema e eu nunca consegui descobrir se aquele era realmente seu nome verdadeiro que ele por acaso compartilhava com o diretor ou se era só uma piada estranha que ele insistia em fazer. Mas o que mais me impressionava nele eram as cicatrizes em seu pescoço. Depois eu descobri que ele as ganhou quando foi atacado por um cachorro quando era mais novo, mas na época eu estava convencido de que elas estavam ligadas ao Dupont. Então eu descobri onde Alard Dupont fazia suas entregas em Piccadilly Gardens e comecei a observá-lo.
Ele era surpreendentemente descarado — ficava sentado em um banco do parque por horas fumando ou lendo uma revista ou outra. Eu nunca tinha visto um vampiro ler uma revista antes, mas eu já tinha os visto fingindo assistir televisão ou ler um livro pra se misturarem melhor, então isso não levantou nenhuma suspeita pra mim. Então chegou o momento que me convenceu completamente que eu tinha que matar o Dupont. Enquanto ele estava sentado no banco, dois policiais passaram por mim e foram em sua direção. Eles nem me notaram — ninguém repara num mendigo. Mas, enquanto caminhavam em direção à figura no banco, um dos policiais cutucou o parceiro e gesticulou em direção a ele. Eles claramente o consideraram suspeito e começaram a se aproximar. Mas quando eles se aproximaram, Dupont olhou pra cima e fez contato visual com eles. Eles pararam — só por um momento — e ele acenou com a cabeça gentilmente. Os policiais se entreolharam, se viraram e foram embora. Isso era tudo que eu precisava pra ter certeza do que ele era. A conclusão a qual cheguei depois é de que os dois policiais estavam simplesmente envolvidos e não o reconheceram imediatamente, mas só pensei nisso muito tarde.
Era um dia nublado e, pra mim, parecia que o Dupont estava se mantendo nas sombras, exatamente como eu pensei que ele faria. Continuei observando enquanto ele fazia mais algumas vendas, e eu também já estava querendo injetar a essa altura. Mas tinha uma adrenalina muito mais intensa que eu estava perseguindo naquele momento e ela empurrava todos os pensamentos sobre a droga pro fundo da minha mente. Por fim, a noite caiu e observei Dupont se levantar do banco e seguir para o centro da cidade, caminhando na direção do vento e sob as sombras. Obviamente a escuridão não o impediria de me ver, mas aprendi que, por mais discreto que um sem-teto possa ser, ainda é sempre melhor ser visto pelo menor número de testemunhas possível. Imaginei que ele estivesse indo em direção a uma boate ou clube, que é um dos locais favoritos dos vampiros, já que a música alta torna a ausência da fala muito mais fácil de esconder. Até ali eu estava certo enquanto ele se dirigia para o Hacienda, um dos clubes mais barulhentos de Manchester. Ele ainda não era tão famoso naquela época, na verdade acho que tinha aberto há pouco tempo quando tudo isso aconteceu, mas mesmo assim provavelmente teriam me barrado na entrada, dado o estado em que eu estava.
Então observei Dupont entrar e me camuflei, pedindo esmola de quem passava por ali enquanto esperava. Ele apareceu mais ou menos duas horas depois com outro homem o seguindo de perto. Eu não reconheci eles. Quer dizer, não tinha porquê eu reconhecer, mas o novo amigo de Dupont era quase tão grande quanto ele. Os vampiros tendem a atacar vítimas menores, aquelas menos capazes de se defenderem caso a surpresa do ataque não as paralizem. Aquele cara parecia bem capaz de cuidar de si mesmo. Ainda assim, até onde eu sabia ele não fazia ideia do que estava prestes a acontecer com ele e, enquanto o Sr. Dupont o conduzia por um beco próximo, eu corri atrás deles.
Fiquei quieto enquanto mancava pelo lixo que cobria o beco e silenciosamente puxei meu fiel martelo. Depois de um minuto, eles se viraram pra uma porta e pegaram uma chave. A porta se abriu e os dois entraram. Fiquei alarmado com a ideia de ficar trancado do lado de fora e não conseguir alcançá-lo. Esquecendo a discrição, agarrei a porta e a abri. Eles se viraram pra mim. Eu o ataquei com um grito, batendo o martelo no ombro de Dupont e o derrubando no chão com um estalo agonizante. Eu nunca vou esquecer o momento em que ouvi Alard Dupont gritar. Foi um som tão penetrante e algo que eu nunca esperaria. Em um momento, tudo o que eu tinha construído na minha cabeça nos últimos dois dias se despedaçou e eu senti um pânico repentino com o que tinha feito. Com o que eu tava fazendo. O amigo dele também gritou e começou a correr de volta pra fora da porta. Não sei se ele conseguiu me ver direito. Levando em conta que a polícia nunca veio me interrogar, acho que não.
O Dupont ainda tava gritando, aquele som horrível abafando todos os meus outros pensamentos. O sangue escorria de seu rosto onde havia batido no chão e eu não sabia o que fazer. Eu tinha que sair de lá, mas aquele barulho era demais. Eu não conseguia me concentrar, não conseguia fazer nada, então eu bati nele de novo. Com força. Na cabeça. E aí ele ficou quieto. E tudo ficou terrivelmente silencioso. Ele só ficou deitado lá. Nunca senti nada parecido com a vergonha e o nojo que senti naquele momento. Tentei queimar o corpo, mais por hábito do que por qualquer outra coisa, mas não deu certo e eu fugi pra rua antes que a polícia chegasse.
Depois disso, passei mais de uma década andando em círculos. Não me lembro muito dessa época, só lembro que passei a maior parte do tempo tão drogado que, olhando agora, fico genuinamente chocado por nunca ter tido uma overdose. Só saí dessa em 1996, quando um encontro casual com uma criatura que se chamava de Hannah Edwards me levou a salvar uma jovem de virar a janta. Não vou entrar em detalhes, foi muito parecido com a minha caçada à June Lewis, exceto que a vítima saiu viva dessa vez.
Eu me pergunto por que parece que eu sempre os encontro pouco antes de eles atacarem. Não pode ser porque eles passam todas as noites se alimentando, aí o mundo seria um banho de sangue. Talvez eles se misturem melhor quando não estão caçando e eu não os reconheço. Ou talvez eles hibernem. Não é uma pergunta que acho que algum dia eu vou saber a resposta, mas significa que sempre há uma urgência nas caçadas que na maioria das vezes me impede de fazer muitas investigações sobre eles. A Hannah foi minha quinta vampira confirmada e a última, supondo que eu não encontre outro antes que o câncer me leve. Eu realmente me considerava aposentado, descansando depois de passar uma vida defendendo o mundo da escuridão. Porque era isso que eu achava que era, sabe? Vampiros eram as coisas que espreitavam no escuro. As únicas coisas que espreitavam no escuro.
Mas no ano passado, pouco antes do meu diagnóstico, encontrei uma coisa que me fez repensar isso. Eu sei que eu não preciso nem dizer que o inverno é um momento difícil pra um sem-teto. Não importa quantas vezes você já tenha passado por isso, quando aquele primeiro vento frio sopra por você, é como se uma morte terrível estivesse vindo te buscar. Aquele último foi muito ruim, vários dos abrigos que normalmente me acolhiam fecharam e aqueles que sobraram acabaram enchendo rápido. Eu me viro bem já que sou um rosto bem conhecido e tudo mais, mas ainda senti a pressão de juntar dinheiro suficiente pra garantir meu lugar mais cedo. Mesmo assim, tinha alguns dias da semana em que eu ainda acabava no frio. Meus ossos de velho não andam tão bem hoje em dia, então eu ficava de olho nas idas e vindas dos abrigos noturnos de Manchester e, depois de algumas semanas, comecei a notar algo estranho.
Várias vezes, em alguns abrigos diferentes, eu via um dos abrigados se levantar no meio da noite, reunir seus pertences e sair para as ruas geladas da cidade. Ver isso acontecer uma vez foi estranho, mas ver isso acontecer várias vezes era surreal. Eu tava sóbrio na época, então não conseguia nem fingir que tava delirando. Ainda mais estranho — toda vez que isso acontecia, 10 minutos depois uma mulher entrava e tomava seu lugar. Era a mesma mulher todas as vezes. Ela devia ter cerca de 40 anos e era esbelta embora suas roupas fossem um pouco protuberantes em uns lugares estranhos. Seu rosto era enrugado pelo que eu conseguia reconhecer como uma vida difícil e uma fina camada de sujeira embaraçava seu cabelo. Ela parecia ser bem normal para aquele lugar, e eu poderia até descartar a expressão distante e neutra como o tipo de trauma muito comum entre o meu povo. É por isso que não prestei muita atenção nela na primeira vez que aconteceu; ou na segunda.
Quando percebi que isso tava acontecendo pela terceira vez, eu finalmente comecei a prestar atenção, mas não me aproximei dela imediatamente. Perguntei sobre ela na manhã seguinte, mas nem mesmo os funcionários pareciam saber de nada. Decidi ficar de olho e, se ela aparecesse de novo, eu a confrontaria. Bom, ela apareceu. Era final de janeiro quando aconteceu, por volta das 2:00 da manhã. Justamente no ponto mais frio da noite. Vi um dos meus companheiros do abrigo sair lentamente da cama. O nome dele era Craig, eu acho. Eu não o conhecia muito bem, ele era um andarilho sazonal e só nos cruzávamos ocasionalmente. Bom, ele saiu sem fazer barulho, juntando seus pertences em silêncio e deixando uma cama vazia. Eu esperei. Bem acordado, com a mão na faca, respirando firme. Como esperado, alguns minutos depois ela entra, sem mochila ou equipamento de qualquer tipo, e se senta na cama do Craig.
Eu me levantei e caminhei em direção a ela. Assim que ela me viu, sua postura mudou e ela ficou na defensiva, embora a expressão vazia em seu rosto nunca mudasse. Comecei a me apresentar e perguntar por que ela estava pegando a cama do Craig, e aí ela me encarou. Comecei a sentir uma sensação muito estranha — eu queria ir embora. Não foi como com um vampiro, onde eu teria a sensação de que ela tinha falado comigo — aquilo foi só uma consciência repentina do meu próprio desejo. Eu já estava sóbrio há três anos naquela época, mas senti que queria desesperadamente ficar chapado, e eu sabia que o melhor lugar pra conseguir isso era lá fora, na noite. Pensando agora, acho que pode ter sido minha própria mente racionalizando a maneira como senti minhas vontades me puxando pra fora do lugar, mas ainda era muito poderoso. Se eu não tivesse uma vida inteira de experiência identificando e lutando contra o efeito do olhar de um vampiro, provavelmente também teria feito isso. Mas eu tinha, então me mantive firme.
Houve uma longa pausa enquanto aquela mulher olhava fixamente para mim. Então ela começou a correr, passou pela porta e saiu. Eu a segui. Não importava pra mim se ela era uma vampira ou não, tinha alguma coisa errada e eu queria descobrir o que estava acontecendo. Eu a persegui até a estrada, estava fria e silenciosa e, se tinha alguém ali, não fez nenhum barulho. Ela corria de um jeito estranho, mais como se estivesse tendo espasmos, com passos suaves, e seus braços se deslocavam de maneiras estranhas enquanto ela se movia. Não sou tão ágil quanto antes e meus pulmões obviamente estavam em frangalhos, mas consegui acompanhar o ritmo dela. Eu conseguia sentir no meu sangue — aquilo era uma caçada, e eu sempre me sentia mais forte em uma caçada.
Finalmente, cheguei perto o suficiente pra agarrá-la pelo braço. Meus dedos se fecharam em volta do cotovelo dela, e então eles meio que... afundaram pra dentro. Eles não atravessaram a pele nem nada disso, mas... ela meio que amassou sob os meus dedos, tipo quando você esmaga uma salsicha crua.
E eu conseguia sentir um movimento de dentro do próprio braço. Não era um vampiro, mas definitivamente não era humano. Com o outro braço, ela desferiu um amplo golpe em mim, mas eu tava preparado e me esquivei do soco. Peguei minha faca pra tentar ameaçar aquela coisa, talvez fazer ela responder a algumas perguntas, mas calculei mal o saque e acabei a cortando levemente no estômago. Não foi um corte profundo ou longo, mas aparentemente foi o suficiente. Todo seu corpo começou a estremecer quando pequenas figuras começaram a sair da ferida.
Aranhas.
Milhares e milhares de aranhas.
Ela finalmente abriu a boca como se fosse gritar e mais sairam de lá — dezenas de milhares de pernas esvoaçantes e olhinhos malignos. Eu gritei e comecei a recuar quando as formas escuras se agruparam em torno de seus pés e se espalharam em um círculo trêmulo. Por um segundo, fiquei com medo de elas virem atrás de mim, mas então elas simplesmente correram para as sombras e fendas dos prédios próximos até que a rua estivesse vazia de tudo, a não ser por aquela mulher.
Ela ainda estava de pé, mas através da boca aberta... Eu podia ver que seu corpo era completamente oco, exceto por algumas teias de aranha que eu conseguia ver sob as luzes da rua. Eu fugi dali e essa foi a última criatura que eu encontrei.
Essa é minha história. De nada.
Quando eu pensava que eram só vampiros, eu poderia ter achado que vocês são só um bando de malucos. Mas se existem outras coisas por aí... talvez vocês saibam mais sobre isso do que eu. E talvez vocês possam precisar de um pouco mais de informações sobre os vampiros. É uma pena que eu tô de saída.
Vou sentir falta da caçada.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento.
Bom, isso com certeza é uma surpresa. O Martin me informou que o Sr. Herbert faleceu depois de prestar seu depoimento inicial, por isso é um choque encontrar essa adição mal arquivada ao seu original, mesmo que esteja parcialmente incompleta.
Além disso, na verdade, verificando os registros hospitalares e de óbitos de Londres e Manchester, não consigo encontrar nenhum registro da morte do Sr. Herbert. Por outro lado, também não consegui encontrar nenhum registro dele vivo após a data do depoimento. A ideia de que ele poderia sobreviver seis anos com câncer de pulmão em estágio avançado não tratado é implausível, pra dizer o mínimo, e ainda assim... A morte de Alard Dupont parece coincidir com o depoimento na maioria dos detalhes. Ele tinha meia dúzia de condenações por várias acusações de porte de drogas ou comportamentos violentos, mas nada fora do normal. Não consigo encontrar nenhum indício de que ele era mudo, mas fora isso, tudo confere. Quanto à pessoa feita de aranhas, a única prova de sua existência parece ser a de que eu sou muito azarado pra que isso seja só uma alucinação de um velho vagabundo.
Preciso conversar com o Martin.
Fim da gravação.
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Arquivista: Senta.
Martin: O que tá...
Arquivista: Senta. Por que você mentiu pra mim sobre o Trevor?
Martin: O quê?
Arquivista: Por que você me disse que ele tava morto?
Martin: Desculpa, quem... quem é Trevor?
Arquivista: Trevor Herbert. O vagabundo. O caçador de vampiros. Você me disse que ele morreu.
Martin: Mas, tipo, ele... morreu. Não morreu?
Arquivista: Aparentemente não.
Martin: Ah. Desculpa.
Arquivista: Desculpa?
Martin: Quer dizer, eu... eu nunca o conheci pessoalmente. Eu só ouvi alguns dos outros pesquisadores mencionando isso.
Arquivista: O quê?
Martin: Sim, bem, eu poderia jurar que eles disseram que ele morreu. Quer dizer... talvez eles tenham dito que ele parece com a morte ou algo assim. Mas eu realmente pensei que eles tinham dito que ele tava morto.
Arquivista: Então é isso? Só um mal entendido?
Martin: Sim. Você parece estar levando isso pro lado pessoal...
Arquivista: Porque você continua mentindo pra mim, Martin!
Martin: Sobre o quê?
Arquivista: Eu não sei. Mas você tá.
Martin: Onde você conseguiu isso? Você andou mexendo na lixeira?
Arquivista: Estava na antiga sala de documentos, do ladinho de onde você costumava dormir. É sua caligrafia. "Se os outros descobrirem que eu estou mentindo", mentindo sobre o quê, Martin?
Martin: Olha, só esquece isso, ok? Por favor.
Arquivista: Eu não posso esquecer. Todo mundo nesse lugar têm um monte de segredos e eu não posso confiar em uma palavra do que você diz. Nem sobre isso, nem sobre o Trevor.
Martin: John, só...
Arquivista: Martin!
Martin: Okay! Okay! Okay. Só... só... promete que não vai... me demitir?
Arquivista: Te demitir? Tá.
Martin: Eu... Eu menti no meu currículo.
Arquivista: Quê.
Martin: Eu não tenho mestrado em parapsicologia. Eu nem tenho um diploma.
Quando eu tinha 17 anos, minha mãe, ela teve... ela teve alguns problemas, e eu acabei abandonando a escola pra ajudar em casa. Eu tentei de tudo, mas nenhum lugar me contratava, então eu meio que comecei a mentir no meu currículo e o mandar pra praticamente qualquer lugar. Por algum motivo minha mentira sobre a parapsicologia me rendeu uma entrevista com o Elias e... e depois um emprego aqui. A maioria dos detalhes do meu currículo são inventados. Eu só tenho 29 anos.
Arquivista: Certo, eu... uh... Eu acredito em você.
Martin: Por que você tá sorrindo?
Arquivista: É, eu só... Hum... Eu não vou mencionar isso pro Elias. Fica só entre a gente.
Martin: Então você não se importa?
Arquivista: Pra ser sincero, Martin, eu... Na verdade, eu tô bem aliviado.
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Text
MAG055 — Controle de Pragas
Caso #0160311: Depoimento de Jordan Kennedy a respeito de vários encontros que ocorreram enquanto trabalhava com controle de pragas.
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Aviso de conteúdo: entomofobia, insetos
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Fala de novo, por favor.
JORDAN
Como é?
Arquivista: O que você acabou de dizer, pode dizer de novo pra eu gravar?
Jordan: Ah, ok. A Jane Prentiss está morta.
Arquivista: Você tem certeza? Completamente.
Jordan: Sim. Eu assisti à incineração.
Arquivista: E não teve nenhuma... complicação?
Jordan: Tipo... o quê?
Arquivista: Vermes que sobreviveram e escaparam? Uh, o corpo se movimentando durante a incineração, ou fazendo ruídos, como gritos ou cantorias? Sentiu algo estranho, tipo mil coisinhas rastejantes se movendo na sua pele?
Jordan: Uau. Não, nada do gênero. Só o cheiro, mas, quer dizer, eu vou chegar lá. Correu tudo bem. Não sobrou nada além das cinzas que eu entreguei ao seu amigo. Uma coisa que eu não deveria ter feito, a propósito, então não fale pra ninguém.
Arquivista: Claro. E obrigado.
Jordan: Claro.
Arquivista: Mas já se passaram meses. Por que você decidiu prestar um depoimento só agora?
Jordan: Não foi só... não foi só queimar o corpo dela. Eu também fui o primeiro a ser chamado pra lidar com o ninho no antigo apartamento dela.
Arquivista: Ah...
Jordan: É. Mas eu estive pensando em algumas coisas, juntando algumas peças, e eu pensei que, bom, vocês provavelmente deveriam saber.
Arquivista: Certo. Bom, começa do começo, de onde quer que você se sinta confortável. Depoimento de Jordan Kennedy a respeito de...?
Jordan: Várias coisas estranhas que eu encontrei enquanto trabalhava com controle de pragas.
Arquivista: Depoimento gravado diretamente do indivíduo em 3 de novembro de 2016.
Início do depoimento.
JORDAN (DEPOIMENTO)
Trabalho como exterminador há mais de 10 anos. Eu deveria dizer controlador de pragas, na verdade — o BPCA geralmente desaconselha o uso da palavra com "e". Eles acham que soa um pouco desagradável demais; prejudica nossa imagem pública. Eu nunca me importei. Quer dizer, eu acho que dá pra dizer que matar coisas é meio que exercer um controle sobre elas, mas eu sempre senti que tentar higienizar meu trabalho é um pouco desonesto. Tipo tentar ajudar as pessoas a esquecerem que o que elas estão realmente fazendo é encomendar a morte de criaturas que consideramos muito nojentas ou insalubres pra viverem. Isso precisa ser feito, não me entenda mal, e fico feliz em fazer, mas não é meu trabalho segurar as mãos das pessoas e fazê-las se sentirem melhor com isso.
Já trabalhei em lugares por Londres inteira — principalmente grandes prédios comerciais onde tenho que trabalhar à noite enquanto todos os banqueiros e afins já foram pra casa. Armar armadilhas, colocar caixas de veneno; o de sempre. Casas residenciais não me chamam tanto pra cuidar de ratos e camundongos, principalmente se for um lugar alugado. A maioria dos proprietários não se dão o trabalho de pagar por esse tipo de serviço ou tentam lidar com a situação por conta própria.
Mas recebo um monte de chamadas sobre percevejos. Esses desgraçados são um inferno de eliminar, e é claro que no verão temos que lidar com vários ninhos de vespas. Adicione uma porção generosa de baratas, formigas e às vezes até pássaros ou raposas e você vai ter uma boa ideia do que consiste a minha vida profissional. Bem normal.
Recebi meu primeiro chamado estranho cinco anos atrás. Eram formigas — ou, pelo menos, foi o que me disseram. Lá em Bromley. A casa em si parecia uma casa suburbana bem normal. Talvez um pouco mais degradada do que a de seus vizinhos, mas nada particularmente incomum nisso, principalmente já que eles estavam me chamando. Não tinha carro na garagem e as persianas estavam todas fechadas apesar do sol de verão. Parecia que não havia ninguém em casa.
Descobri mais tarde que na verdade foi uma das vizinhas que me ligou, uma mulher chamada Laura Star, mas naquele momento eu ainda esperava ser recebido por alguém na casa. Eu bati na porta, mas obviamente não obtive resposta.
Eu sempre uso luvas quando estou trabalhando e quando olhei pra minha mão notei um brilho muito fraco onde o couro fino tocou a madeira. Parecia ser algum tipo de resíduo oleoso. Eu estava me sentindo menos confortável com o trabalho a cada segundo. Eu não conseguia ouvir nada lá dentro, então eu bati de novo. A mulher que me contratou tinha dito que eu podia só entrar, mas eu não queria simplesmente entrar sem avisar.
Depois de alguns segundos de silêncio, tentei a maçaneta e, claro, a porta se abriu. Não havia luzes acesas lá dentro e o lugar parecia quase completamente vazio de móveis. Eu conseguia ver um leve movimento no chão de madeira enquanto procurava o interruptor de luz. Logo o encontrei e acendi pra revelar exatamente o que eu esperava. Formigas. Eu só não esperava tantas. E havia muitas delas. Até hoje eu nunca vi tantas formigas dentro de um prédio ao mesmo tempo. Devia haver milhares cobrindo o chão e correndo pelas paredes.
Eu puxei minha mão pra longe do interruptor de luz quando notei dezenas delas rastejando ao redor dele. Até mesmo a lâmpada parecia estar envolta por elas fazendo com que a luz na sala fosse coberta com uma sombra trêmula. A casa em si não parecia estar muito melhor. Onde quer que houvesse um espaço entre as formigas eu podia ver aquela mesma podridão oleosa e não conseguia deixar de pensar que o prédio estava doente de alguma forma.
Bem, eu já vi muita coisa nojenta nesse trabalho, mas acho que aquele momento foi um dos mais intensos. Eu fugi por um momento de volta pra minha van pra decidir qual seria o meu próximo passo. Normalmente, eu deixaria alguma isca venenosa pra elas levarem até a colônia e eliminaria o problema pela raiz, mas uma infestação tão ruim como aquela, bem, aquilo não aparece do nada.
Eu precisava ter uma noção de com o que exatamente eu estava lidando. Mesmo da rua eu conseguia ver um fluxo constante correndo pra fora da porta aberta e ao longo do degrau. Eu me preparei com spray de pesticida e fui dar uma olhada mais de perto. Eu normalmente não usaria spray em formigas, mas aquilo não era normal, e a fórmula que eu estava usando funcionava muito bem em formigas. Dito isto, eu realmente não vi nenhuma delas morrer. Eu não esperava que isso acontecesse imediatamente, de qualquer maneira, e o importante é que onde quer que eu borrifasse elas fugiam, abrindo um caminho no chão desbotado pra eu andar.
Foi demorado, mas passei a maior parte do andar térreo assim e não vi nada além de mais formigas. Sem pessoas, sem móveis — nada. Pelo menos até eu chegar na cozinha e ver a geladeira.
Não tinha mais nada naquela cozinha. Até mesmo a pia tinha sido removida deixando só os canos de água saindo da parede como ossos enferrujados e doentes. Mas encostada na parede oposta havia uma geladeira velha. Sua carcaça que já havia sido branca agora era de um amarelo ictérico e eu não conseguia me livrar da sensação de que estava pulsando suavemente. Formigas gordas, pretas e enormes enxameavam pela fresta da porta e eu não tinha dúvidas de que o que quer que estivesse no centro daquela situação incrivelmente desagradável, estaria naquela geladeira.
Então eu decidi que provavelmente era uma boa ideia sair pra fumar um cigarro antes de abri-la. O ar lá fora parecia muito mais fresco quando saí da casa. Me afastei alguns metros da porta pra não ficar muito perto e acendi o cigarro. Foi quando dei a primeira tragada que vi um carro parar na entrada da garagem. Era um carro pequeno, compacto e vermelho, e a placa parecia indicar que tinha sido comprado no ano anterior. Mas, mesmo assim, pude ver a ferrugem começando a aparecer na tinta perto das bordas do painel.
Observei quando a porta se abriu e um homem saiu de dentro. Ele era alto, talvez um metro e oitenta e cinco, mas era difícil ter certeza de sua estrutura dentro do enorme terno marrom que ele usava. Ele olhou pra mim, depois pra placa no lado da minha van que dizia “Controle de Pragas do Kennedy”, e seu rosto começou a enrugar de raiva.
Dei outra tragada no meu cigarro. Eu estava inquieto com toda a situação e esperando pra ver o que aquele homem esquisito faria. Ele caminhou até mim com passos largos que o aproximaram o suficiente para que eu pudesse ver o brilho insalubre de suor em sua pele. Será que tudo aqui estava doente?
Ele se inclinou muito mais perto do que eu gostaria e exigiu saber o que eu estava fazendo. Eu disse que o proprietário tinha me contratado pra cuidar de uma infestação de formigas e eu estava fazendo uma varredura preliminar. Ele começou a balançar a cabeça violentamente dizendo que ele era o dono da casa, que aquela era a casa dele e que eu não tinha nada que estar ali. Bom, essas não foram as palavras exatas dele. O que ele realmente disse foi que eu não tinha nada que "aplicar meu ofício vil em sua propriedade".
Eu estava prestes a pegar meu telefone e ligar pra mulher que me contratou quando sua mão disparou do nada e me agarrou pela garganta. Ele me levantou do chão com uma força aterrorizante e eu fiquei muito feliz que, mesmo com o capuz abaixado, meu traje de proteção mantinha meu pescoço coberto. Eu conseguia sentir a mão dele através do plástico grosso. Estava quente, como se ele estivesse com uma febre incrivelmente alta, e eu comecei a entrar em pânico.
Ele me segurou lá, a quase trinta centímetros do chão, e minha visão começou a ficar turva quando ele apertou minha garganta. Enquanto lutava pra respirar, me debati procurando por algo pra lutar contra ele e percebi que ainda estava segurando meu isqueiro. Com um nível de compostura que, pensando nisso agora, ainda me surpreende, acendi o isqueiro e o levantei logo abaixo do braço dele.
O resultado foi muito mais dramático do que eu esperava. A manga larga de seu terno marrom acendeu quase imediatamente e, em poucos momentos, todo o braço dele estava em chamas. Ele gritou e me jogou no chão, e quando ele começou a se agitar tentando impedir que o fogo se espalhasse ainda mais por seu corpo, cambaleei até minha van. A essa altura, não importava quem era o verdadeiro dono daquela casa, eu já tava cheio daquele trabalho.
Quando estava entrando na van, eu senti o cheiro. Foi a coisa mais nojenta que eu já encontrei — um cheiro de alguma coisa atropelada cozinhando no sol com suor velho e ovos podres com só uma pitada de borracha queimada. E por baixo de tudo isso havia aquele cheiro indefinível de doença. Sabe aquele cheiro que você sente quando entra numa sala que tem alguém que está doente há vários dias? Não importa quais outros cheiros tenham ali, sob todos eles há aquele cheiro vago, mas inegável, de doença. Era assim que aquele homem cheirava enquanto tentava desesperadamente apagar o fogo de seu corpo.
Eu dirigi pra longe tentando não vomitar e não olhei pra trás. Eu também não chamei a polícia porque senti que eles poderiam não ser muito gentis comigo depois de ter ateado fogo a um homem, mesmo que ele tenha me atacado. Acho que ele também não tenha prestado queixa já que ninguém nunca apareceu pra me questionar sobre isso.
Então essa foi a primeira vez que encontrei o cheiro.
Arquivista: Entendi. E a outra vez foi quando queimou a Jane Prentiss?
JORDAN (DEPOIMENTO)
Não só isso.
Quer dizer, eu não cheguei a vê-la. A incineração foi a primeira vez que a vi pessoalmente. Mas alguns anos atrás fui chamado pra lidar com o ninho da vespas.
Pelo menos foi assim que o proprietário nomeou no telefone — aparentemente tinha machucado um de seus inquilinos mais cedo naquele dia e eu fui o primeiro serviço de controle de pragas para o qual ele ligou que estava imediatamente disponível. Ele não me disse o nome do inquilino, embora, obviamente, agora eu saiba quem era. Ele não me deu nenhum detalhe pelo telefone, mas parecia feliz em pagar a taxa da chamada de emergência, então juntei meu equipamento pra vespas e parti pra Prospero Road.
Era um pouco estranho receber um chamado pra vespas naquela época do ano. Era final de fevereiro ou início de março, eu acho, e ainda estava bastante frio. Ainda assim, se fosse um prédio quente o suficiente, elas poderiam facilmente continuar ativas. Independentemente disso, fiz questão de verificar o traje espesso que eu usava pra esse tipo de trabalho pra garantir que não tivesse pontos fracos ou danificados. Se elas eram agressivas o suficiente pra ferir alguém, eu não correria nenhum risco.
O nome do proprietário era Arthur Nolan. Ele era um homem baixo com uma carranca constante, cabelos brancos ralos e um charuto na boca. Parecia que sua camisa jeans já tinha vestido uma estrutura bem atlética, mas que já havia desaparecido há muito tempo. Ele me olhou de cima a baixo quando saí da minha van e vi sua boca se contorcer brevemente de irritação. Ele claramente não estava impressionado.
Eu fiz o monólogo de sempre sobre o que iria acontecer e ele acenou com a cabeça distraidamente antes de entregar as chaves do apartamento 4 em minhas mãos e apontar pra ele. Ele disse que se eu precisasse de alguma coisa, ele estaria no apartamento 1, onde ele morava. Eu aconselhei que ele e os outros inquilinos ficassem fora do prédio enquanto eu lidava com as vespas, mas ele só grunhiu e repetiu que estaria no apartamento 1. Os outros inquilinos aparentemente já tinham saído.
Eu carreguei o inseticida e entrei. Estava muito mais silencioso do que eu esperava. Enquanto eu estava do lado de fora do apartamento 4, eu normalmente esperaria ouvir o zumbido das vespas, mas a noite estava quieta. Abri a porta lentamente, sem movimentos bruscos que pudessem alarmar qualquer coisa que estivesse do outro lado, mas, de novo, o apartamento parecia estar vazio.
Parecia que tinha passado um furacão ali, com livros e roupas espalhados pelo chão e uma tela de TV quebrada no canto. Encontrei a escada proo sótão no centro do quarto. Era bem pequena e subir no meu traje volumoso foi complicado, mas cheguei lá. Ainda sem vespas, mas estava muito escuro, então vasculhei de novo até encontrar o interruptor de uma única lâmpada. A luz era muito fraca, mas era o suficiente pra distinguir um caroço espesso e polpudo encostado na parede oposta.
Com certeza não se parecia com nenhum ninho de vespas que eu já tinha visto antes. Quer dizer, a forma era até familiar, mas a textura da superfície parecia muito errada. Parecia muito menos de papel do que o normal, e as paredes eram menos... regulares, se esticando em ângulos estranhos e deixando meio difícil de desviar o olhar. A coisa era toda esponjosa, cheia de buracos pequenos e num geral parecia muito doente. E o mais perturbador de tudo: ainda não tinha vespas.
Nada disso mudava o trabalho que eu tinha que fazer, então pensei em começar como qualquer outro ninho de vespas e ver se funcionava. Estendi a mão pra frente, ficando o mais longe possível da coisa quanto o bocal permitia, e o empurrei pra dentro de um dos buracos maiores. Ele afundou com quase nenhuma resistência. Respirei fundo e puxei o gatilho, borrifando o pó de inseticida no interior da massa.
O efeito foi imediato. A coisa toda começou a pulsar e ter espasmos, a carne esponjosa dela latejando e borbulhando como algum tipo de massa abominável. Ela começou a crescer em tamanho, se expandindo e cobrindo o resto do bocal, se estendendo até mim. E aí começou a gritar. Não era o som do ar escapando ou um zumbido que soava como gritos, aquele ninho estranho estava soltando um grito longo e estridente de raiva e dor.
Larguei o borrifador e desci a escada tão rápido que quase caí no apartamento abaixo. Eu ainda conseguia ouvir aquilo quando cheguei à porta do corredor. Eu a abri apenas pra ser confrontado pelo rosto de Arthur Nolan, o proprietário, olhando pra mim com um olhar de decepção.
Ele balançou a cabeça e começou a andar pelo corredor. Eu o segui, desesperado por respostas, mas ele simplesmente ignorou minhas perguntas sobre o que diabos estava acontecendo e o que era aquela coisa e continuou descendo as escadas até seu próprio apartamento. A certa altura, ele balançou a cabeça e murmurou algo sobre esperar que aquilo não chegasse tão longe, mas não parecia estar falando pra mim.
Assim que a porta se abriu, percebi o quão desconfortavelmente quente era o apartamento 1. O ar era espesso e seco e fez minha garganta ficar um pouco áspera. O proprietário continuou a ignorar minha presença e caminhou até uma poltrona velha no centro da sala. Ao fazer isso, ele começou a desabotoar sua camisa jeans.
Mais do que qualquer outra coisa que aconteceu, foi isso que finalmente me fez parar, confuso. Eu não conseguia entender o que ele estava fazendo. Quando ele se sentou, sua camisa se abriu e eu vi o que parecia ser uma cicatriz intrincada em seu peito. Se eu tivesse que adivinhar o que era, diria que parecia uma chama estilizada, mas também me fez pensar em um rosto contorcido de dor.
O tempo parecia passar devagar enquanto ele pegava o cinzeiro no braço da cadeira e pegava uma caixa de fósforos. Ele acendeu um e, sem sequer olhar pra mim, gentilmente pressionou a pequena chama no centro da cicatriz.
Sua carne pegou fogo imediatamente. As chamas se espalharam por seu corpo como água. A poltrona pegou fogo, depois o chão, e então eu corri pra fora do prédio antes que aquele inferno me cobrisse também. Dessa vez eu não fui embora. Eu fiquei lá e assisti ao incêndio até que o corpo de bombeiros chegou.
Foi quando o fogo atingiu aquele espaço no sótão no último andar, onde eu sabia que aquele ninho horrível ainda estava. Foi aí que eu senti o cheiro: o mesmo fedor grotesco que tinha vindo daquele homem seboso e febril três anos antes.
Na época eu não liguei os acontecimentos. Eu estava muito ocupado tentando entender o que tinha acabado de acontecer. E quando os caminhões do ECDC apareceram pra me colocar em quarentena, esqueci completamente.
Eles foram surpreendentemente sinceros sobre a Jane Prentiss e o que tinha acontecido e, depois de um extenso interrogatório, eles acabaram me oferecendo um emprego. Aparentemente, o controle de doenças e o controle de pragas muitas vezes caminham juntos, e eu estou trabalhando pra eles desde então. A maioria dos trabalhos são normais — alguns um pouco estranhos, mas nada parecido com esses dois.
Arquivista: Então por que prestar depoimento agora?
Jordan: Quando ajudei a incinerar o corpo dela, senti o cheiro de novo. Como antes. Levei um tempo pra ligar as coisas, mas achei que você deveria saber.
Arquivista: Você tá dizendo que pode haver outros lá fora como ela?
Jordan: Céus, espero que não. Eu não sei. O homem da casa das formigas — ele não era como ela, de jeito nenhum. Mas aquele cheiro quando eles queimaram... Eu acho que eles estão conectados de alguma forma. E isso me assusta.
Arquivista: Sim... sim, isso me assusta também.
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ARQUIVISTA
O depoimento do Sr. Kennedy me deixou um pouco abalado. Embora eu esteja sempre feliz com qualquer encerramento adicional do caso de Jane Prentiss, esse parece vir com a ressalva bastante séria de que ela pode não estar trabalhando sozinha.
Não, isso não parece certo. Jane Prentiss — ou o que quer que tenha sido essa “colmeia de carne” que a pegou — não parece o tipo de ser que funcionaria bem com outros.
A casa em Bromley foi demolida no ano passado, mas o Martin conseguiu localizar os registros da propriedade. Foi registrada no nome de John Amherst. As datas não deixam totalmente claro se isso foi um pouco antes ou logo depois de ele aparentemente assumir o comando da Casa de Repouso de Ivy Meadows, mas não há dúvidas de que era a mesma pessoa. Todos os registros de propriedade da casa das formigas levam a becos sem saída ou contas bancárias desativadas.
Não parece que ele é outra colmeia de carne... Mas, ainda assim... Não há nenhuma conexão exceto por doenças e insetos... e um cheiro desagradável quando eles queimam.
Jane Prentiss está morta. Mas isso tá muito longe de acabar.
Fim da gravação.
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ARQUIVISTA
Complemento.
Eu… Eu não tenho muito o que relatar, na verdade. Estamos na semana do Halloween, o que significa que o departamento de pesquisa tá sempre lotado de depoimentos. A maioria deles é patentemente falso, mas o volume fez com que eles chamassem o arquivo pra ajudar com o excesso.
Tem sido legal, na verdade. Refutar pilhas de bobagem foi bom, como se eu estivesse trabalhando de verdade, não só me distraindo com teorias da conspiração e paranoia. Eu tive até uma boa noite de sono. Sinto saudades dessa época.
Fim do complemento.
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MAG054 — Natureza Morta
Caso #0132306: Depoimento de Alexander Scaplehorn a respeito da avaliação que fez dos taxidermistas da “Sala de Troféus”, em Barnet.
Ouvir em: Spotify | Youtube
Aviso de conteúdo: animais mortos, escopofobia
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Depoimento de Alexander Scaplehorn a respeito da avaliação que fez dos taxidermistas da “Sala de Troféus”, em Barnet.
Depoimento original prestado em 23 de junho de 2013. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento.
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Eu tento não julgar pelas aparências.
Tenho certa simpatia por pessoas que se sentem instintivamente insultadas por aqueles que os cercam. Não só porque eu mesmo sou o que você generosamente descreveria como "estranho", mas porque minha carreira me levou a trabalhar pra Receita Federal, e você precisa ver o jeito como as pessoas se afastam de você quando descobrem que você trabalha pro fiscal.
Então eu tento ser um pouco mais profundo que isso e dou uma chance pra todo mundo. Então, fui com a mente extremamente aberta realizar uma inspeção na Sala de Troféus — uma loja de taxidermia perto de Woodside Park, em Barnet.
Eu nunca me senti de forma alguma atraído pela ideia da taxidermia, tirando alguns exemplos interessantes no Museu de História Natural, mas eu tinha certeza de que ela não merecia a reputação macabra que tinha. Claro, eu ia inspecionar o local para garantir que não estava sendo usado pra fins de lavagem de dinheiro, então, se eu descobrisse que estavam envolvidos com atividades criminosas, eu teria uma boa justificativa pra qualquer opinião ruim que eu pudesse ter, mas não queria me precipitar.
Veja bem, a Sala de Troféus tinha sido um marco de Woodside Park por mais ou menos trinta anos, mas, como muitas outras lojas de nicho, parecia vender muito pouco. Seus impostos estavam todos em ordem, mas havia pouquíssimos clientes regulares e a maior parte do dinheiro que os mantinha no azul vinha de algumas eventuais transações grandes que pareciam um tanto excessivas para os itens que estavam sendo comprados — todos os indicadores de lavagem de dinheiro.
Você ficaria surpreso com a quantidade de empresas que você passa na frente todos os dias na rua que estão sendo usadas desse mesmo jeito. Aquelas lojas que nunca parecem estar abertas ou que atendem a um mercado tão específico que você se pergunta como elas conseguem se manter. Bem, muitas vezes elas não conseguem sem ter alguma ajuda ilícita.
Mas eu não sou a polícia, não tenho poder pra prender ninguém ou revogar nenhuma licença ou até mesmo multar alguém sem passar por um monte de burocracia. Tudo isso vem depois e de outras pessoas. Meu trabalho é só discutir as conformidades e políticas pra prevenir a lavagem de dinheiro e examinar as transações pra confirmar que não tem nada suspeito. Eu acho fascinante, mas tô bem ciente de que a maioria das pessoas que eu inspeciono não compartilha da mesma opinião.
Assim que cheguei à Sala de Troféus, percebi que demoraria um tempo.
A loja tinha aquela camada de sujeira que só se acumula quando um estabelecimento está aberto há décadas sem nenhuma mudança, as letras douradas pintadas agora eram marrons e sujas e as bordas do toldo verde-oliva estavam cheias de sujeira. O tigre de pelúcia na janela estava tão desbotado pelo sol que eu tive que olhar duas vezes pra ter certeza de que não era um leão, suas listras estavam quase sumindo. Seus olhos estavam vidrados e um de seus dentes parecia ter quebrado. Mesmo assim, tinha alguma coisa na curva de sua boca que me atraía, e eu fiquei tão perdido olhando pra ela que quase pulei quando o sino acima da porta soou estrondosamente.
Olhei pra frente e vi um homem surpreendentemente jovem parado ali. Eu esperava ver algum tipo de caçador velho e durão a julgar pela aparência do lugar, mas, em vez disso, aquele jovem de 20 e poucos anos estendeu a mão para eu apertar. Eu apertei. A mão dele era firme e muito seca.
Perguntei se ele era o dono e ele respondeu que era, se apresentando como Daniel Rawlings. Aparentemente, o lugar pertencia a um velho amigo de seu pai que não tinha muitos parentes, e quando ele faleceu alguns anos antes, Daniel acabou o herdando. Perguntei se ele tinha algum interesse em taxidermia e ele apenas deu de ombros e gesticulou para que eu entrasse.
O cheiro me atingiu assim que eu passei da soleira. Era tão espesso que quase dava pra sentir o gosto, como se tivesse alguma coisa morta apodrecendo sob as tábuas do assoalho. Cheiro horrível. Eu me virei e vi Daniel acendendo um cigarro como se reconhecesse o odor do lugar. Ele apenas deu de ombros novamente e disse que eram os produtos químicos, lançando um olhar para a coleção reunida de animais selvagens empalhados.
Foi só aí que eu os percebi. Centenas de olhos mortos brilhantes olhando pra mim de todas as direções. Havia um alce enorme na minha frente, uma prateleira cheia de esquilos ao longo da parede, corvos imóveis presos a um velho candelabro elétrico e dezenas e dezenas de peixes montados em placas ou selados em tanques falsos.
Pelos, penas, escamas... todas as formas e tipos de pele morta me cercavam, cada um congelado em uma quietude estranha, como se estivessem presos em um mundo onde o tempo simplesmente havia parado. Tudo menos os olhos deles, é claro. Os olhos nunca estiveram vivos e todos pareciam olhar na minha direção, de um jeito que olhar muito de perto pra qualquer um deles era como olhar para vidro.
Levei um momento pra me recompor e tentar lembrar que eu tinha tomado a decisão de não julgar a loja ou seu dono com base no fato de que muitos consideram a taxidermia perturbadora. Eu conseguia me ver me tornando uma dessas pessoas e lutei muito contra o sentimento de injustiça que parecia estar tentando se infiltrar em minha mente.
Me forcei a fazer um bom elogio a Daniel sobre a variedade de suas peças enquanto ele acendia outro cigarro. Pensei em mencionar a placa de proibido fumar, mas não era exatamente por isso que eu estava lá, então comecei a falar sobre lavagem de dinheiro.
Ele assentiu e disse que tinha recebido a carta anunciando a inspeção e juntou todas as contas e transações dos últimos anos pra mim. Ele explicou que, como tinha assumido o negócio há pouco tempo, ele não sabia de muita coisa das políticas e procedimentos de prevenção à lavagem de dinheiro. Isso era música para os meus ouvidos, pois tem poucas coisas que eu goste mais do que ensinar o básico a um novo empresário engajado e em poucos minutos eu já tinha esquecido todos os olhos vidrados que pareciam me seguir pela sala. Pelo menos a maioria deles.
Daniel parecia extremamente interessado quando descrevi as verificações básicas do procedimento, mas não foi a primeira vez. As pessoas, especialmente os novos empresários, tendem a se sentar e prestar atenção quando um funcionário da Receita Federal aparece pra uma visita. Quer dizer, eu tento não explorar minha posição, mas as pessoas levam a visita do fiscal muito a sério e isso pode render alguns ouvidos maravilhosamente atentos.
Daniel não parecia estar em pânico ou preocupado, somente intrigado. Ele fez todas as perguntas certas e tinha sempre um bom exemplo na ponta da língua pra qualquer um dos aspectos mais abstratos da discussão. Resumindo, foi um prazer discutir lavagem de dinheiro com ele. Eu até parei de sentir o cheiro depois de um tempo, embora voltasse a senti-lo sempre que ele começava a fumar outro cigarro, algo que geralmente acontecia quase imediatamente depois que ele terminava o último. Não consigo nem imaginar como deviam ser os pulmões dele.
A única coisa estranha era que ele parecia determinado a evitar contato visual olhando pro chão ou para os animais taxidermizados, mas nunca diretamente pra mim. Era um pouco desconcertante, mas eu tenho um primo com autismo, então não era uma situação totalmente nova pra mim.
Por fim, a discussão terminou e Daniel falou sobre algumas das possíveis políticas que ele iria implementar. Elas realmente pareciam ser um pouco exageradas já que ele era a única pessoa trabalhando atualmente na Sala de Troféus, mas eu claramente não iria dizer pra ele ser menos cuidadoso.
Aí eu perguntei se podia dar uma olhada nos registros dele, e ele assentiu novamente e me levou para a sala dos fundos.
O escritório atrás da loja principal era pequeno e muito limpo. A maior parte do espaço era ocupada por uma grande mesa de carvalho e eu podia ver outra porta que levava ao que parecia ser uma oficina a julgar pelas mesas e sacos de serragem.
Daniel me entregou seus livros de contabilidade, registros bancários e recibos e me deixou sozinho. Nada daquilo tinha sido digitalizado e eu já sabia que levaria bastante tempo pra revisar tudo. O cheiro era mais fraco ali, então não foi tão horrível quanto poderia ter sido.
Havia taxidermia nessa sala também, mas era diferente das que estavam na sala da frente. Pendurados ao longo das paredes traseiras estavam couros e peles de animais tratadas. Eles pareciam ser bem velhos. Alguns reconheci como de origem nativa americana ou africana, e um parecia tão velho que eu fiquei preocupado até mesmo de respirar perto dele e ele se desfazer e virar pó.
Em cima da escrivaninha, encostada na parede, havia uma lebre montada com um pequeno colete. Ela me lembrou o coelho branco de Alice no País das Maravilhas, embora sua pele estivesse desbotada e agora manchada com um amarelo apagado. Achei o rosto dela um pouco mais perturbador do que os outros, apesar de não saber dizer por que, e tentei não olhar muito de perto enquanto examinava os registros da loja.
Não parecia ter nenhuma lavagem de dinheiro, o que era um alívio. Os preços que as pessoas pagavam pelos animais empalhados eram muito altos, mas eu não sou de forma alguma um especialista na área e não parecia ter mais nada suspeito nos registros.
Mas eu fiquei me perguntando qual era o tipo de pessoa para quem ele vendia. Da sala dos fundos, vi quatro clientes entrarem ao longo do dia. Observei cada um eles ficando cada vez mais apreensivos antes de finalmente fugirem de volta pela porta, tentando racionalizar o medo. Eu simpatizava.
Era quase hora de fechar quando o Daniel voltou pra me ver. Eu dei a ele a boa notícia. Ele não parecia particularmente aliviado, mas me disse que estava feliz em ouvir aquilo. Aí ele riu e me perguntou se eu sabia o quão sortudo eu era. Eu não entendi.
Ele me disse que eu estava sentado ali entre algumas das peles mais antigas do mundo. Ele falou com essas palavras. Isso me deixou um pouco inquieto e lancei um olhar nervoso para a oficina antes de me lembrar de que eu estava mantendo a mente aberta para a profissão estranha dele.
Daniel começou a percorrer as peças em exibição. Pele de búfalo da América do Norte, onça do Sul, uma pele de lobo do início da Idade Média. A lebre, disse ele, tinha feito parte da Grande Exposição de 1851 e ajudou a deixar a Inglaterra vitoriana louca pelo ofício.
Eu não gostei da ênfase que ele colocou em "louca" quando disse isso.
Por fim, ele apontou pra pele mais antiga. Ele me disse que era pele de gorila do Cartago, trazida por Hanno no século V a.C., e podia ser só a peça mais antiga de taxidermia do mundo.
Pra ser sincero, eu não acreditei nele. Mesmo que a pele de um gorila pudesse ser preservada por mais de dois milênios, parecia uma coisa improvável de ser encontrada na parte de trás de uma loja em Barnet. Mas ela era claramente muito antiga e eu não contestei.
Eu estava prestes a arrumar uma desculpa pra ir embora quando a campainha tocou na frente da loja e um par de vozes detestáveis com um sotaque londrino começou a chamar por Daniel. Seu rosto ficou pálido com isso e ele me pediu licença por um segundo, repentinamente me deixando sozinho no quarto dos fundos.
Ouvi os homens dizerem algo sobre descarregar uma van e então a campainha tocou novamente, levando Daniel com ela. Eu fiquei sozinho.
Eu comecei a arrumar minhas coisas e fazer algumas anotações finais pro meu relatório quando ouvi algo. Estava abafado, mas definitivamente pareciam ser palavras. Parecia estar vindo de debaixo do chão. Olhei pra baixo e vi um puxador redondo ligado a uma pequena porta que eu não havia notado, que presumi levar a um porão.
Ouvi o som mais uma vez. Dei uma olhada na loja principal para ver se Daniel tinha voltado, mas estava quieto. Eu sabia que abrir a porta era uma coisa idiota de se fazer. Não consigo imaginar um único cenário onde as coisas acabariam bem pra mim, mas o lugar todo era tão estranho que parte de mim não resistia em ver o quão funda era a toca do coelho, se me permite a piada.
Então eu abri a porta.
Tinha mesmo um lance de escadas que desaparecia no que parecia ser um porão. Eu não conseguia ver se tinha um interruptor de luz. Era impossível ver qualquer coisa além da primeira dúzia de degraus. Mas a luz que brilhava da lâmpada fraca atrás de mim iluminou uma coisa.
Um rosto.
Eu não conseguia distinguir nenhum detalhe, mas era pálido e balançava ligeiramente de um lado para o outro. O corpo abaixo dele estava escondido nas sombras, mas parecia olhar pra mim enquanto se movia.
Ele falou, o ritmo idêntico ao que eu tinha ouvido através da porta de madeira.
"Temos um aqui embaixo. Vem, vou te mostrar."
Soava tão monótono, quase mecânico. Parecia uma fala tão real quanto o vento soprando pelas frestas de uma rocha parece uma flauta sendo tocada. O que quer dizer que eles podem soar quase idênticos, mas só um deles é feito por um ser humano vivo. Comecei a dizer alguma coisa, a gritar, mas minha voz desapareceu na garganta quando o rosto recuou pro porão.
"Temos um aqui embaixo. Vem, vou te mostrar."
Eu me virei e corri pra loja principal. Agora eu estava totalmente apavorado e sentia o suor frio escorrendo da minha testa. Daniel estava na porta. Ele perguntou se estava tudo bem com um sorriso que fez meu estômago revirar e finalmente me olhou nos olhos.
Eu reconheci o olhar vítreo. Os mesmos olhos que me olhavam de uma centena de órbitas cheias de serragem ao redor da sala.
Quando todos começaram a se mover, eu quase desabei. Se eu tivesse desabado, não tenho dúvidas de que estaria morto... ou talvez muito pior. Em vez disso, tive uma súbita descarga de adrenalina e investi contra o Daniel, o derrubando no chão com a surpresa. Foi como bater num saco de areia.
Seus dois amigos londrinos demoraram muito pra me segurar antes que eu saísse correndo pela estrada. Pode até não parecer, mas consigo me mover em um ritmo razoável quando preciso, e fiz isso por quase uma hora antes de finalmente me sentir seguro o suficiente pra parar.
Eu tive muita sorte, sabe? Tive o bom senso de reunir todas as minhas anotações antes de abrir a porta do porão. O que significava que eu não tinha que voltar lá — eu podia simplesmente escrever um ótimo relatório e nunca mais ter que pensar sobre isso.
Tirando pra prestar meu depoimento pra vocês, claro. E foi exatamente o que eu fiz. Afinal, seja lá o que aquelas outras coisas fossem, não eram lavagem de dinheiro.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento.
Fiquei um pouco apreensivo quando descobri que a Sala de Troféus ainda está aberta e ainda é propriedade de Daniel Rawlings. É o tipo de pista que nunca conseguimos nesses casos — que ainda esteja ativa e disponível para investigação. No entanto, dados os eventos detalhados aqui, eu estava bem receoso de mandar alguém pra investigar. Posso não confiar totalmente nos meus assistentes, mas não vou perdê-los.
Eventualmente a Sasha se voluntariou. Eu avisei que poderia ser perigoso, mas ela parecia estar bem interessada. Acabou sendo meio decepcionante no final.
Por mais sinistra que fosse a taxidermia, aparentemente não havia nenhuma figura no porão, que o Rawlings ficou feliz em deixá-la investigar, nem qualquer coisa obviamente estranha em qualquer outro aspecto da loja. O Rawlings disse que não se lembra de entregadores especificamente londrinos, mas sei que nem preciso dizer minhas suspeitas aqui.
Não temos provas de nada e se ele não quiser falar, não tem muito que possamos fazer pra que ele mude de ideia. Ele também nega ser o mesmo Daniel Rawlings que desapareceu em Edimburgo em 2006.
Ele permitiu que a Sasha tirasse uma foto dele e eu estava comparando ela com as fotos disponíveis do Daniel Rawlings que desapareceu. É muito estranho. Eles têm alturas diferentes, biotipos diferentes, rostos diferentes... mas os cabelos são idênticos.
Os olhos, por outro lado, não são; e acho difícil acreditar que eles possam ser a mesma pessoa. Outro beco sem saída.
Fim da gravação.
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ARQUIVISTA
Complemento.
Invadi o apartamento da Gertrude.
Eu tava fazendo algumas pesquisas e descobri que a casa dela ainda não tinha sido alugada. Uma conversa rápida com o proprietário confirmou que houve alguns atrasos legais por conta da forma como ela desapareceu e faleceu, e ela já tinha pagado pelos próximos seis meses, então eles ainda não tiraram as coisas dela.
Então... eu invadi. Não foi fácil e entrar pela janela fez com que eu não tivesse muito tempo antes de ouvir as sirenes, mas acho que consegui escapar.
Aprendi algumas coisas com isso. Em primeiro lugar, a Gertrude tinha uma vida muito minimalista. Não tinha nada na cozinha exceto por saquinhos de chá, uma panela, uma chaleira e uma única caneca. A cama dela tava bem arrumada e ela tinha uma única estante cheia de vários livros, a maioria sobre história. A julgar pela sacola que eu encontrei por ali, acho que ela costumava se livrar dos livros depois de lê-los.
Ela não tinha televisão, mas encontrei algo que chamou a minha atenção: um carregador de laptop. Não vi nenhum sinal do computador que vinha com ele, mas a indicação de que ela poderia ter um foi bem pro topo da minha lista de prioridades.
Ainda assim, a casa dela me forneceu poucas informações por si só, embora continue a provar que minhas impressões sobre a Gertrude dificilmente poderiam ser menos precisas. Tô começando a achar que a única suposição certa que eu fiz sobre ela foi que ela provavelmente gostava de chá.
Ah, e eu dei uma olhada em alguns livros da prateleira dela. Eles eram muito bem cuidados, com a exceção de que sempre que o rosto de uma pessoa aparecia na capa, seus olhos eram recortados e removidos com muito cuidado.
Fim do complemento.
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MAG053 — Cruzador
Caso #9970509: Sargento Walter Heller gravando, a respeito de uma descoberta feita perto de Alexandria durante a Operação Cruzador em novembro de 1941.
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Aviso de conteúdo: guerra, horror corporal, escopofobia
Tradução: Lia
GERTRUDE
Você se recuperou bem?
WALTER
Sim, eu acho. Bem o suficiente pra contar minha história, pelo menos.
Gertrude: Ah, ótimo.
Sargento Walter Heller gravando, a respeito de uma descoberta feita perto de Alexandria durante a Operação Cruzador em novembro de 1941. Data de gravação: 5 de setembro de 1997.
Quando estiver pronto.
Walter: Certo. Por onde você quer que eu comece?
Gertrude: Bom, você disse que estava servindo no norte da África quando aconteceu?
Walter: Sim, eu estava com os Hussardos Reais de Gloucester. Originalmente, nós nem deveríamos estar na Líbia, mas quando a resistência contra o Rommel começou, toda a brigada foi realocada. Nós íamos ajudar na Operação Cruzador. Bom, por mim estava tudo bem, meu irmão Frances tinha morrido em Arras quando os alemães avançaram no ano anterior. O Rommel também estava no comando lá, e eu o odiava por isso. Eu sabia que nunca conseguiria fazer nada a respeito, mas sempre carregava uma foto antiga dele que eu tinha recortado do jornal e fazia questão de mantê-la na minha mochila para que eu o reconhecesse se algum dia o visse novamente, só por precaução.
Bem, éramos quatro na tripulação do tanque: Frank Malloy estava no comando, Ralph McCulloch era o motorista e tínhamos um carregador chamado Dicky. Infelizmente não lembro o sobrenome dele; ele não ficou muito tempo com a gente. Eu era o atirador. Eu sempre tive bons olhos, sabe, e você realmente precisa disso com a arma. É tranquilo pro Frank apontar pra um pontinho no horizonte e nos dar a ordem de atirar, mas sou eu quem precisa mirar o tiro a quase um quilômetro de distância e explodir um tanque nazista antes que eles conseguissem fazer o mesmo com a gente.
Eu era muito bom nisso, e consegui acertar três tanques M13/40 quando a luta começou. Eu ia gostar de ter uma chance de acertar um Panzer, mas foram os italianos que nos alcançaram em Bir el Gubi, então eu nunca tive a chance. Talvez tenha sido melhor assim, pelo que sabíamos os alemães tinham muito mais treinamento, então talvez tivesse sido ainda pior pra nós. Mas eu ainda odiava ter que perder tempo com os italianos quando eu sabia que o Rommel e os Panzers dele estavam por aí, em algum lugar no deserto.
 Pra ser sincero, estava tudo uma bagunça naquela batalha. Nosso apoio aéreo deveria ter bombardeado os aeródromos deles, mas o clima os manteve aterrados, então fomos perseguidos por aviões alemães o tempo todo. Os italianos, como já esperado, aprenderam alguns truques com o Rommel e reforçaram seus tanques com infantaria mais pesada, enquanto nós ficamos quase inteiramente sozinhos.
O Frank pegava a metralhadora quando conseguia imobilizá-los, mas já era difícil o suficiente manter os olhos nos tanques inimigos sem ter que nos preocupar constantemente com um Panzerfaust aparecendo do nada. Nós ainda estávamos no Cruzador Mk 1 naquela época, então tínhamos a velocidade para nos manter à frente deles, mas eu era basicamente inútil enquanto estávamos em movimento. Sempre que ficávamos parados por tempo suficiente pra eu conseguir mirar em um tanque italiano, acabávamos sendo um alvo fácil pra infantaria deles. Num geral, acho que conseguir derrubar três deles foi um resultado muito bom.
Estava quente naquele dia, sabe? Eu não ia pro deserto há mais de duas semanas e o calor absurdo do lugar ainda era um choque. Eu sou de Cheltenham, sabe? Então não sou muito acostumado com o sol escaldante de um deserto líbio. E um Cruzador... bom, apesar de todas as suas vantagens, ele não era muito bom no quesito ventilação, então estávamos passando muito tempo presos no que era basicamente um forno ambulante. Mesmo assim eu conseguia aguentar, mas quando a luta começou e as armas começaram a disparar, bom... ela só pesava um quilo, mas ainda assim o calor era quase insuportável.
Já tinha se passado mais ou menos duas horas da batalha quando aconteceu. Agora a arma estava tão quente que eu não conseguia tocá-la, e eu tinha que limpar o suor dos meus olhos de minuto em minuto. O deserto inteiro parecia aumentar e estremecer sob aquela onda de calor, mas ouvi claramente o Frank dar uma ordem para atirar em um tanque ao leste.
Ralph parou o Cruzador e eu ouvi o coitado do Dicky gritando atrás de mim que estávamos prontos para atirar, reclamando o tempo todo sobre seus dedos queimados. Eu podia ver a forma escura de uma arma italiana à distância e estava tentando acertar o ângulo, mas minha visão estava tão nublada pelo calor intenso que era difícil focar meus binóculos do jeito certo.
Foi aí que eu vi: um clarão de luz, um brilho cintilante do sol vindo do tanque inimigo. No fundo, eu sabia o que era: o sol refletindo nos binóculos deles que estavam apontados para nós, mas minha cabeça estava tão confusa que parecia que eles estavam piscando pra mim. Tentei dizer algo pro resto da tripulação, mas minha boca estava tão seca que tudo o que saiu foi um grasnido fraco. Foi estranho, mas mesmo com a luz intensa do sol refletindo naquela extensão interminável do deserto brilhante, ainda me lembro de ver o flash da arma deles. Mas eu não ouvi. Eles sempre dizem isso, né? Que você nunca ouve o tiro que te acerta. Bom, eu com certeza não ouvi.
E então eu estava no chão com Frank e Ralph de pé em cima de mim. Ralph estava tentando dizer algo, mas eu não conseguia ouvi-lo com o zumbido intenso em meus ouvidos. Senti o cheiro de metal queimado e, embaixo disso, outro cheiro que eu não conseguia identificar. Tentei me sentar, mas senti uma dor tão intensa na minha perna esquerda que acabei desmaiando de novo.
A alguns metros de distância eu conseguia ouvir o nosso Cruzador, fumaça saindo da carcaça rachada. Fiquei surpreso com o quão intacto ele parecia estar até que eu vi as chamas subindo da escotilha. Foi aí que o zumbido em meus ouvidos desapareceu o suficiente para que eu pudesse ouvir os gritos vindos de dentro do tanque. Dicky ainda estava lá dentro. Olhei para os meus companheiros e vi em seus rostos que eles também conseguiam ouvir. Não havia nada que pudessem fazer para salvar o pobre coitado, é claro. Se eles tinham o prendido lá, então chegar até ele seria impossível, e tentar fazer isso só acabaria os matando. Então eu tive que ficar parado lá ouvindo o Dicky assar até a morte. Não sei quanto tempo demorou, mas pareceu horas.
Em algum momento devem ter dado uma ordem de retirada, pois vi o resto dos Cruzadores recuando. Frank conseguiu chamar a atenção de um deles e o comandante concordou em me levar de volta para algum lugar onde os médicos pudessem dar uma olhada na minha perna embora não houvesse espaço para todos nós, então eles literalmente me amarraram ao topo do tanque e nós fomos embora, deixando Ralph e Frank fazerem o caminho de volta sozinhos.
Só depois de quase 10 anos eu consegui rastrear o Ralph e descobri que eles foram capturados logo depois e passaram o resto da guerra em um campo de prisioneiros de guerra italiano. Ah, do jeito que eles descreveram tinha sido bastante confortável, mas até onde eu sabia na época, estávamos os deixando pra morrer. Se eu não estivesse delirando tanto de calor e dor, eu provavelmente teria chorado. Minhas lembranças da viagem de volta são fragmentadas, e tenho apenas recordações tênues da dor que cada vibração dos motores do tanque enviava por minha perna machucada quando eu recobrava e perdia a consciência.
Então houve silêncio, depois gritaria. Lembro de uma picada leve no braço e, em seguida, um tipo diferente de tontura enquanto a dormência e o sono se espalhavam por minhas veias. A próxima coisa que eu lembro com mais clareza é a minha cama no hospital. Eu tinha sido levado através da fronteira de volta ao Egito e tinha acabado no hospital militar britânico em Alexandria. Quando acordei, estava tão silencioso que por um minuto tive o súbito pensamento em pânico de que poderia estar surdo. Mas era só porque depois de 70 dias ouvindo o rugido de motores aqui e ali, a paz de um hospital quase vazio era tão profunda e serena que eu não conseguia entender.
Quando chegou, a enfermeira teve a gentileza de me informar que eu era um dos primeiros feridos a ter retornado de Bir el Gubi, mas eles esperavam mais. Como previsto, nos dias seguintes a ala se encheu e minha paz foi embora com o fluxo constante de soldados feridos. Eu não me importava muito porque ainda era uma visão melhor do que andar pelo deserto escaldante dentro de um caixão de ferro. Sem falar no fato de que acabei não perdendo a perna, o que é o tipo de notícia que deixa você de muito bom humor. Os médicos me disseram que eu provavelmente mancaria para sempre, como tenho certeza que você reparou, mas não estava infectado e não havia o dano no nervo que eles temiam, então todos disseram que era um ferimento muito bom de se conseguir.
Depois de algumas semanas eu já estava andando sem sentir muita dor, e as enfermeiras me aconselharam a começar a fazer caminhadas ocasionais por Alexandria. Eu fazia isso, mas entre os habitantes locais e o exército, aquele era um lugar barulhento e lotado, mesmo durante a noite. Passei a fazer minhas caminhadas cada vez mais longe do hospital e do centro da cidade, e ocasionalmente me encontrava perambulando por algum caminho além dos limites da cidade — pelo menos até onde minha perna aguentava. Ainda estava quente, mesmo no final de dezembro, mas além do limite da cidade havia uma calmaria tranquila que eu simplesmente não conseguia encontrar em nenhum outro lugar.
Aconteceu dois dias antes de eu voltar ao serviço ativo. Eu estava inquieto a semana toda e não conseguia me acalmar ou me concentrar em nada. Uma vez que cheguei perto do Pilar de Pompeu, a multidão pareceu se dispersar e minha mente finalmente clareou um pouco.
Eu continuei andando, embora não estivesse prestando nenhuma atenção ao meu entorno, até perceber que estava bem perdido. Depois de várias horas, minha perna estava começando a doer muito e eu parei por um momento pra descansar encostado em uma porta ali perto. A madeira da porta era velha e seca, e rangia quando eu apoiava meu peso contra ela. Eu nem percebi que ela estava entortando até que fosse tarde demais. Quando dei por mim, estava deitado de bruços em um porão sujo, minha perna latejando de dor.
Não tinha quebrado de novo, o que era um alívio, mas eu ainda tive que sentar lá por um momento pra me recuperar da queda. E ninguém pareceu ter notado o que tinha acontecido, ou então não se importaram, e eu levei alguns momentos para olhar o lugar onde estava.
O porão parecia ser velho, muito velho. Eu não sou especialista em arquitetura egípcia, mas ele não parecia muito com o resto de Alexandria. Mais do que isso — além da porta agora quebrada, não parecia haver nenhuma entrada no local ou qualquer coisa que o conectasse ao prédio acima. O lugar era seco e frio, e não parecia haver mais nada digno de nota, exceto por uma grade velha feita de latão, ou talvez de bronze, que presumi levar ao sistema de esgoto da cidade.
Quando eu finalmente dolorosamente me levantei, eu vi. De algum lugar muito além da grade, enquanto o sol poente caía sobre ela, vi o brilho de algo redondo e branco. Brilhou só por um segundo, e se eu não tivesse passado tanto tempo treinando para detectar objetos a essa distância, provavelmente não teria notado, mas definitivamente tinha algo lá.
Me aproximei da grade de metal esperando sentir o cheiro do esgoto além dela, mas em vez disso senti o cheiro de outra coisa. Naquele momento eu não fazia ideia do que era, mas eu descreveria como algo parecido com madeira. Tentei abrir a grade e percebi que ela saía facilmente do chão, deixando um buraco grande o suficiente para passar sem problemas.
Eu tinha começado a levar uma lanterna comigo nas minhas caminhadas pois às vezes acabava me afastando demais e tendo que voltar no escuro. Apontar a luz para o buraco agora aberto revelou o que parecia ser um túnel antigo. Se foi feito por homens ou se era uma caverna natural ou algo no meio disso eu não sei dizer, mas era grande o suficiente pra eu descer. E mais uma vez eu vi aquele brilho branco bem lá embaixo, então entrei.
Eu andava devagar porque a minha perna ainda estava fraca e o chão do túnel não era nivelado. Eu tinha que me agachar em certos momentos e apoiar as mãos nas paredes empoeiradas. Depois de alguns minutos eu já estava tão fundo que minha lanterna era a única fonte de luz, e a passagem começou a se abrir para o que parecia ser uma grande sala.
Foi ali, em uma pequena alcova esculpida na parede, que eu vi o que havia reluzido sob a luz. Era um velho pergaminho de papiro entre os restos quebrados de uma caixa. Virei minha lanterna e vi mais prateleiras esculpidas nas paredes da câmara, cada uma contendo um pergaminho. Eles haviam sido escritos em uma língua que eu não reconheci, mas eram antigos e tinham cheiro de mofo e decomposição.
Aquela não era a única sala assim, havia dezenas de câmaras como aquela, todas de formas e tamanhos diferentes conectadas como um labirinto. Alguns estavam vazias, outras ainda tinham um punhado de pergaminhos velhos deixados em alcovas ou caídos no chão. Parecia que o lugar havia sido saqueado há muito, muito tempo.
Depois de olhar algumas salas, eu tive a certeza de que o que quer que aquilo fosse, devia ter sido um enorme achado arqueológico. Eu realmente não sabia a quem contar sobre isso, mas eu sabia que precisava contar a alguém. Quando virei pra voltar para a entrada, a luz da minha lanterna iluminou algo escuro em uma sala adjacente.
Era um corpo. Pelo que parecia, o cadáver havia resistido por muito, muito tempo e o ar seco quase o mumificara, deixando uma pele ressecada esticada sobre a estrutura óssea. Ele usava o que parecia ser os restos de uma cota de malha e um tabardo preto com uma cruz branca pontiaguda estampada no peito. Havia uma espada quebrada jogada por perto, agora totalmente enferrujada, e enquanto eu olhava para o rosto do homem morto senti um arrepio percorrer minha espinha. Tentei me convencer de que foi só o jeito como o crânio se deformou ao longo dos anos que fez parecer que ele estava gritando. Seus olhos haviam sumido, mas em vez de simplesmente se decomporem até não sobrar nada, havia arranhões irregulares ao redor das cavidades, deixando buracos vazios e esfacelados.
Agora eu estava com muito medo e tinha acabado de me virar pra sair quando minha lanterna apagou abruptamente. Foi muito estranho. Devia estar escuro como breu, mas apesar de não haver nenhuma luz iluminando aquelas cavernas subterrâneas, eu ainda conseguia ver tudo. Cada detalhe do cadáver enrugado diante de mim era claro como água. Não tinha nenhuma luz pra enxergar, eu não sei como explicar nem descrever como era, mas estava uma escuridão absoluta e eu ainda conseguia ver. Ao mesmo tempo, de repente, tive uma sensação muito intensa de estar sendo observado, como se mil olhos se voltassem para mim ao mesmo tempo.
Eu congelei. De algum lugar mais ao fundo daquela biblioteca estranha e antiga, eu ouvi um barulho de movimento. O farfalhar de tecidos e um passo rítmico e lento vindo em minha direção. Comecei a me afastar em direção ao túnel que me levou até lá, mas foi difícil. A sensação de ser observado estava ficando mais forte, era um peso quase físico que parecia me puxar pra baixo.
Cheguei à entrada do túnel no momento em que uma figura apareceu. Ela vestia o que parecia ser os restos de um manto antigo, e na escuridão eu podia ver dedos longos e esguios se esticando em minha direção. Dentro de seu enorme capuz flutuante eu não consegui ver nada exceto por um único olho sem pálpebras. Não sei em que momento comecei a gritar, mas sei que não parei até ser contido por policiais militares que fugiam pelas ruas de Alexandria na madrugada. Passei mais um mês lá passando por avaliação psiquiátrica antes de receber alta.
Gertrude: Entendi. Você já conseguiu localizar aquele porão mais alguma vez?
Walter: Bem, eu queria, mas fiquei sob supervisão pelo resto da minha estadia em Alexandria.
Gertrude: Você contou isso pra algum de seus superiores?
Walter: Não. Eu fiquei meio convencido de que tinha sonhado com a coisa toda.
Gertrude: E você substituiu a grade?
Walter: A-A o quê?
Gertrude: A grade de bronze na entrada do arquivo. Você a substituiu quando fugiu?
Walter: Ah sim, sim... sim, acho que sim.
Gertrude: Mais uma coisa. A sensação de estar sendo observado. Você sentiu isso outras vezes desde então?
Walter: Bem, eu não sabia como falar isso, mas sim. Acabei de sentir. Naquela curva estranha que fiz descendo as escadas, eu senti de novo. Todos aqueles olhos me observando.
Gertrude: Obrigada, Walter. Agora eu preciso checar alguns mapas com você, mas acho que não precisamos disso na fita. Tudo bem ficar aqui por enquanto?
Walter: Acho que sim.
Gertrude: É improvável que aconteça, mas se mais alguém descer aqui...
Walter: Eu falo que sou um velho amigo seu te visitando.
Gertrude: Obrigada. Esse depoimento é extraoficial e eu não quero ninguém te incomodando mais sobre isso. Vamos manter isso entre a gente.
[CLICK]
GERTRUDE
Bem, isso com certeza foi útil.
Demorou muito tempo para rastrear alguém ainda vivo que encontrou o Serapeu de Alexandria. Não é uma confirmação completa da minha teoria sobre iterações antigas do arquivo, mas já sinto que é válido investigá-la.
Eu estava trabalhando com a suposição de que a grande biblioteca em si teria cumprido essa função, mas faz muito mais sentido que tenha sido a ramificação do Serapeu. As ruínas do próprio Serapeu principal perto do Pilar de Pompeu são muito bem pesquisadas, então essas podem ser as cavernas secretas mencionadas em certos relatos de sua destruição.
De acordo com Eunápio, a destruição do Serapeu em 391 d.C. foi conduzida por uma multidão cristã, encorajada pelas reformas do Papa Teodósio I, que tentava expulsar a adoração a outros deuses de Alexandria. Existem outros relatos, no entanto, que afirmam que os estudiosos fizeram uma barricada junto a prisioneiros e se retiraram para cavernas escondidas nas profundezas. Alguns chegam a afirmar que os cativos foram torturados para a adoração de divindades pagãs ou oferecidos como sacrifícios de sangue. Existe até um historiador contemporâneo não identificado que descreve a multidão atacando o Serapeu não como Cristãos, mas utilizando uma frase que se traduz mais ou menos como “aqueles que cantam a noite”.
O cadáver encontrado pelo Sr. Heller parece ser os restos de um cavaleiro hospitaleiro da ordem de São João, pelo menos com base em sua descrição do tabardo, provavelmente do saque de Alexandria em 1365 por Pedro I de Chipre. Embora seja geralmente associado ao resto das Cruzadas, é geralmente considerado um dos poucos ataques desse tipo sem motivação religiosa. Dada essa descoberta, no entanto, eu me pergunto se pode ter havido... outros motivos.
Independentemente disso, eu tenho mais investigaçõess pessoais pra fazer. Minha maior preocupação agora é seja lá o que for aquela criatura que o Sr. Heller encontrou lá embaixo. Foi há 56 anos, mas se aquilo ainda estiver vivo, preciso ter cuidado. O que será que era? Algum tipo de guardião? Ou talvez... talvez... também já tenha sido um arquivista.
[CLICK]
ARQUIVISTA
Bom... Só duas fitas até agora e eu já... Eu não sei o que pensar.
Outro arquivo, uma versão anterior. Eu sou só parte de uma corrente? Uma longa e interminável sequência de pessoas que se autodenominam “o arquivista” e vão até...
Estamos todos destinados a acabar como a Gertrude, apenas seguindo o mesmo caminho? Preciso saber mais sobre ela. Mas uma coisa tá ficando clara: ela não confiava no Instituto Magnus. Algo que eu com certeza simpatizo...
[PORTA ABRE]
Martin: Tô indo pegar um café, você quer um sanduíche?
Arquivista: É, depende. Você vai continuar me rodeando se eu for pra cantina?
Martin: Eu só tô preocupado. Você precisou de cinco pontos depois de ter “acidentalmente” se esfaqueado com a faca de pão. Se é que você ainda diz que foi isso que aconteceu.
Arquivista: Eu digo.
Martin: Então você vai me perdoar por me preocupar quando você usa facas afiadas.
Arquivista: Tá. Eu vou com você. Só me dá um segundo pra pegar meu casaco.
Martin: Claro.
[PORTA FECHA]
Arquivista: O Sr. Heller morreu de um derrame em 2004, dificultando o acompanhamento dessa fita. Mas eu encontrei um artigo de março de 1998, seis meses depois de o depoimento ter sido prestado. Ele relata uma explosão em Alexandria que destruiu vários edifícios nas proximidades do Pilar de Pompeu e matou 17 pessoas. A investigação oficial determinou que foi uma explosão na rede de gás, mas... Eu me pergunto.
Gertrude Robinson não é quem eu pensava que era.
Fim do complemento.
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MAG052 — Risco Excepcional
Caso #0040904: Depoimento de Philip Brown a respeito do tempo que trabalhou na Penitenciária de Wakefield entre 1990 e 2002.
Ouvir em: Spotify | Youtube
Aviso de conteúdo: nictofobia, menção a suicídio
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Depoimento de Philip Brown a respeito do tempo que trabalhou na Penitenciária de Wakefield entre 1990 e 2002. Depoimento original prestado em 9 de abril de 2004. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento.
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
O que você sabe sobre o sistema penitenciário? Não muito, aposto. Talvez você tenha visto alguns filmes de prisão, você deve achar que sabe um pouco sobre como é lá dentro. Você tem que fazer cara feia e ficar sempre de olho, né? Afinal, nunca se sabe quem tem uma faca com seu nome escrito nela. Bom, pra começar, você provavelmente tá pensando em filmes americanos sobre prisões americanas e eu não tenho o que falar sobre isso. Talvez tenha mesmo briga entre gangues o tempo todo por lá. Mas na minha experiência, o maior perigo em uma prisão é e sempre será o tédio.
Digo isso como se fosse uma observação besta, mas nós trabalhamos duro pra manter as coisas o mais chatas possíveis. Qualquer indício de violência entre os presidiários é reprimido. Trabalhei como guarda de presídio na Penitenciária de Wakefield de Sua Majestade, ou “A Mansão de Monstros”, como a imprensa insiste em chamá-la. Ela abriga a verdadeira escória desse país. Caras perigosos de primeira classe — muitos deles —, e eu sempre me orgulhei por conseguirmos manter aquele lugar quieto.
Quer dizer, eu falo isso como se eu tivesse algum poder de verdade, mas eu era só um guarda ficando de olho numa gaiola cheia de animais selvagens. Nem vou fingir que eu era razoável com o uso da força. Quer dizer, o inspetor da prisão já tinha falado sobre isso comigo, mas o tipo de coisa que você tem que fazer pra acabar em Wakefield... enfim. Digamos que as tentativas de suicídio superavam muito as tentativas de assassinato, e eu nunca perdia o sono por causa disso. E eu sempre me certificava de que os presos também não.
Depois de trancar tudo às 19:00 em ponto, eu fazia questão de manter a minha ala escura e silenciosa. Ajudava que as celas fossem individuais, claro, já que eu não precisava me preocupar com violência verbal entre colegas de cela. Mas, mesmo assim, eu tinha o cuidado de deixar bem claro que chamar a minha atenção depois das luzes se apagarem seria algo de que eles se arrependeriam. Admito que eu era um verdadeiro babaca quando trabalhava lá. Às vezes você precisa de um babaca pra ficar de olho nos monstros. E naquela época eu realmente pensava que os assassinos imundos de quem estávamos cuidando eram a coisa mais próxima que esse mundo tinha de monstros de verdade. Claro que eu tava errado.
Eu trabalhava lá há quase cinco anos quando Robert Montauk chegou a nós. Olha, não me entenda mal, vários criminosos famosos passaram por Wakefield ao longo dos anos, mas não posso dizer que não me deu um leve arrepio saber que íamos vigiar o serial killer britânico mais prolífico de todos os tempos. Ele matou 40 pessoas. Isso é um número ridículo. Quer dizer, talvez não na América, onde você tem tantos lugares pra se esconder, mas seu concorrente mais próximo nesse país mal chegou a metade disso, e ele era policial. No fim, nós tínhamos os ingredientes pra uma receita de agitação e violência entre certas alas de presos.
Ele normalmente não teria ido para Wakefield já que seus crimes não envolviam nada sexual, mas nós éramos os únicos que tinham espaço pra um prisioneiro que precisava desse nível de segurança e fiscalização. Ele era um cara grande. Eu não esperava isso, pra ser sincero. Normalmente esses prisioneiros dão aquela sensação de "as aparências enganam", mas o Montauk parecia um assassino. Ele devia ter quase um e oitenta e parecia um armário. Seu cabelo escuro era cortado rente ao couro cabeludo exibindo o rosto achatado e angular. Sem querer exagerar, mas o cara era assustador. Quando ele entrou na sala de recreação pela primeira vez, quase pude ouvir os egos de uma dúzia de aspirantes a gângster se esvaziando enquanto pensavam melhor antes de tentar melhorar suas reputações enfrentando Robert Montauk.
Claro que sempre tem um e, nesse caso, foi o Ivan Ilich, um aspirante a gângster sérvio que decidiu ir atrás dele, o atacando pelo lado. Eu e os outros guardas já estávamos esperando por algo assim, mas demoramos demais pra chegar lá a tempo. Bom, talvez pudéssemos ter ido mais rápido, mas 40 assassinatos… às vezes você quer conhecer o que vai enfrentar. O Ilich não era um homem pequeno e quase se igualava ao Montauk em altura e em peso, mas havia uma energia no Montauk — uma tensão, como a de um elástico prestes a se romper. Ilich saltou para a frente gritando e deu um soco forte nos rins do outro homem, mas era como se tivesse ativado uma armadilha de urso. Com uma velocidade assustadora, suas mãos giraram, agarrando o braço direito do sérvio. Houve um breve momento de completo silêncio enquanto todos pareciam estar prendendo a respiração para ver o que Robert Montauk faria a seguir.
Ele puxou as mãos com um movimento violento, deslocando o braço de seu agressor com um estalo desagradável e substituindo o silêncio por um grito e uma série de palavrões eslavos. Nesse momento, eu e os outros guardas os separamos. Eu recebi a tarefa super agradável de levar o Ivan Ilich, que ainda xingava um monte, para tratar o braço. Eu não vi mais o Montauk por um tempo. Depois daquele pequeno incidente, ele foi imediatamente transferido para o bloco F, onde ele não seria um perigo para ninguém além de si mesmo.
Eu ocasionalmente ouvia rumores sobre ele se infiltrando entre os outros presos e não havia uma história de terror em Wakefield que não o tivesse como protagonista. Mal se passava uma semana sem que algum zé ninguém espalhasse a notícia de que ele havia matado o guarda ou fugido ou sido encontrado morto em sua cela com o coração arrancado. Nunca era verdade, é claro. Não naquela época.
Acho que a maior parte vinha do Dave Harrington da ala F. Ele sempre gostava de espalhar fofocas falsas sobre os novos presos e os veteranos sabiam que não deviam confiar em uma palavra do que ele dizia. Foi em 1998 que...
Arquivista: Olá?
Basira: Ei, eu só queria...
Arquivista: Ah, espera.
[CLICK]
Desculpa, todo cuidado é pouco. Eu acidentalmente te mencionei em uma das minhas gravações oficiais e tive que regravar.
Basira: Ah, claro. Tenho outra fita pra você.
Arquivista: Ah, maravilha. Aqui está a outra.
Basira: Tinha alguma coisa nela?
Arquivista: Ah, até que sim. Um circo russo que... ah. Mas nada relevante pro assassinato da Gertrude, se é isso o que você quer dizer.
Basira: Foi isso o que eu quis dizer.
Arquivista: Certo. Desculpa. Você já conseguiu ouvir alguma delas?
Basira: Bom, a delegacia tem um total de um toca-fitas e ele explodiu quando eu tentei colocar pilha nele.
Arquivista: Ah.
Basira: Fiz a requisição de um novo, mas ela ficou perdida em algum lugar do comitê e eu não tive a chance de encontrá-la, então... não.
Arquivista: Bom, se você continuar trazendo pra mim...
Basira: É melhor que nada, sim. Enfim, acho que você pode tentar essa aqui.
Arquivista: Alexandria?
Basira: Ei, pelo menos essa aqui tem uma etiqueta. Imaginei que você gostasse de bibliotecas antigas e tal, então...
Arquivista: Não, você tem razão. Obrigado, Basira. De verdade.
Basira: É. Ah, qual é o nome daquele seu ajudante?
Arquivista: Martin.
Basira: Não, não, o bonitão. Ele tem cicatrizes como as suas mas meio que consegue esconder.
Arquivista: Sim, o Tim.
Basira: É, qual é o problema dele? Ele abriu um sorriso esquisito quando entrei agora e tipo... joinha com as mãos?
Arquivista: Eu... Eu não me preocuparia com ele.
Basira: Não?
Arquivista: Ele acha que estamos meio que... juntos?
Basira: Ah. Ah! Ah, não. Você sabe que eu não...
Arquivista: Sim, eu sei, eu também não, ele só enfiou isso na cabeça.
Basira: Quer dizer, você é legal e tudo...
Arquivista: Sim, sim. Não, eu sinto o mesmo.
Basira: Certo. Quer dizer, acho que talvez seja melhor ele pensar isso?
Arquivista: Não vou falar nada se você não falar.
Basira: Certo. Eu... vou embora, então.
Arquivista: Sim. Sim.
[CLICK]
Continuação do depoimento.
Foi em 1998 que eu comecei a ter mais contato com Robert Montauk.
O governo encomendou a construção de centros de supervisão em prisões de todo o país, e Wakefield foi uma das iniciativas emblemáticas. Uma boa parte da ala F foi entregue ao nosso próprio centro de supervisão que logo seria conhecido como a unidade de risco excepcional. Ela só podia manter oito prisioneiros, os piores dos piores, mantidos sob constante vigilância e sem chance de ferir ninguém. Fui escolhido pra ser um dos oficiais transferidos pra nova unidade. Não sei se foi especificamente porque eu tinha mais brigas com presidiários no meu registro do que qualquer outro agente penitenciário de Wakefield, mas, dada a intensidade da situação, tenho certeza de que isso não atrapalhou a minha candidatura.
Robert Montauk foi uma escolha óbvia pra unidade de risco excepcional. Durante seu tempo em Wakefield, ele se envolveu em vários outros incidentes violentos e, embora ainda não tivesse matado ninguém dentro da prisão, os superiores consideraram que era apenas uma questão de tempo, então o mandaram pra lá. O centro de supervisão não era um lugar legal. Wakefield tinha o orçamento para torná-lo seguro, mas não para torná-lo nada mais do que totalmente utilitário. As celas individuais eram apertadas e claustrofóbicas, quase sem nenhuma abertura pra luz natural do lado de fora. Ah, eles ainda faziam exercícios, mas era em jaulas de metal. Nós os mantínhamos separados uns dos outros quase tanto quanto os mantínhamos separados do resto da prisão. Você nunca deve subestimar o quão violento e desesperado um animal preso pode ficar.
Nós éramos cruéis com eles. Eu não tenho vergonha disso. Se eu te contasse todos os crimes que aqueles monstros que mantínhamos na URE fizeram, você provavelmente vomitaria o seu almoço antes de eu chegar na metade da lista. Mantê-los abatidos era o único jeito de garantir que eles se comportariam e, além disso, é importante puni-los. Mas confesso que eu sempre tive um ponto fraco por Robert Montauk. Ele nunca nos dava problemas. Longe dos outros prisioneiros, ele parecia ser muito dócil — estranhamente dócil às vezes. Além disso, não que seja nada demais, mas ele nunca negou seus crimes. Wakefield é uma daquelas prisões onde todo mundo é inocente e fica muito chato ter que ouvir os protestos e choramingos todos os dias. Qualquer um que assumisse totalmente seus crimes sempre subia no meu conceito. Quer dizer, ainda batíamos nele de vez em quando, mas não tanto quanto nos outros. Depois de um ano ou dois eu meio que comecei a esquecer quem ele era, sabe? O misticismo de ser o serial killer mais bem sucedido da Grã-Bretanha simplesmente não se sustentava. Quando você tem alguém assim em seu poder, você esquece qualquer respeito que possa ter por eles. E ele nunca nos dava problemas.
Em 2001, ele começou a receber visitas, a maioria de sua filha. Já que ela nunca tinha o visitado antes, acho que ela tinha acabado de completar 18 anos. A gente vê muito isso. Visitas desacompanhadas não são permitidas antes da maioridade e muitos detentos têm filhos que vivem com guardiões superprotetores que se recusaram a levá-los. Então eu presumi que ela era uma dessas. As salas de visita na prisão principal são bem agradáveis — não tanto na unidade de risco excepcional. A sala escura e vazia como todas as outras era cortada o meio com uma janela reforçada. Tinha muitas lâmpadas lá, mas de alguma forma o lugar sempre parecia sombrio. Eu fiquei de vigia durante algumas de suas visitas de pai e filha. Ela falava sobre sua vida como se o pai dela não fosse um assassino, e ele mentia sobre como não era tão ruim assim na prisão — tenho certeza de que era tudo muito tocante.
Além de sua filha, ele recebeu só uma outra visita. Seis meses antes de morrer no final de março de 2002. Era um cara mais velho, acho que uns cinquenta e poucos anos, vestindo um terno preto bem costurado e uma expressão de nojo. Quando eu trouxe Montauk, a expressão dele caiu e ele ficou bem pálido. Eu já tinha ajudado colegas a dar uma surra em Robert Montauk várias vezes, mas eu nunca tinha o visto com cara de assustado. Ele se sentou em frente ao velho e eles se olharam nos olhos através do vidro grosso. Acho que o visitante parecia ser cego. Seus olhos eram nublados, mas ele não carregava nenhuma bengala ou cão-guia, e isso não parecia afetar no jeito como ele olhava pro Montauk. Nenhum dos dois disse nada.
Os segundos se transformaram em minutos e ainda assim eles não disseram uma palavra. Eles apenas ficaram sentados lá, se encarando. Dado o lugar onde trabalho, é realmente assombroso poder dizer que nunca vi duas pessoas se odiarem tanto quanto Robert Montauk e aquele velho. Depois de alguns minutos eu estava prestes a arrastá-lo pra fora, mas quando dei um passo �� frente, as luzes piscaram todas de uma vez, nos deixando no escuro. Ouvi Pete Gordo, o guarda que estava de plantão comigo, procurando a maçaneta da porta pra buscar por ajuda ou lanternas. Eu estava tenso, pronto pra lutar contra o Montauk se ele decidisse fazer qualquer movimento, mas em vez disso uma voz suave veio da escuridão. Eu não a reconheci, mas imaginei que tinha vindo do velho. Eu não acho que ele estava falando comigo.
"Você não achou que poderia matá-lo por muito tempo, né?"
Foi o que ele disse. Então Pete abriu a porta e um feixe de luz entrou pelo corredor. Eu podia mais uma vez ver Montauk e o velho sentados lá, imóveis. Não parecia que eles tinham se movido nem um centímetro. Mas quando fui levar Montauk de volta à sua cela, percebi que ele estava chorando. Não falei nada sobre isso. Vou ser sincero, eu fiquei meio assustado com tudo aquilo.
Os meses seguintes foram tranquilos. Montauk parecia ainda mais contido do que o normal e muitas vezes tinha que ser instigado a se exercitar durante o tempo estipulado. O único momento em que ele parecia normal era quando sua filha vinha visitá-lo, e talvez isso só acontecesse porque ele já tava muito acostumado a mentir pra ela. Foi nesse verão que tivemos vários problemas de encanamento na URE e a água continuava vindo imunda, então estávamos todos meio nervosos. Mas nada aconteceu de verdade até que entramos no outono em novembro.
Era 1º de novembro. Eu lembro disso porque a data foi lida várias vezes em várias disciplinas daquele dia. A pior parte é que eu nem estava fazendo nada de errado naquele dia. Eu tava trabalhando no turno da noite com o Pete e estávamos tomando café na sala de descanso. Pelo menos eu tava tomando café. O Pete tava xingando as torneiras porque o problema no encanamento que tinham nos garantido que estava resolvido, estava de volta e pior do que nunca. As torneiras expeliam um jato de água imunda e fedida.
Eu tava rindo dele enquanto tomava a minha própria bebida perfeitamente adequada quando todas as luzes se apagaram. Mas dessa vez foi mais longe do que da última. Parecia que a energia tinha acabado completamente. Ficamos lá no escuro esperando o gerador entrar em ação ou que o problema na energia fosse resolvido, mas depois de alguns minutos de silêncio e escuridão, ficou claro que isso não aconteceria tão cedo. Ao longe, podíamos ouvir os prisioneiros da unidade de risco excepcional começarem a gritar e reclamar. Suas celas estavam trancadas, é claro — uma queda de energia não podia fazer nada sobre isso. Mas ainda era o nosso trabalho manter a ordem até que as luzes voltassem. Eu esperava que os outros guardas de plantão viessem nos buscar, mas eles estavam claramente ocupados em algum outro lugar.
Chamei o Pete pra ter certeza de que ele ainda estava por perto enquanto vasculhava o armário em busca da minha lanterna. Finalmente encontrei e a acendi. O feixe de luz era tão brilhante naquela escuridão opressiva que tive que piscar pra me acostumar. Usando a luz da minha lanterna, Pete conseguiu encontrar a dele e juntos fomos para o corredor. Nós checamos cela por cela, mentindo para os prisioneiros sobre quando a energia voltaria e os mandando voltar para suas camas com ameaças de violência. Eu não vi nenhum dos outros guardas por lá e estava começando a ficar muito nervoso. Depois de verificarmos todas as celas, fomos em direção à de Robert Montauk. As luzes das lanternas se projetavam à nossa frente, mas quando caíram sobre a porta da cela dele, algo parecia errado.
Por um momento, eu não tive certeza do que estava vendo, e aí eu percebi que a porta da cela estava aberta, mas a luz da lanterna não alcançava o interior. Ela parava ao atingir o portão, uma linha clara e distinta de escuridão além da qual nada podia ser visto. De dentro veio o som úmido de algo sendo rasgado e um gemido baixo de dor. Eu queria correr, mas, em vez disso, dei um passo à frente. Minha lanterna morreu. Pete também entrou e nós ficamos lá, aterrorizados, sem conseguir ver nada. Os sons não estavam mais vindo de dentro da cela e isso não me tranquilizou tanto quanto eu queria. A mais ou menos uns 4 metros atrás de mim ouvi o Pete tropeçar, chamando meu nome. Eu estava prestes a responder e dizer pra ele ficar onde estava quando ouvi algo que me paralisou.
Pete disse "aí está você."
Ele não estava me tocando.
Quase imediatamente houve um rosnado na escuridão. Era um rugido gutural, mas ao mesmo tempo soava quase melódico. Ele gritou; eu o ouvi cair no chão.
Foi nesse momento que as luzes voltaram. Nós estávamos sozinhos. Corri de volta ao centro de supervisão pra ver se os outros guardas haviam chegado, mas não tinha mais ninguém lá. Aparentemente, deu algum problema nas portas e eles não conseguiram chegar às celas principais da URE. O Pete ainda tava no chão quando eu voltei, embora ele parecesse fisicamente ileso. Um dos outros guardas encontrou o que restava de Robert Montauk.
Eu levei a culpa por isso. Eles não tentaram fazer parecer que eu tivesse matado ele, só disseram que tinha acontecido durante o meu turno e por causa da minha negligência. Eles vinham tentando me expulsar desde que o inspetor da prisão havia denunciado o centro de supervisão por uso excessivo de força no ano anterior. Eles realmente jogaram tudo em cima de mim. "Incompetência asquerosa." É uma frase amarga pra se dizer em voz alta. O que eu podia dizer a eles? Que um monstro feito de escuridão o matou? Pete não ajudou. Ele entregou seu pedido de demissão duas horas depois que as luzes voltaram. Eu nem tive a chance de falar com ele, perguntar o que tinha acontecido; ele só foi embora.
Eu não tenho muito mais pra falar sobre isso. Foi claramente um incidente paranormal que levou ao fim da minha carreira e isso não é justo.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento.
É muito difícil de conseguir os registros prisionais dos centros de supervisão devido ao pequeno número de detentos mantidos lá. A maioria das informações poderia ser considerada localizadora, então o serviço prisional tende a se esconder atrás das leis de proteção de dados quando perguntado sobre elas.
Além disso, muitos dos registros prisionais de antes de meados dos anos 2000 ainda não foram digitalizados, dificultando as investigações no caso.
Tim chegou a um beco sem saída tentando procurar Pete Gordo, embora Sasha tenha conseguido rastrear os registros de visitantes em 2002 de toda a prisão de Wakefield. Demorou um pouco, mas consegui encontrar o que acredito ser o registro da visita do velho misterioso do Sr. Brown. O nome apresentado é Maxwell Rayner.
Martin não teve muita sorte tentando rastrear o próprio Sr. Brown. De acordo com Caroline Brodie, sua ex-esposa, ela o deixou em 2004 depois que sua demissão do serviço prisional o afundou ainda mais no alcoolismo e ele se tornou abusivo. Ela diz que recebeu uma única carta dele em 2009 pedindo a reconciliação, mas ela nunca respondeu.
Martin diz que a carta tem um carimbo de Waterford, na Irlanda, mas ele não conseguiu rastrear mais nada do Sr. Brown. Então o que é essa coisa que parece ter perseguido Robert Montauk durante grande parte de sua vida e qual é a sua conexão com o Rayner? Eles estavam a invocando? Contendo? Cultuando? Seja qual for o caso, parece que Montauk ganhou o seu ódio.
Acho que vale a pena comprar mais algumas lanternas pra deixar no Arquivo.
Fim da gravação.
ARQUIVISTA
Complemento.
Eu confrontei a Sasha sobre o museu de cera. Era estranho demais pra não mencionar. Tentei falar como se tivesse a visto acidentalmente enquanto passava pelo lugar por outros motivos. Duvido que ela tenha acreditado, mas pelo menos ela me deu uma resposta.
Ela tem um novo namorado, de acordo com ela, que trabalha lá e ela gosta de almoçar com ele. Isso é... plausível, e a esse ponto sinto que desafiá-la a apresentar o tal namorado poderia prejudicar a confiança que ainda resta entre nós.
Não tive sorte com nenhuma das minhas outras pistas até agora, mas pelo menos eu tenho mais uma fita da Gertrude. Elas são sempre um tiro no escuro, mas espero que essa tenha informações. Eu sei que o segredo da morte dela tá em alguma dessas, tem que estar.
Eu só... Espero não ter que ouvi-la em primeira mão. Fim do complemento.
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MAG051 — Alta Pressão
Caso #0080701: Depoimento de Antonia Haley a respeito de um mergulho profundo que realizou perto da Ilha Sable, na Nova Escócia, em agosto de 2006.
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Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Depoimento de Antonia Haley a respeito de um mergulho profundo que ocorreu perto da Ilha Sable, na Nova Escócia, em agosto de 2006. Depoimento original prestado em 7 de janeiro de 2008. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento.
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Eu deveria mesmo estar morta. É uma sensação estranha. Você já teve uma experiência de quase morte? Eu já tive algumas. Não é incomum no meu trabalho, mas isso... pareceu diferente. Não é que eu tenha me colocado em perigo e tenha conseguido não morrer — eu deveria estar morta. Uma doença descompressiva tão grave como aquela quase nunca é sobrevivível e eu deveria ter tido uma embolia. O fato de que eu não tive? Pura sorte. É difícil aceitar o fato de ter evitado uma morte que você sente que deveria ter sido sua. Se houvesse outros comigo que não tivessem sobrevivido eu poderia considerar isso como síndrome do sobrevivente, mas... Eu tava sozinha.
Você tem noção isso? Claro que não, desculpa.
Enfim, eu não tô aqui pra falar sobre os resultados. Sou mergulhadora, tanto por natureza como por profissão. Eu cresci em Halifax, na Nova Escócia, e comecei a nadar quase antes de começar a andar. Eu dei o meu primeiro mergulho aos oito anos de idade. Foi só um pouco mais fundo do que uma piscina, mas foi o suficiente pra instigar uma paixão pra vida toda. Eu me qualifiquei totalmente assim que pude e quase fui reprovada na faculdade porque eu tava sempre fugindo pra dar um mergulho aqui e ali. Devo ter faltado em mais aulas do que fui, no final das contas. Eu passei raspando, mas, no fim, mesmo que eu não tivesse não teria importado muito, já que não foi minha especialização em psicologia que me arrumou meu primeiro emprego depois da formatura. Foi o mergulho.
Trabalhei numa empresa de salvamento marítimo na costa da Nova Escócia. Desculpa por não te falar o nome deles — eu ainda tenho esperança de voltar a trabalhar lá algum dia, e eu me sentiria uma idiota arrastando o nome deles na lama, mesmo que seja só pra vocês e seus “procedimentos rígidos de confidencialidade”. Se você estiver muito interessado, eles não devem ser difíceis de identificar, mas isso não é muito relevante pro que aconteceu.
Você já ouviu falar do “Cemitério do Atlântico”? Provavelmente não, e é um nome confuso mesmo, já que na verdade se refere a dois locais distintos ao longo da costa leste da América do Norte, ambos pontos notórios por naufrágios. Neste caso, estou falando da Ilha Sable, na Nova Escócia. As águas lá são muito agitadas, onde a Corrente do Golfo atinge a Corrente do Labrador e, dependendo dos registros históricos em que você acredita, pode haver de quatrocentos a seiscentos navios naufragados lá embaixo. E isso é só a partir de quando os colonos europeus chegaram pela primeira vez.
Normalmente não é o tipo de lugar onde nós aceitaríamos trabalhos. É muito perigoso enviar uma equipe de resgate quando a água é tão imprevisível. Mas dessa vez foi diferente. Talvez o velho só tivesse uma fala mansa — ou talvez ele tenha encurralado demais o capitão, um velho grosseiro chamado Morten Kemp, ao ponto de ele falsificar a localização nos formulários de liberação. De qualquer forma, chegou a notícia de que faríamos um mergulho na Ilha Sable.
Nada disso quer dizer que o capitão era ingênuo. Ficamos de olho nos boletins meteorológicos e só entramos no cemitério quando tivemos certeza de que teríamos uma brecha de mar relativamente calmo pra fazer isso. Ajudou que o trabalho era mais ou menos simples. O velho, Simon Fairchild, tinha nos procurado alegando que havia identificado o local onde ele acreditava que o iate à vela de seu bisavô tinha afundado quase cento e vinte anos atrás, e estava ansioso para recuperar quaisquer relíquias ou curiosidades que ele pudesse ter. A única coisa interessante ou incomum sobre sua história era a quantidade de dinheiro que ele estava disposto a gastar pra sustentá-la. Certamente foi o suficiente pra nos fazer ancorar a cem milhas da costa em uma manhã quente e ensolarada no final de agosto.
A viagem até lá tinha sido um tanto silenciosa. Normalmente eu e Julio Hernandez, o outro mergulhador da equipe, passávamos nosso tempo conversando, jogando cartas ou até mesmo transando, mas geralmente a gente não fala sobre isso. Dessa vez tivemos que tomar conta do Sr. Fairchild, que teimosamente insistiu em fazer a viagem com a gente.
De novo, isso normalmente não teria sido uma opção, mas o cara não tinha vergonha de jogar dinheiro por aí. Ele devia ter quase uns cem anos de idade, quase um esqueleto cor-de-rosa de um homem, sentado em um canto nos observando durante toda a viagem. Era difícil ter qualquer tipo de conversa amigável com ele empoleirado lá parecendo um abutre. Tentei falar com ele algumas vezes, mas ele só parecia estar interessado em falar sobre esse naufrágio e quão preservado eu achava que tudo poderia estar. Eu disse a ele que não fazia ideia porque aquilo realmente não era minha área — eu era só a mergulhadora. Ele não falou muito comigo depois disso.
Quando chegamos ao cemitério, o mar estava quase completamente parado, muito mais do que eu esperava, mesmo considerando as previsões meteorológicas que havíamos verificado. Não me pareceu estranho na hora, só uma ajuda um pouco inesperada no trabalho. As verificações iniciais conseguiram localizar um naufrágio que parecia corresponder à descrição do velho: um iate a vapor de mais ou menos 1890. Parecia estar surpreendentemente em bom estado e, à luz da lanterna da câmera, quase conseguimos distinguir o nome: o Maria Fairchild. O velho tava praticamente dançando de alegria e eu tava genuinamente preocupada de que ele pudesse ter um ataque cardíaco.
Nós nos equipamos e nos preparamos pra descer. O naufrágio estava a uma profundidade de 48 metros, o que significava que estaríamos em um ambiente de alta pressão, mas não deveríamos precisar de gás hipóxico ou de trajes pressurizados, o que era um alívio. Julio fez suas orações, o capitão Kemp nos deu um aceno rigoroso e nós entramos na água.
Enquanto entrava, pensei ter ouvido Simon, o velho, gritar atrás de mim, mas não consegui entender.
E aí o mundo não era nada além do azul silencioso. Eu esperava que a água estivesse mais quente, levando em conta a temperatura na superfície, mas o frio me atingiu de uma só vez e levei um momento pra me acostumar com ele. Vi Julio ao meu lado, a poucos metros de distância, e com o polegar pra cima começamos a mergulhar em direção ao barco afundado.
A maioria das pessoas não gosta do quão rápido começa a ficar escuro debaixo d 'água. Você não precisa estar tão fundo quanto pensa para que o sol seja só uma leve mudança nos tons da água. Se você não tiver cuidado, é fácil esquecer qual é o caminho pra cima e se perder nas profundezas escuras. Mas Julio e eu éramos uma equipe bem treinada e não desceríamos tão fundo ao ponto de enfrentar qualquer escuridão que nossas lanternas não pudessem dar conta.
Foi durante essa descida, quando vi que nossos dois pontos de luz eram os únicos sinais de movimento lá embaixo, que percebi a ausência de vida. Eu não tava particularmente preocupada com isso — no máximo, fiquei bem aliviada. Qualquer um que tenha mergulhado por alguns anos vai poder te contar sobre pelo menos um encontro com um tubarão, e eu tive dois até agora, então, pra mim, quanto menos movimento melhor. Ainda assim, foi uma surpresa que não tenhamos visto um único cardume de peixes em nossa jornada pro fundo do mar, e quando chegamos lá embaixo não havia sinal de vida. Eu gesticulei minha confusão para Julio, mas ele apenas deu de ombros e voltou a nadar em direção ao naufrágio.
Lá embaixo, bem abaixo da superfície, às vezes me pego entrando em um estado quase meditativo. Você pode sentir o peso do mundo, um mundo do qual você nunca deveria fazer parte, pressionando você de todas as direções; e a consciência constante e avassaladora de sua própria respiração, de quão pouco existe entre você e o próprio espaço ao seu redor que é completamente hostil à sua existência. O perigo é real, assim como o medo tênue e calejado nas suas entranhas, mas eu sempre percebo que às vezes isso me deixa num estado não muito diferente de como é olhar para as chamas de um incêndio — hipnotizada. Minha mente se livrava de todos os pensamentos, exceto pela onda pulsante e entorpecente de adrenalina.
Essa sensação tava tão forte ali que eu quase passei completamente reto pelo Maria Fairchild. Julio já estava lá dentro, e eu logo localizei um rasgo grande o suficiente no casco pra entrar. O iate era maior do que eu pensei quando o vi pela câmera, mas a configuração dele não era complicada e já tínhamos uma boa ideia de onde seria melhor procurar o tipo de antiguidades e tesouros sentimentais que o Simon queria. Julio tinha ido pro quarto, então eu comecei pela ponte de comando.
Com certeza era uma visão impressionante — um iate à vapor do final do século XIX, ligeiramente deteriorado pelo tempo no fundo do oceano, mas, mesmo assim, surpreendentemente bem preservado. Examinei a cadeira e os vários painéis e controles, mas não consegui encontrar nada que pudesse ser classificado como uma relíquia de família facilmente removível, embora tenha feito uma anotação mental de quais pedaços do painel estavam bem preservados e valeriam a pena ser removidos. Precisaria de mais equipamento do que tínhamos conosco, mas eu poderia sugerir ao Simon se voltássemos de mãos vazias.
Eu verifiquei com o Julio, mas ele ainda estava ocupado saqueando o quarto, então eu decidi fazer uma varredura na sala de máquinas. Foi lá que eu encontrei o buraco.
Era grande, tinha talvez dois metros de diâmetro, não muito diferente daquele que eu havia usado pra entrar no naufrágio no começo. Tinha alguma coisa sobre ele que imediatamente me deixou nervosa. A forma era muito regular, a água lá fora era... muito escura. E levei alguns segundos pra perceber isso, mas a direção do rasgo parecia indicar que o buraco havia sido feito de dentro pra fora.
Larguei a chave enferrujada que estava examinando e a deixei flutuar lentamente pro chão enquanto eu nadava em direção ao buraco. Agarrei a borda e olhei através dele.
Assim que coloquei minha cabeça pra fora senti uma mudança tomar conta de mim. A pressão aumentou de uma só vez tornando-se tão intensa que gritei de surpresa e dor, enquanto minha cabeça explodia em agonia. Agora a pressão estava sobre todo o meu corpo, e era difícil me mover com o peso esmagador em cada parte de mim. Meus olhos se arregalaram enquanto eu olhava para frente, e eu vi duas coisas.
A primeira era que abaixo do buraco não havia fundo do mar, apenas uma extensão profunda e interminável de água vazia, como se o barco estivesse na borda de um penhasco.
A segunda era que estava muito, muito escuro. O mais profundo que os seres humanos podem sobreviver no oceano é a zona mesopelágica que começa a cerca de 200 metros abaixo da superfície. É coloquialmente conhecido entre os oceanógrafos como a Zona Crepuscular, pois é o nível onde apenas a mais fraca luz do sol penetra e a água só pode ser vista em muitos tons de escuridão. Estando tão fundo assim, qualquer brilho que chegue até lá é tão difuso que é totalmente inútil pra determinar qual é o caminho pra cima. Mas enquanto eu olhava pra fora aterrorizada, eu tinha certeza absoluta de que não existia um "pra cima". Que eu poderia nadar até onde eu quisesse — nunca haveria nada além de água.
Foi aí que eu vi.
Era só uma sombra no escuro, mas tava lá. E era enorme. Ela se estendia de um lado da minha visão até o outro, e enquanto eu lutava contra a pressão pra virar minha cabeça dolorida, eu ainda não conseguia ver o fim dela. Só o contorno borrado era visível e contrastava ligeiramente melhor com o tom mais claro da água crepuscular que a cercava.
Eu não conseguia ver as extremidades dela. Era tão grande que eu me sentia tonta só de pensar — de tentar me visualizar em alguma escala plausível ao lado daquilo.
Eu acho que era uma mão, mas eu não conseguia enxergar o suficiente pra ter certeza. Então ela se moveu, lenta, mas nitidamente, e eu percebi o quão longe ela ainda estava enquanto ela ficava maior e maior e maior e eu não podia ver mais nada, e eu gritei.
Foi o metal irregular do próprio buraco que me salvou no final. Enquanto gritava de pavor senti as bordas afiadas dele cravando em minhas mãos enquanto eu o agarrava, e a explosão inesperada de dor me tirou do que quer que fosse aquilo que me mantinha no lugar. Com uma onda de força, me empurrei de volta para o barco e senti a pressão subir de uma só vez.
Claro, isso trouxe vários outros problemas, mas eu não tava nem aí. A tontura já tava se instalando e minha visão tava embaçada quando saí do navio afundado e nadei para a superfície a toda velocidade, ignorando todos os procedimentos de descompressão. Eu apaguei a dez metros da superfície.
Tenho vagas lembranças da viagem de volta: recobrando e perdendo a consciência, sentindo o pior que já senti na minha vida. Então me lembro de um helicóptero, gritaria e finalmente acordar totalmente em uma cama de hospital. O capitão Kemp tava lá e imediatamente brigou comigo, me chamando de todos os tipos de palavrões possíveis antes de me informar exatamente o quão séria era a minha condição e quão sortuda eu era por estar viva. Ele me disse que eu deveria estar morta. E eu sei que ele tava certo.
Saí da empresa logo depois. Eu ainda pretendo voltar algum dia, mas vai demorar um pouco até que eu me sinta confortável na água de novo.
O Julio nunca veio me visitar no hospital e eu não consegui entrar em contato com ele depois que recebi alta. Espero que ele esteja bem.
Perguntei ao capitão Kemp o que aconteceu com o trabalho depois que eu saí, já que também não vi mais o velho desde aquela manhã. O capitão ficou com uma expressão estranha e olhou pela janela com uma carranca que eu nunca tinha visto em seu rosto antes.
"O mar é um lugar perigoso", ele disse e se afastou.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento.
Nenhum acompanhamento real pode ser feito pra esse depoimento, como tudo aconteceu em território canadense. Não temos os contatos que temos aqui por lá. Sem contar que o pouco que eu consegui encontrar parece ser um monte de relatórios sobrepostos e conflitantes da polícia, da guarda costeira e da autoridade portuária. Poderíamos passar anos tentando desvendar esse caso, se tivéssemos cabeça pra isso — e eu, pelo menos, não tenho.
Não conseguimos sequer coletar informações suficientes pra rastrear qualquer uma das pessoas mencionadas no depoimento além do capitão Morten Kemp, que agora dirige passeios de barco perto de Winnipeg e se recusou a comentar sobre o caso nos termos mais fortes possíveis.
Em vez disso vou me concentrar em Simon Fairchild, que eu me lembro de ter aparecido no caso 0022010, junto com uma mulher mais jovem. Eu posso ter encontrado Fairchild antes, ou pode ser só uma coincidência de nomes. Um dos meus primeiros casos como pesquisador do Instituto, em 2012, foi investigar a história de um joalheiro em Hackney que havia relatado vitrines sendo quebradas durante a noite. Nada nunca era levado, mas todas as manhãs era como se algo pesado tivesse caído sobre elas. Ao investigar, descobriu-se que as joias haviam pertencido, na década de 1930, a um vigarista e receptador que havia atraído o descontentamento da população local. Quando um cliente particularmente irritado o empurrou de uma janela do quarto andar em uma rua movimentada ao meio-dia, ninguém alegou ter visto nada.
Uma possível mini assombração com uma história decididamente trivial, mas notável porque, apesar de eu nunca ter conseguido descobrir o nome original do vigarista, um de seus muitos pseudônimos era Simon Fairchild, que aparecia em várias listagens de negócios da época.
Porém, se isso é uma coincidência ou não é discutível a esse ponto. Uma pesquisa superficial revelou que os Fairchilds em questão são uma família excepcionalmente rica com sede na Cornualha. Nenhum comércio real pra relatar, mas parece que eles investiram muito sabiamente em tecnologia aeroespacial, logística de transporte e perfuração e construção submarina.
Seja lá qual for a origem, acho que vale a pena ficar de olho neles.
Fim da gravação.
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ARQUIVISTA
Complemento.
Tive uma conversa estranha com a Sasha hoje cedo. Eu tenho feito algumas pesquisas sobre ela, mas não encontrei muita coisa, exceto que ela trabalhou no Armazém de Artefatos.
Decidi fazer uma visita rápida lá pra me familiarizar com as novas aquisições. Não tenho muito pra relatar, na verdade: um novo guarda-roupa de carvalho que a luz é aparentemente incapaz de penetrar; um olho de pedra esculpido que eles guardam em uma bolsa de veludo preto — aparentemente interfere nas câmeras de vídeo de algum jeito — e um bisturi de aparência bem desagradável que supostamente está repleto de doenças, não importa o que eles usem pra esterilizar ou desinfetar. Esse é guardado numa caixa de plástico hermeticamente fechada.
Eu esbarrei na Sasha encarando aquela maldita mesa de novo. Por sorte eu consegui levar meu gravador e consegui ligá-lo sem que ela percebesse.
Essa foi a gravação.
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Arquivista: É… fascinante, não é? No sentido literal, quero dizer.
Sasha: Sim. Às vezes eu não consigo me afastar dela.
Arquivista: Dados os acontecimentos recentes, eu... Tô tentando descobrir se é um fractal.
Sasha: Não… não, não é — eu sempre enxerguei mais como uma teia?
Arquivista: Eu acho que ela nos pegou de algum jeito.
Sasha: Acho que não somos os primeiros a ser pegos.
Arquivista: Não?
Sasha: Acho que pegou o Graham também.
Arquivista: Eu pensei que tivesse sido... Eu... O que quer que fosse aquilo que rastejou pela janela dele. A menos que você ache que eles estejam ligados de alguma forma?
Sasha: Eu duvido. Aquilo não parecia o tipo de coisa que gostaria de estar ligada a um objeto.
Arquivista: Acho que não. E a gente não viu nenhum perseguidor de braços longos, então... vamos nos concentrar na mesa.
Sasha: Concordo. Agora, se você me der licença...
Arquivista: Claro.
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ARQUIVISTA
Estranho, mas não alarmante, embora eu ache que posso discutir restringir o acesso dela à mesa com o Elias.
Ah, e eu descobri pra onde ela vai quando ela faz intervalos de almoço super longos. Parece bem inofensivo, mas admito que fiquei um pouco surpreso. A cada poucos dias ela viaja até a Baker Street pra passar de dez minutos a uma hora inteira no Museu de Cera Madame Tussaud.
Fim do complemento.
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MAG050 — Alicerces
Caso #8141206: Depoimento de Sampson Kempthorne a respeito da arquitetura da casa de trabalho de George Gilbert Scott.
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Aviso de conteúdo: claustrofobia
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Depoimento de Sampson Kempthorne a respeito da arquitetura da casa de trabalho de George Gilbert Scott. Depoimento original prestado em 12 de junho de 1841. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento.
ARQUIVISTA
Caro Jonah,
É meu maior desejo que esta mensagem o encontre com boa saúde, pois ouvi mais de um conhecido em comum comentar sobre seu atual estado de excesso de trabalho. Enquanto eu sinceramente espero que seja apenas fofoca banal, meu conhecimento de seu caráter me leva a suplicar que você se permita algum descanso ou, pelo menos, contrate mais funcionários de secretariado. Certos bairros pouco caridosos diriam que sua vida consiste em nada além de andar de um lado para o outro em uma casa em Edimburgo, cercado por pilhas de histórias fantasmagóricas e depoimentos de lunáticos. Pilhas, receio dizer, às quais estou prestes a fazer uma adição.
Eu sugeriria que você viesse visitar a mim e Marianne como uma distração, mas se você quisesse fazer isso, você precisaria viajar rapidamente. Veja bem, estamos prestes a partir para a Nova Zelândia para começar uma nova vida lá, longe de Londres e de suas casas de trabalho. E é essa partida iminente que teve um efeito tão libertador sobre a minha caneta. Pois vi coisas que sinto que merecem um lugar em seu manicômio de cartas.
Essas coisas consideram as obras de meu ex-assistente, George Gilbert Scott, cuja própria prática arquitetônica é agora muito respeitada. Fiquei com medo de que as acusações de calúnia pudessem me perseguir se minha história fosse contada, mas com um barco para o novo mundo me esperando e sua excelente reputação de discrição, sinto que pode finalmente ser hora de me livrar das cenas inquietantes que testemunhei.
George veio até mim em 1834, partindo de seu compromisso com o escritório de Henry Roberts, onde estava concluindo seu treinamento. Eu tenho o maior respeito pelo próprio Henry, pois ele treinou com Sir Robert Smirke, que havia recebido seu título de cavaleiro nem dois anos antes. Henry era muito efusivo sobre os talentos e perspectivas do jovem Sr. Scott, e se esforçou ao máximo para me informar que seu jovem protegido também recebeu certas tutelas arquitetônicas do próprio Sir Robert.
Ele disse isso com o mais estranho dos olhares, como se houvesse algum segredo divertido entre nós. Eu apenas acenei com a cabeça, como se dissesse que entendi o que ele quis dizer, e ele saiu em paz. Ele até me mostrou o trabalho de George na elaboração de seus planos para o edifício Fishmonger's Hall perto da London Bridge, que foi inaugurado com grande aclamação. Certamente parecia claro para mim que ele seria um bom assistente, pelo menos durante o tempo que eu fosse capaz de mantê-lo.
E assim começamos nossa breve colaboração, cujo tema era a casa de trabalho, um tópico — como tenho certeza de que você deve se lembrar — muito querido para mim. A situação dos pobres e destituídos tem sido uma desgraça nacional por muito tempo, e quando recebi a tarefa de projetar as casas de trabalho pelos Comissários da Lei da Pobreza, foi um empreendimento no qual embarquei com grande zelo.
Meus projetos originais tinham a intenção de ajudar na fácil segregação dos residentes por sexo, idade ou enfermidade, pensando em capacidade e utilidade acima de tudo. Eu sei que muitos olham para a casa de trabalho com desdém, a chamam de “Bastilha do Mendigo” e veem muito pouca distinção entre ela e uma prisão, mas essa é uma visão profundamente míope. A prisão mantém sua população para a segurança e desenvolvimento da sociedade em geral, enquanto a casa de trabalho existe para o desenvolvimento dos próprios residentes. Criticar as condições como duras é ignorar o imperativo moral básico do próprio trabalho, e acredito firmemente que descartar o punitivo como uma forma válida de desenvolvimento moral é consignar muitas pobres almas à perdição... mas estou divagando, Jonah. Estou tão acostumado a escrever defendendo os meus projetos que parece ser difícil escrever qualquer outra coisa.
Foi em sua ajuda com esses projetos que George começou a mostrar aquelas peculiaridades de caráter com as quais eu ficaria tão pouco à vontade. Seu processo de reformulação era... profundamente perturbador. Ele passava horas no escritório simplesmente olhando para os desenhos sem dizer nada, sem comer ou beber, ignorando qualquer pergunta ou interrupção. Então, em um único movimento, ele reunia todos os papéis e se retirava para seu escritório privado, trancando a porta atrás dele.
Então, do outro lado daquela firme porta de carvalho, eu ouvia os sons mais estranhos, murmúrios e gritos. Era sempre apenas a voz de George, eu nunca conseguia discernir as palavras. Muitas vezes parecia que ele estava em grande aflição, e em mais de uma ocasião eu estava a poucos minutos de chamar a polícia para ajudar a arrombar a porta quando ele aparecia, suando pelo esforço e segurando desenhos completamente refeitos. Tenho certeza de que vi sangue no colarinho dele uma vez.
Os desenhos em si eram um pouco melhores. Ele pegava a funcionalidade sólida de meus planos originais e os refazia em todos os tipos de simetrias estranhas que, embora arquitetonicamente intrigantes, geralmente sacrificavam muitas considerações práticas. Ele também, sem falta, desenhava tudo mais próximo. As passagens eram estreitadas e os dormitórios encolhiam até que um prédio projetado para abrigar 300 residentes fosse refeito para abrigar quase o dobro desse número.
Como mencionei antes, não tenho objeções às duras condições dentro da casa de trabalho para dissuadir os inúteis de residi-la, mas os planos limitados que George me apresentava beiravam o claustrofóbico, e geralmente eu não conseguia utilizá-los.
Cada vez que eu dizia isso a ele, seu rosto se contraía em uma raiva momentânea e seus lábios ficavam pálidos. Então eu observava enquanto ele pegava aquela raiva e a descartava, tornando-se novamente o jovem genial, embora um tanto sério, que eu havia conhecido. Era uma cena estranha.
Quando seu pai morreu em 1834, não foi nenhuma grande surpresa para mim que ele tenha decidido renunciar o trabalho. Ele me disse que considerava necessário se tornar o provedor de sua família, embora eu tenha minhas suspeitas de que ele também estava ansioso para não ter mais seus projetos rejeitados por mim. Desejei-lhe boa sorte, claro, mas para ser sincero, não posso dizer que não fiquei um pouco aliviado com sua partida.
Foi pouco depois disso que recebi um convite para uma pequena reunião social organizada por Henry Roberts. Foi lá que conheci Sir Robert Smirke. Ele era um homem alto com traços afiados, quase melancólicos, e olhos que pareciam te enxergar como um amontoado de proporções e quilos de matéria-prima. Ele era educado e sociável, mas achei difícil ter uma conversa longa com ele, pois ele parecia estar sempre mais à frente na conversa do que eu. Eu nunca conseguiria dizer com certeza se ele estava entediado ou não.
Quando percebi que George não estava presente e não havia sinal de que chegaria logo, resolvi levantar com Sir Robert a questão sobre o que exatamente seu treinamento envolvia. À menção do nome “George Gilbert Scott”, o rosto de Sir Robert ficou subitamente vermelho de raiva de uma maneira não muito diferente da de seu protegido.
Ele me perguntou qual era o meu interesse no Sr. Scott, e eu respondi que ele tinha, até recentemente, sido contratado como meu assistente. Com isso, Robert deu uma risadinha de satisfação e me disse que eu não sabia o quão sortudo eu tinha sido por ter escapado. Perguntei novamente o que exatamente seu treinamento envolvia, e Sir Robert me encarou por um minuto em silêncio antes de finalmente acenar com a cabeça.
"Estabilidade", ele disse. "Equilíbrio. A coisa mais difícil para um arquiteto alcançar. A simetria é fácil, mas não resulta, por si só, em equilíbrio. Agitar os sentimentos do homem, criar um pequeno lugar separado do resto do mundo mantendo esse equilíbrio é o verdadeiro objetivo do arquiteto."
Eu nunca tinha ouvido falar sobre a minha profissão com tanta convicção e paixão antes, e não vou mentir para você, Jonah: o olhar em seu rosto enquanto ele falava me assustou.
Sem ser solicitado, seu discurso continuou e ele começou a falar sobre George, sobre atalhos e simetria, e um patrono que o jovem tolo não compreendia.
Eu conseguia acompanhar muito pouco do que ele dizia, e parecia estar decididamente distante de qualquer coisa que eu considerasse arquitetura, mas seja lá o que Sir Robert tivesse ensinado a George, parecia que as lições haviam sido usadas de maneira menos nobre do que ele pretendia.
Foi nesse ponto que Henry notou a agitação de Sir Robert do outro lado da sala e aproximou-se para acompanhá-lo gentilmente até a sala de fumo. Ele me lançou um olhar de leve reprovação enquanto conduzia seu mentor para longe e eu fiquei ali, parado no meio da sala, totalmente confuso e um tanto abalado.
Resolvi evitar, sempre que possível, ter qualquer relação com George e continuei com meus próprios trabalhos. Ouvi dizer que ele havia se estabelecido com a construção de casas de trabalho baseadas em seus próprios projetos. Ele havia contratado um sócio chamado William Bonython Moffatt, filho de um construtor que não tinha moral para recomendá-lo de qualquer maneira. Eles procuraram vigorosamente vários donos de distritos e conseguiram adquirir várias comissões que antes eram minhas.
Não preciso dizer que fiquei bastante surpreso com essa total falta de etiqueta profissional. Mas eu não estava sem outros projetos, então me esforcei para ignorá-lo e deixá-lo fazer qualquer internação miserável que ele se propusesse a construir.
Foi em setembro de 36 que aconteceu, pouco depois de George e Moffat finalmente abrirem a primeira de suas casas de trabalho. Eu não percebi que isso tinha ocorrido até algum tempo depois, atolado como eu estava no meu próprio trabalho.
A escuridão havia caído e eu ainda estava ocupado, iluminado pelo brilho reconfortante de uma dúzia de velas. Não havia relógio na oficina — uma escolha deliberada para impedir que o correr da hora me perturbasse —, mas suspeito que já passava da meia-noite quando eu ouvi.
Passos. Passos pesados e surdos e o clique-claque de uma bengala robusta. Meus assistentes haviam trancado todas as portas quando saíram naquela noite e, no silêncio do meu escritório, não pude deixar de ouvir o som delas se abrindo novamente. Até o dia da minha morte, Jonah, vou afirmar que ninguém entrou no prédio antes que eu ouvisse os passos se aproximando.
À medida que seus passos pesados se aproximavam e o estalido daquela bengala batia mais alto com uma malícia silenciosa, ouvi outro som abaixo disso: o tilintar de chaves.
Nunca em toda a minha vida fui possuído por tanto medo como naquele momento. As paredes e o chão pareciam se fechar a minha volta, roubando o ar dos meus pulmões até eu jurar que podia sentir as lascas do teto cravando na pele macia do meu rosto. Eu não conseguia me mover quando o barulho da bota parou do lado de fora da porta e a bengala descansou com um estalo final.
Eu esperei. Eu esperei para ter os últimos vestígios de vida arrancados de mim pelo que quer que aquilo fosse. Não sei quanto tempo se passou. E então, como se de repente retirasse um casaco pesado, o peso caiu de minhas costas. A sala voltou às suas proporções naturais, ou seja... ela nunca mudou de verdade. Eu acho. É difícil descrever exatamente, Jonah, então perdoe meus devaneios.
Levantei-me e, em um momento de bravura imprudente que duvido algum dia entender, peguei uma vela e corri para a porta, escancarando-a. Eu vi uma figura se afastando através da porta de um dos escritórios dos funcionários. Era baixo e largo e eu pude ver a madeira do assoalho curvar-se sob suas enormes botas. Ele usava um chapéu preto alto e apenas as mechas mais finas de cabelo grisalho eram visíveis debaixo dele. Em sua mão áspera e avermelhada, segurava uma bengala preta muito gasta com uma ponta de ferro.
Então a porta se fechou atrás dele e ele sumiu. Eu fui para a sala atrás dele, mas ela estava vazia. Não havia sinal do homem, ou o que quer que fosse aquilo, que havia entrado antes de mim. A janela estava fechada e não havia lugar algum para alguém daquele tamanho se esconder. Ainda assim, eu o procurei. Eu não sabia mais o que fazer. Até mesmo as pegadas pesadas pareciam ter desaparecido.
O que eu consegui encontrar, no entanto, caído atrás de uma das escrivaninhas, foi um dos projetos de casa de trabalho de George Gilbert Scott. Não há, é claro, como ter certeza de qualquer conexão entre os dois eventos, mas isso pouco fez para acalmar a raiva escaldante em meu peito quando saí de casa na manhã seguinte. Peguei um táxi até o escritório de George, onde fui informado de que ele estava em seu local de trabalho com Moffat, e peguei outro táxi.
Quando encontrei o local parecia estar havendo alguma confusão — meu ex-assistente de pé ao lado de um muro de pedra alto discutindo com um operário que parecia bastante perturbado. Ele gesticulava descontroladamente para uma área da parede enquanto outro homem, que eu assumia ser Moffat, tentava acalmá-lo.
Quando me aproximei, comecei a entender o que o operário estava dizendo. Ele estava perguntando de alguém a quem ele se referia como “o governador”. Enquanto Moffat tentava muito pacientemente explicar que nenhum governador havia sido nomeado para a casa de trabalho ainda, o operário não parecia estar prestando muita atenção a isso. No entanto, ele continuava repetindo que o governador havia vindo procurar o Harry. Ele não disse quem era Harry, mas presumo que seja um conhecido dele.
Ele disse que sabia que era o governador por causa do tilintar de suas chaves. Ele disse que o governador tinha chamado o Harry de "inútil". Foi nesse momento que eu finalmente fiquei perto o suficiente para ver o muro para o qual ele apontava com tanta emoção. No começo, pensei que eram minhocas, pequenas e pálidas contra a alvenaria. Mas quando cheguei mais perto, eu pude ver claramente. Estendendo-se da pedra sólida imaculada da parede da casa de trabalho havia quatro dedos.
O operário repetiu: o governador tinha chamado o Harry de “inútil”.
Devolvi os documentos de George e fui embora.
Espero que você entenda agora, Jonah, por que tenho evitado a companhia de meus companheiros nos últimos anos. Eu sempre fiquei relutante em fazer qualquer registro da minha história, mas agora que finalmente tenho tudo preparado para a minha mudança para a Nova Zelândia, eu sentiria que estaria desprezando você se eu fosse embora sem compartilhar minha história. Faça com ela o que quiser — estou cansado dela.
Atenciosamente,
Sampson Kempthorne.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento.
Obviamente, tentar rastrear desaparecimentos e mortes em casas de trabalho vitorianas é um exercício inútil, então não quero nem tentar.
Mais importante, quem é Robert Smirke? Li todos os livros que pude encontrar sobre o homem, que são, definitivamente, bem poucos, e nenhum deles mostra qualquer sinal desse outro lado dele, que aparentemente está no coração da arquitetura de edifícios estranhos por toda Londres.
E agora o quê? Estudantes? Aprendizes? Se Henry Roberts era um estudante de algum tipo de método de construção paranormal, ele não parece aparecer em nenhum de seus edifícios — exceto talvez pelo Fishmongers' Hall, que ele projetou junto com Sir George Gilbert Scott para a Worshipful Company of Fishmongers em 1834. É supostamente um foco de assombrações mais discretas, mas nada da magnitude do que ouvimos de outras pessoas.
O Scott é preocupante, no entanto. Enquanto Smirke parece ter construído um punhado de edifícios notáveis em torno de Londres, Sir George Gilbert Scott é responsável por monumentos como a Estação Saint Pancras, o Albert Memorial e a restauração da Abadia de Westminster. Se seus edifícios têm peculiaridades semelhantes, então... pra ser sincero, eu não sei o que isso significaria. Mas duvido que seja bom.
Dito isso, não houve relatos de qualquer tipo de perturbação paranormal ou sobrenatural em qualquer edifício ainda em pé projetado pelo Scott. Isso deveria me fazer sentir melhor, mas de alguma forma não faz.
Fim da gravação.
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Arquivista: Como é?
Tim: Você tá com algum problema?
Arquivista: Não entendi direito o que você quer dizer.
Tim: Bom, tinha uma policial perguntando por você. Sabe, aquela que veio investigar a Gertrude.
Arquivista: Basira. Onde ela... quando foi isso?
Tim: Hã, ontem. Você tava na fisioterapia.
Arquivista: Ela disse por quê?
Tim: Não. Foi meio estranho, na verdade. Já a vi por aqui algumas vezes antes, aliás. Eu, hã... Eu não confio nela.
Arquivista: Desculpa, o quê?
Tim: Bom, eu perguntei se ela tinha algo novo pra relatar sobre a Gertrude e ela só disse que não e aí resmungou e perguntou quando você voltaria, aí ela foi embora. Foi estranho. Ela é estranha.
Arquivista: Você não tem problema com a polícia não, né, Tim?
Tim: Bom, você sabe que eu sou o melhor ladrão de gatos de Bromley.
Arquivista: Tim.
Tim: Ok, sério, eu não entendo por que ela fica vindo aqui sem ser pela investigação.
Arquivista: Ela tá... Eu tô... Tô ajudando ela com algumas investigações. No off.
Tim: Ah. Ahh. Não precisa dizer mais nada.
Arquivista: Tim, o que você...
Tim: Não se preocupa, tá tudo bem. Bom trabalho, chefe!
Arquivista: Ah, não, Tim, não é isso que eu... não é bem assim...
Tim:  Eu vou ver se descubro mais alguma coisa sobre o Scott e te aviso se ela voltar.
Arquivista: Isso realmente não é o que...
Fim do complemento.
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Text
MAG049 — A Janela do Açougueiro
Caso #0081103: Depoimento de Gregory Pryor a respeito de suas investigações sobre um tal de Hector Laredo durante o verão de 2007.
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Aviso de conteúdo: horror corporal, tortura, drogas
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Depoimento de Gregory Pryor a respeito de suas investigações sobre um tal de Hector Laredo durante o verão de 2007. Depoimento original prestado em 11 de março de 2008. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento.
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Você não se importa que eu beba aqui, né? Não, claro que não. Aposto que metade dos caras que entram aqui derramam uísque em toda a sua papelada preciosa. Eu tô sóbrio o suficiente pra escrever — por enquanto, pelo menos — e isso é tudo o que importa pra você, não é?
Eu sou detetive particular. Costumava ser policial, mas não mais. O motivo não é da sua conta — você pode tirar suas próprias conclusões, se quiser, mas não é algo que eu queira falar sobre.
Enfim, no último mês de junho eu consegui um trabalho com uma tal de Nicola Laredo. Ela era esposa de um canalha chamado Hector Laredo e estava ansiosa pra mudar isso pra "ex-esposa" — exceto que havia algum tipo de acordo pré-nupcial na jogada, e ela tava tentando pegar ele a traindo, que é onde eu entro. Coisas normais, bem chatas, na verdade, mas paga as contas.
Minhas primeiras investigações não revelaram muita coisa. Verificar o Hector online era inútil — se ele tinha um computador, não era pra arrumar encontros ou fazer amigos. Se passar por ele para a companhia telefônica também foi uma perda de tempo — os únicos números para os quais ele ligava regularmente eram seu irmão, sua esposa e o restaurante chinês no final de sua rua. Preguiçoso.
Eu imaginei que ele tinha um segundo celular, mas não consegui encontrar nenhuma pista óbvia sobre isso, então decidi levar minha investigação pro próximo estágio. Comecei a segui-lo.
Hector era exatamente o tipo de cara que eu sempre acabo seguindo: entrando na meia-idade sem nada pra mostrar além de uma cabeça meio careca e uma barriga de cerveja apertada nas camisas de trabalho que sempre têm alguma mancha de comida ou de suor orgulhosamente à mostra. Um perdedor. Eu sei que não tenho direito de falar nada, mas não tinha como não simpatizar com a esposa, e não só porque ela era quem me pagava.
Hector trabalhava no TI de alguma empresa de transporte e entrega que tinha um centro de administração na Liverpool Street. Eu digo que ele "trabalhava" lá, mas isso poderia facilmente ser mentira. Mesmo que eu não tenha conseguido passar pela recepção, o grande número de pausas pra fumar que Hector fez na entrada do estabelecimento me deixou com dúvidas sérias sobre se ele estava sequer trabalhando.
De acordo com a esposa Nicola, Hector teve recentemente uma série repentina de noites “trabalhando até tarde” e, com base no que eu via dele no trabalho diurno, ela estava certa em suas suspeitas. De jeito nenhum esse cara ficva um minuto depois de seu expediente.
E como o esperado, rondando seu escritório, eu o vi saindo do prédio pouco depois das seis. Comecei a acompanhá-lo com cuidado, embora depois de alguns minutos tenha ficado claro que  eu não precisava ser muito cauteloso: o homem estava completamente alheio a qualquer coisa que não estivesse dentro de sua própria cabeça ou na frente de seu rosto, e depois de um tempo descobri que poderia andar literalmente cinco metros atrás dele o caminho todo e ele nem faria ideia.
Eu sabia que estava com sorte quando o vi indo para o metrô. O caminho dele pra casa deveria tê-lo levado pela linha Central, mas em vez disso ele se dirigiu para a linha Hammersmith & City, indo para o leste. Seja lá o que — ou quem — suas ligações ilícitas envolviam, eu tinha certeza de que eu e minha câmera estávamos o seguindo direito pra lá.
Ele desceu do trem em Barking, o que era promissor. Era exatamente o tipo de lugar que eu esperava que a amante de alguém como Hector morasse: residencial, deprimente e barato. Comparado à Londres, pelo menos.
Eram quase sete horas a essa altura e era final de junho, então ainda tinha um tempo antes do anoitecer, e eu comecei a tomar mais cuidado com a minha perseguição. Havia menos pessoas aqui, então me misturar à multidão não era mais uma opção, e eu fiz questão de manter um pouco mais de distância enquanto ele caminhava pelas ruas de casas geminadas.
Estávamos andando há mais ou menos vinte minutos quando comecei a perceber que ele não entraria em nenhuma das casas. Em vez disso, ele foi caminhando para o sul até chegar à A13. Ele atravessou a rodovia, agora congestionada pelo tráfego suburbano, e dirigiu-se para o que parecia ser um armazém ou zona industrial na River Road.
Eu tava ficando cada vez menos convencido de que esse era um trabalho normal, o que me deixou desconfortável, mas ainda tava longe de me assustar. Além disso, eu tava curioso, então segui o Hector pela A13 e pela River Road. Eu estava indo muito devagar agora já que era o único andando por aquela estrada além de Hector, e se ele se virasse, bem, por mais idiota que fosse, acho que nem ele poderia ter deixado de me ver ali.
Então eu fiquei perto dos prédios e me escondia atrás deles sempre que podia. Preciso admitir que não estou tão em forma quanto estava na polícia, mas ainda fui rápido o suficiente pra acompanhar o ritmo lento e sinuoso do Hector. Depois de mais cinco minutos, ele chegou a um armazém com uma placa de "à venda". Não havia nada muito notável ou distinto sobre o lugar e a placa parecia estar lá há anos.
Avistei um pequeno buraco na parede de concreto decadente que o separava do lote adjacente e fui até ele. Pelo buraco, observei Hector parar e, pela primeira vez, olhar para trás. Quando ele não viu ninguém e balançou a cabeça como se estivesse se parabenizando por um trabalho bem feito, eu quase me entreguei com uma risada alta.
Hector verificou o relógio, claramente esperando por alguém, e largou sua pasta. Foi só aí que eu percebi o quão estranho era que um técnico de TI carregasse uma pasta de couro antiquada pro trabalho.
Ainda assim, eu não tive muito tempo pra pensar sobre isso antes de um SUV vermelho parar e dois caras brancos com agasalhos esportivos saírem de dentro e começarem a ir em direção ao Hector. Eu não conseguia entender o que eles estavam dizendo, mas eu tirei umas fotos mesmo assim. Eu tinha uma boa ideia do que estava acontecendo e não fiquei surpreso quando eles entregaram um envelope marrom obviamente cheio de dinheiro pro Hector. Em troca, ele abriu a pasta para mostrar um tijolo branco duro antes de fechá-la novamente e entregá-la.
Tirei mais umas fotos antes de ir embora despercebido. Drogas complicariam as coisas, mas não necessariamente de um jeito ruim. Teoricamente, as fotos do crime poderiam tirar Nicola de seu casamento condenado tão rápido quanto qualquer outra foto de traição. E se eu jogasse minhas cartas direito poderia até ganhar um bom bônus com ele com um suborno pra ficar quieto.
"Chantagem" é uma palavra feia, mas paga as contas. E dado o quão ruim Hector tinha sido em me ver, era só uma questão de tempo até que ele estivesse atrás das grades, então eu poderia muito bem tirar algum proveito desse dinheiro das drogas antes que ele fosse tomado pelos tribunais. Quer dizer, ele levava a pasta pro trabalho, pelo amor de Deus.
O truque seria garantir que o Hector não tivesse conexões que dificultassem isso. Pelo que eu pude ver, ele era bastante discreto e dispensável o suficiente para que um pouco de chantagem não irritasse nenhum dos peixes grandes que estavam traficando o que parecia ser heroína.
Ainda assim, traficantes de drogas e seus chefes podem ser imprevisíveis, então decidi continuar observando o pobre coitado por um tempo pra ter certeza de que eu não pisaria nos calos errados.
Então, na semana seguinte eu observei o Hector o dia todo, todos os dias, e posso dizer com confiança que ele era o pior traficante que eu já vi. Eu conheci alguns idiotas no meu tempo de polícia, mas nada que chegasse perto de Hector Laredo. Eu realmente não tinha ideia de como ele acabou trabalhando pra esses caras, que acabei identificando como máfia ucraniana.
Acho que ele realmente parecia ser a última pessoa que você suspeitaria de traficar drogas,  mas essa era a única coisa que ele tinha a seu favor. Além de ser inacreditavelmente desatento, ele também era desleixado e esquecido. Uma vez eu o observei deixar a mala com as drogas e tudo na varanda da frente por três horas em plena luz do dia antes de se lembrar e voltar pra pegá-la.
Ironicamente, eu não vi quando ele perdeu as drogas. Eu precisei usar o banheiro em uma cafeteria para a qual eu o segui e quando eu saí, ele já tinha ido embora. Em algum momento nas duas horas que eu levei para encontrá-lo novamente, ele conseguiu deixar a mala no chão e esquecê-la. Sumiu.
Eu vi a ficha dele caindo quando ele começou a entrar em pânico. Isso era uma má notícia para nós dois — pior pra ele, claro — mas significava que eu não ganharia meu bônus. Eu o segui por mais um tempo por pura curiosidade mórbida e observei enquanto ele tentava se explicar aos ucranianos.
Eu esperava raiva, uma surra, talvez até um assassinato ali mesmo. Mas, em vez disso, eles apenas trocaram um olhar, murmuraram algumas palavras pro Hector e entregaram um pequeno pedaço de papel pra ele. E aí eles foram embora.
Hector olhou o papel, digitou algo em seu telefone e jogou fora enquanto se afastava. Era um endereço em Stockwell e uma instrução: “Procure por Jared”.
Eu não o segui dessa vez. Eu tinha quase certeza de que eles tinham acabado de assinar a sentença de morte daquele pobre idiota, e quando a Nicola me ligou no dia seguinte pra dizer que o Hector não tinha voltado pra casa, eu tive certeza. Foi aí que contei a ela sobre o que seu marido andava fazendo, embora tenha mentido sobre os horários pra fazer parecer que eu tinha acabado de descobrir sobre as drogas. Não havia necessidade de ela saber o motivo de eu ter guardado isso pra mim. Quando contei a ela sobre as drogas perdidas e o bilhete, ela se sentou, claramente tentando processar tudo.
Ela não parecia particularmente chateada com o fato de que seu marido provavelmente estava morto, o que foi rapidamente confirmado quando ela começou a falar sobre poupança e seguro de vida.
Foi aí que eu deveria ter pegado meu pagamento e ido embora. Se eu não tivesse ficado ganancioso, eu ainda teria o meu braço.
Então eu tava pronto pra ir embora quando a Nicola me perguntou quanto tempo eu achava que ia demorar até eles encontrarem o corpo. Fui burro pra dizer que se os ucranianos fossem bons, provavelmente nem haveria um corpo pra encontrar. Com isso, a Nicola pareceu entrar em pânico um pouco, fazendo muitas perguntas sobre pessoas desaparecidas sendo declaradas legalmente mortas sem encontrarem um corpo, o que é uma dor de cabeça longa e cansativa. Ela claramente não queria esperar e me pediu para tentar encontrar alguma evidência de que o Hector estava morto. Eu disse não, claro. Então ela fez uma proposta que... bem, digamos que a apólice de seguro de vida de Hector Laredo deveria ser uma coisa e tanto. Mesmo na época eu sabia que estava tomando a decisão errada, mas... aquele tanto de dinheiro... Eu disse sim.
Então, no dia seguinte, lá estava eu em Stockwell, no endereço indicado no bilhete, olhando para um açougue. Não tinha nenhum nome escrito na frente, mas a exibição de carcaças congeladas e pedaços de carne na vitrine deixavam perfeitamente claro o que era.
Comecei a me perguntar se a máfia ucraniana descartava os corpos à lá Sweeney Todd, mas rapidamente me lembrei de que, mesmo se — e ​​era um grande "se" — eles estivessem matando e descartando corpos lá, isso não significava que eles estavam vendendo a carne aos clientes. Isso seria um risco enorme e desnecessário, e o crime organizado não era muito fã de riscos desnecessários.
Era um dia ensolarado e o cheiro do asfalto quente se misturava com o cheiro de carne crua que saía pela porta. Tinha uma placa de "Fechado" pendurada de forma proeminente apesar de ainda ser cedo de manhã, e não havia luzes acesas.
Eu não conseguia ver nada lá dentro exceto a carne velha mal refrigerada pendurada na janela, pingando silenciosamente nas bandejas abaixo dela. Me lembrei de quanto dinheiro estava em jogo e tentei a maçaneta.
Pra minha surpresa, ela estava aberta. Deslizei para dentro da loja escura antes que alguém me visse. O cheiro era azedo, mas não tão forte quanto eu esperava. Uma rápida olhada ao redor do lugar me revelou o motivo. Com exceção da vitrine, a sala estava sem carne alguma. Na verdade, não parecia ter muita coisa ali além de um balcão refrigerado e uma geladeira de bebidas. Ambos estavam vazios.
Esperei e escutei, preparado para fugir pela porta ao menor sinal de movimento, mas estava silencioso. Eu me recompus e dei a volta no balcão para abrir a porta dos fundos.
Eu estava de olho em qualquer coisa que pudesse dar uma dica do destino de Hector. Assim que tivesse provas eu iria embora.
A porta dos fundos se abriu com um sopro de ar, como se tivesse uma diferença de pressão, e eu percebi como a porta de aço era grossa. Até a janela de vidro no topo parecia ter alguns centímetros de espessura. Só percebi depois que deveria ser à prova de som.
A sala atrás dela era iluminada por várias lâmpadas fluorescentes brilhantes no teto e nas paredes e, como eu suspeitava, parecia ser mais um necrotério ou um centro cirúrgico do que um açougue, apesar das ferramentas bem conservadas e afiadas penduradas em um suporte. Havia vários armários grandes ao longo de uma parede, uma cadeira de aço no canto e, embora não houvesse gavetões de aço inoxidável, a forma coberta de lona que jazia desajeitadamente na mesa central era desconcertantemente familiar.
Respirei fundo e puxei o lençol de plástico. Hector Laredo estava deitado sobre a mesa. Ele estava nu, totalmente imóvel, e embora parecesse estar inteiro, sua pele tinha a palidez desfalecida de um cadáver. Suspirei, aliviado com essa descoberta que — do meu ponto de vista — era o melhor resultado que eu poderia esperar.
Passei um minuto ou dois tirando fotos para Nicola e voltei para a porta. E foi aí que tudo começou a dar terrivelmente errado.
Quando alcancei a porta para voltar à parte de frente da loja, dei uma última olhada pela janela e congelei. Na entrada da loja havia uma silhueta enorme. Ela estendeu a mão para abrir a porta, e eu cambaleei de volta para a sala procurando por outra saída.
Havia apenas uma outra porta que aparentemente dava para o resto do prédio, mas estava firmemente trancada e eu não tinha tempo pra tentar passar.
Sem muitas outras opções, cobri Hector com a lona de novo, abri um dos armários e me espremi lá dentro. Pra minha sorte, eles eram grandes e não pareciam ter prateleiras. Pisei em algo macio e, olhando para baixo, vi uma pilha áspera de roupas aos meus pés.
Não tive tempo de considerar isso antes de ver a porta começar a se abrir — tive que me enfiar lá dentro. Fiquei lá no escuro tentando não fazer barulho enquanto ouvia passos pesados se aproximarem e a porta da sala se fechar. Da posição que eu estava, eu só conseguia ver através das frestas no armário, e eu esperava muito que o cara enorme agora amarrando um avental não pudesse me ver lá dentro.
Ele era imenso, tinha quase dois metros de altura com membros grossos que pareciam ter sido mal esculpidos em uma pedra irregular. Até mesmo sua cabeça era enorme, mas nela, como em todos os outros lugares, sua pele estava à mostra. Ela dilatava ligeiramente quando ele se movia, veias duras se formando e esticando sua pele em lugares estranhos. Esse era o "Jared" mencionado no bilhete?
Ele puxou a lona que cobria o corpo de Hector e estalou os dedos. Acho que eu nunca vou esquecerei o som dele fazendo isso.
Aí, ele enfiou a mão no Hector. Sem facas, sem serras, ele só... enfiou a mão. E aí eu entendi por que o quarto era à prova de som. Porque, no fim das contas, o Hector não estava morto. E ia demorar um pouco até que o Jared chegasse aos pulmões ou à garganta.
Jared puxou para fora o que parecia ser um punhado de costelas. Ele as observou por alguns momentos antes de começar a torcê-las como se fossem massa de vidraceiro quente, transformando-as em uma espécie de trança. Ele observou sua obra em silêncio enquanto Hector gritava na mesa antes de balançar a cabeça e caminhar em direção ao meu armário.
Por um momento horrível eu tive a certeza de que ele ia abrir o armário e me puxar para fora. Mas, em vez disso, ele agarrou um pé de cabra que estava encostado na parede e ergueu um dos ladrilhos de metal do piso. De onde eu estava, pude ver que havia um buraco embaixo que parecia desaparecer profundamente no chão. Havia algo... de errado naquele buraco. A textura das paredes era muito lisa pra ser terra, e parecia... brilhar, úmido. Foi quando vi os dentes que cravavam o interior da garganta carnuda que eu percebi pro que eu tava olhando e eu segurei um grito.
Jared casualmente jogou os ossos que ele estava torcendo lá dentro, e eles desapareceram na abertura escura sem fazer nenhum barulho.
E assim continuou por quatro longas horas. Depois do primeiro, Hector já não estava mais consciente o suficiente para gritar, mas Jared continuou a dobrá-lo e deformá-lo, ocasionalmente puxando pedaços para fora e os jogando no poço. Em algum momento eu até o vi pegar um dos fêmures do Hector e, depois de torcê-lo em uma espiral no formato de um saca-rolhas, ele enfiou a mão em seu próprio torso e o deixou lá, com um suspiro de contentamento.
Por fim, o Hector morreu e eu quase chorei de alívio. Jared suspirou parecendo decepcionado e, em seguida, pegou as ferramentas de açougueiro na parede. Demorou mais meia hora pra desmembrar completamente o cadáver, jogando cada pedaço no buraco, quando era pequeno o suficiente, junto com o sangue.
Ele tirou o avental, caminhou até a cadeira e se sentou. Seus movimentos eram lentos agora, descoordenados, quase como se estivesse bêbado.
Uma vez na cadeira, seu enorme corpo caiu para a frente e seus olhos se fecharam. Parecia que ele estava dormindo. Eu deveria ter esperado mais, deveria ter me assegurado de que ele estivesse dormindo profundamente, mas a esse ponto eu tava perto de surtar e não conseguia pensar em nada além de escapar.
Abri o armário, caminhei rápida e silenciosamente até a porta e abri. Ao fazer isso, os sons suaves da rua à noite se infiltraram pela frente da loja. Comparado ao silêncio sombrio da oficina do açougueiro, era lindo. Pelo menos, foi lindo até uma ambulância passar rugindo, a sirene tocando no volume máximo. Ouvi um rugido atrás de mim e me virei para ver o Jared avançando em minha direção.
Era como um trem de carga estranho e encaroçado vindo em minha direção. Eu tentei fechar a porta, mas fui devagar demais. Pouco antes de conseguir fechar, ele agarrou meu braço e tentou me puxar pra trás.
É impossível descrever a sensação de ter um osso arrancado de você através da sua pele intacta. Se você já foi esfaqueado ou teve um objeto de tamanho considerável enfiado em você, talvez se lembre de qual foi a sensação de removê-lo, mas mesmo assim a dor é diferente. Os nervos não estão sendo rasgados ou cortados, eles estão sendo deslocados como se fossem água. Imagine a sensação de remover uma luva de borracha da sua mão, mas você é a luva, não a mão. E dói como a pior dor de dente que você pode imaginar, isso... isso é o mais próximo que eu consigo chegar de colocar em palavras.
Bati a porta e corri para a rua, passando pelas pessoas que ainda vagavam por Stockwell à noite, e fui embora — meu braço esquerdo, agora vazio, pendendo frouxamente do meu lado. Não parei de correr tão cedo.
Eu acho que, em muitos aspectos, foi um final feliz. As fotos, combinadas com o que a polícia encontrou quando invadiram o açougue, foram suficientes para declarar Hector morto, mesmo sem o corpo, e recebi meu pagamento de Nicola Laredo.
Mas eles nunca encontraram o Jared. Ele já estava longe quando eles chegaram. Os médicos amputaram o braço no final das contas, e eu tô me acostumando com a prótese, mas ainda posso senti-lo às vezes, como se ainda estivesse lá.
Eu sei que é só a síndrome do membro fantasma, mas às vezes eu posso jurar que parece que os meus ossos ainda estão por aí, se retorcendo no braço de outra pessoa.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento.
Eu não acho que seja irracional assumir que esse açougueiro seja Jared Hopworth. Parece que, se o relato do Sr. Adekoya do depoimento 9991006 estiver correto, então Hopworth encontrou jeitos novos de lucrar com suas habilidades nos oito anos desde a aquisição do Conto do Viraossos. O livro em si está visivelmente ausente deste relato, embora isso possa significar simplesmente que Hopworth não precisa mais mantê-lo com ele.
Mas não faço ideia do que seja o poço. Isso é novo. A descrição dele me faz lembrar de alguns depoimentos mais… carnudos, mas não temos evidências suficientes para fazer conexões diretas. O Sr. Pryor não estava disponível para uma entrevista de acompanhamento já que emigrou para a Nova Zelândia em 2013 depois de uma pena de prisão de quatro anos por sonegação de impostos. Ele parece ter sumido do mapa.
Nicola Laredo confirmou os detalhes básicos do trabalho que havia solicitado ao Sr. Pryor, embora não soubesse de nenhum dos aspectos mais... macabros do assassinato de seu marido.
Pelo menos não sabia até Martin entrevistá-la. Eu deveria falar pro Elias esperar outra reclamação.
A parte policial desse depoimento tem sido a mais difícil de acompanhar. A Sasha tem tido problemas recentemente com seu acesso usual aos registros policiais, pois, apesar dos melhores esforços do TI, o computador dela quebrou de novo, pela terceira vez nos últimos dois meses. Até que a gente consiga obter algum equipamento mais confiável, teremos que confiar em outros métodos.
A Basira se recusou a comprometer sua posição ainda mais, então estamos tendo que confiar no envolvimento do Tim com certos funcionários no escritório de registros da polícia. Aparentemente, ele está envolvido tanto com uma das moças de lá quanto com o cavalheiro que gerencia o outro turno. Isso é útil pra conseguir informações, mas eu fico… desconfortável com o quão fácil pode ser descobrir essa tramoia. A última coisa que eu quero é que os Arquivos se envolvam em algum drama pessoal sem sentido.
Ainda assim, ele conseguiu obter cópias dos arquivos necessários. A polícia invadiu mesmo o açougue depois da denúncia do Sr. Pryor mas não encontrou ninguém lá. Aparentemente, tinha sido abandonado pouco antes. Eles encontraram artigos de vestuário pertencentes a cerca de quatorze pessoas, cinco das quais poderiam estar ligadas a casos ativos de pessoas desaparecidas.
Eles realmente investigaram o chão no final das contas, mas em vez de qualquer tipo de poço, eles encontraram o corpo de um tal de Harry Gough, o proprietário legal do estabelecimento. Aparentemente, ele estava morto há seis meses.
Jared Hopworth continua foragido.
Fim da gravação.
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ARQUIVISTA
Complemento.
Elias Bouchard é um homem difícil de desvendar. Isso desde que ele se tornou chefe do Instituto em 1996, substituindo James Wright, que administrou o lugar de 1973 até sua morte.
Foi uma subida notavelmente rápida até o topo, pelo que pude encontrar — parece que ele se juntou ao Instituto só cinco anos antes, em 1991, trabalhando no Armazém de Artefatos. Talvez ele só fosse simplesmente impressionante assim mesmo. Certamente o Elias que eu conheço agora é quase incomparável em termos de conhecimento paranormal. Bem, conhecimento teórico, pelo menos.
E, ainda assim, tudo o que eu descobri sobre sua vida antes do Instituto parece... não combinar muito com o homem austero que eu conheço. Ele aparentemente se formou na Christchurch College em Filosofia, Política e Economia, e eu encontrei uma antiga coluna de fofocas do jornal estudantil, o Cherwell, que o mencionava. Se eu não estiver levando isso à sério demais, o jornal parece implicar que ele era... tipo um maconheiro.
Ele era assim no começo quando veio trabalhar aqui? O problema é que a única pessoa no Instituto que trabalhou aqui antes de ele assumir era a Gertrude. Ele a matou porque ela sabia de algo sobre o passado dele? E se sim, como posso provar isso?
Fim do complemento.
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MAG048 — Perdido na Multidão
Caso #0100325: Depoimento de Andrea Nunis a respeito de uma série de encontros nas ruas de Gênova, na Itália.
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Aviso de conteúdo: agorafobia, multidões
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Depoimento de Andrea Nunis a respeito de uma série de encontros nas ruas de Gênova, na Itália. Depoimento original prestado em 25 de março de 2010. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento.
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Viajar sempre foi a minha paixão. Lembro que quando eu era criança meus pais costumavam me levar em viagens para uma pequena cabana no País de Gales. Eu era muito pequena na época, tinha uns quatro ou cinco anos, e a cabana não tinha nada de especial, era só um chalé barato. Fui em todas as férias que nossos pais puderam pagar e tive que dividir um beliche com meu irmão mais velho birrento, mas lembro que toda vez que atravessávamos aquela ponte enorme da Inglaterra para o País de Gales eu sentia essa emoção de exploração e descobertas. Ver lugares novos, ir mais longe, viajar.
Eu não olhei pra trás desde então.
Como eu disse, meus pais não tinham muito dinheiro, então a primeira chance que eu realmente tive de ir além do Reino Unido foi quando tirei um ano sabático. Eu economizei por anos pra pagar essa viagem e tive ajuda de uma herança de uma avó distante, então comprei um monte de passagens de trem e passei quase 4 meses vagando pela Europa, nunca ficando mais do que alguns dias em um lugar e indo embora assim que ficasse entediada. Tinha noites em que não conseguia encontrar um hostel e acabava dormindo nas ruas. Eu até dormi em um cemitério uma vez. Eu encontrava companheiros de viagem temporários aqui e ali, mas na maioria das vezes eu passava semanas sem falar minha própria língua. Eu tive aventuras e vi maravilhas e me meti em problemas algumas vezes. Foi a época mais feliz da minha vida.
Desde então, viajar sempre foi a maior alegria da minha vida. Saí da universidade com um bom diploma de matemática e consegui um emprego como programadora. É um trabalho bem remunerado pra vida toda, mas eu não ligo. Porque isso significa que uma ou duas vezes por ano eu posso largar tudo por um mês e sumir pra algum lugar novo. O Grand Canyon, a Cidade Proibida, a Grande Barreira de Corais... Essa é a minha vida. Tudo no meio disso é apenas um intervalo. Acho que essa é uma das razões pelas quais eu sempre tive tantos problemas com romance ou até mesmo amizades íntimas. Eu nunca posso levá-los a sério porque eles não fazem parte da minha vida “real”. E na minha vida real eu viajo sozinha.
Eu sei que é muito mais perigoso e as pessoas sempre me dizem que deve ser muito solitário, mas realmente não é. Existe uma pureza em estar sozinho quando você viaja. Você pode absorver os lugares em que se encontra muito melhor — absorver as vistas, os cheiros e as vibrações de um lugar de um jeito que você simplesmente não poderia se tivesse que ficar atento à presença de outra pessoa.
Não é que eu não goste de outras pessoas — eu gosto. Eu simplesmente não consigo viajar direito se eu estiver com outros. No meu aniversário de 25 anos no ano passado, decidi me presentear com outra viagem à Europa. Claro que eu não poderia ficar fora por mais 4 meses, mas eu imaginei que apenas um já me permitiria revisitar meus lugares favoritos no sul — Eslovênia, Suíça, Baviera, Itália, talvez Mônaco ou partes do sul da França. Eu tenho sorte já que um aniversário em setembro torna praticamente o momento perfeito para viagens pela Europa, e durante as primeiras semanas eu estava tendo uma viagem maravilhosa.
Descendo pela Itália e revisitando Veneza, Roma e as belas vistas de San Marino. Evitei ir muito para o sul, tipo Nápoles, que lembro de ser um lugar horrível cheio de cheiros ruins e pessoas rudes, e em vez disso comecei a viajar para o norte de novo, por Florença. Foi num hostel em Florença que eu conheci Ethan Taylor.
Ethan era a cara do viajante australiano — alto e bronzeado, com cabelos loiros, sujos e ligeiramente encaracolados e uma atitude despreocupada. Eu literalmente conheci vários iguais a ele em todos os hostels ao redor do mundo. Mas por alguma razão eu realmente me dei bem com o Ethan de um jeito que eu não tinha me dado com nenhum outro igual a ele. Eu acho que é porque quando ele falava sobre viajar, ele falava do mesmo jeito que eu. Ele não estava andando por aí por diversão ou porque é isso que todo australiano faz quando atinge essa idade — ele viajava porque precisava. E ele disse que, assim como eu, sempre viajava sozinho.
Passamos algumas noites juntos no hostel, para a irritação dos outros hóspedes. Mas, por mais que eu gostasse da companhia dele, não tinha interesse em viajar com ele por muito tempo, e parecia que ele se sentia da mesma forma. Estava implícito o desconforto mútuo quando acabamos nos encontramos no mesmo trem indo para o norte. Parecia que seria rude no mínimo não nos cumprimentarmos, então nos sentamos no mesmo banco e olhamos pela janela.
Foi tudo bem, na verdade. Cada um perdido em seus próprios pensamentos enquanto os campos italianos passavam. Estávamos viajando há cerca de duas horas quando o Ethan me olhou e me perguntou se eu planejava parar em Gênova. Eu disse que não, que não era um lugar que eu realmente considerava visitar, e o Ethan começou a me falar sobre lá. Ele tinha ido pra lá alguns anos antes, segundo ele, e o litoral era lindo, o oceano todo azul claro e as ruas estreitas e sinuosas. Eu não tinha outros planos, então eu concordei. E sabe de uma coisa? Ele estava certo. Era lindo. As casas coloridas contornando as ruas íngremes da costa e os trajetos ao lado do mar.
No primeiro dia em que saímos do trem, me apaixonei um pouquinho por Gênova. Fizemos o check-in em um hostel e, pela primeira vez, decidimos pegar um quarto privado e largamos as mochilas dos nossos ombros cansados. Não precisávamos dizer nada pra saber que exploraríamos a cidade sozinhos. Ethan revisitaria memórias queridas e eu estaria criando novas memórias. Mas nenhum de nós queria fazer isso com companhia. A maior parte do tempo que passamos juntos era à noite — jantando, conversando ou… fazendo outras coisas.
Na primeira manhã, fiz uma longa caminhada ao longo da costa. O ar do mar era revigorante. E quando o ar frio e salgado percorreu por meu cabelo, eu me senti tão viva que quase chorei. Afastei da mente todos os pensamentos sobre voltar à minha vida monótona e inglesa e saboreei a minha liberdade. Havia algumas outras pessoas andando perto de mim, mas o italiano é uma das poucas línguas que eu nunca consegui entender nem mesmo o básico, então a conversa deles era estranha para mim e não interrompeu o meu precioso isolamento.
Quando Ethan e eu conversamos naquela noite, tentei colocar aquilo em palavras, mas sem sucesso. Mesmo aqui, depois de ter tempo para pensar melhor, ainda não sei se consigo explicar a essência do que eu senti. Ethan, por sua vez, me contou sobre suas explorações das vielas de Gênova. Ele encontrou uma pequena parte da cidade que parecia mais velha do que o resto, segundo ele, e também era mais movimentada. Ele suspeitava que poderia haver um mercado de rua escondido por lá e esperava encontrá-lo novamente no dia seguinte. Então fomos pra cama e eu tive o que pode ter sido a minha última noite de descanso.
No dia seguinte, decidi procurar uma boa cafeteria local pra passar um tempo lendo. Não foi difícil de achar, já que se tem uma coisa fácil de encontrar na Itália, essa coisa é café. Esse lugar era bem escondido e estava mais quente lá dentro do que do lado de fora, mesmo que o dia estivesse muito quente para aquela época do ano. Eu me sentei e pedi um café. Tentei ler mas estava tão quente que, mesmo com o café forte na mão, ficava difícil manter os olhos abertos e eu acabava cochilando. Foi depois de um cochilo acidental que eu o vi.
Ele era pálido, quase esquelético, e parecia totalmente deslocado. Sua camisa larga e brilhante contrastava totalmente com seu longo cabelo preto. Ele estava me encarando de um jeito bem desconfortável. Quer dizer, eu sei que eu não sou feia e eu já tô acostumada com caras assustadores me encarando às vezes, mas aquilo era diferente. Ele encarava com uma cara de concentrado. Como se ele estivesse tentando ler alguma coisa muito pequena escrita na minha testa. Depois de mais ou menos um minuto disso, ele se levantou e caminhou até mim. Ele se sentou na cadeira à minha frente. Ele ainda estava me encarando e ficou claro que eu teria que começar a conversa. Então eu perguntei quem diabos ele era e o que diabos ele queria.
Ele ignorou completamente a primeira pergunta e disse, em inglês, que o que ele queria era passar as férias em paz. Ele disse isso de um jeito muito acusatório, como se eu estivesse arruinando suas férias de alguma forma, e eu disse isso pra ele. Ele suspirou e disse que não estava a fim de ajudar gente perdida e, bem, eu não sabia que ajuda era essa que ele estava oferecendo e eu com certeza não tinha pedido por ela, então me levantei pra sair. Ele se desculpou de má vontade e disse que, já que já estava ali, achava que deveria pelo menos me avisar que eu estava marcada. Ele não sabia pelo quê, mas estava perto.
Eu era casada? Eu tinha um noivo, parceiro, amigos? Eu respondi que não, não tinha. Eu tava cansada de suas perguntas idiotas, mas ele parecia estranhamente desesperado. Irmãos? Não. Mãe? Claro que eu tinha uma mãe. Éramos próximas? Eu a amava? Olhei pra ele de cara feia e ele perguntou de novo se éramos próximas. Eu disse que sim, éramos muito próximas. E então eu me levantei pra ir embora. Enquanto eu saía, o ouvi gritar atrás de mim, dizendo pra eu lembrar da minha mãe — pra manter o rosto dela na minha mente. Eu não respondi.
O Ethan não voltou pro hostel naquela noite. De início eu presumi que ele provavelmente tinha ficado bebendo até tarde, mas quando a tarde se transformou em noite e a noite se transformou em manhã, comecei a ficar um pouco preocupada. Claro que não era da minha conta, mas Gênova não era o tipo de cidade com muitas festas noturnas. Eu poderia pensar que talvez ele tivesse ido embora sem mim, mas a mochila dele ainda estava no nosso quarto, intocada. Eu queria deixar isso pra lá, mas meu encontro com aquele esquisito no café me deixou meio abalada. Quando o sol nasceu no terceiro dia em Gênova sem nenhum sinal do Ethan, eu decidi sair para procurá-lo.
Meu primeiro passo foi tentar localizar aquele mercado de rua que ele tinha mencionado. Talvez ele não fosse apenas escondido, talvez fosse realmente ilegal e ele tivesse se envolvido em algo que não deveria. Ele me deu uma boa descrição da parte de Gênova em que estava, então comecei minha busca lá. Não encontrei nada. Perguntar por aí só me rendeu uma enxurrada de italianos confusos com quem eu não conseguia falar. Então eu só continuei andando. A manhã se transformou em tarde e o dia anteriormente ensolarado se tornou nublado e opressivo. Eu ocasionalmente gritava o nome do Ethan sem muito entusiasmo, embora eu não soubesse o que esperar.
No começo, isso me gerou gritos irritados de janelas próximas, depois olhares furiosos e, por fim, não obtive mais resposta nenhuma. As ruas pelas quais eu andava ficavam cada vez mais estreitas, e as casas e prédios ao meu lado pareciam ficar mais altos a cada curva que eu fazia, suas cores anteriormente vibrantes, desbotadas sob o céu nublado. A tarde estava completamente silenciosa.
Comecei a pensar "quanto tempo faz desde que vi alguma outra pessoa?" 20 minutos? Uma hora? Duas horas? Eu não tinha olhado meu relógio e minha cabeça estava confusa — era difícil pensar com toda aquela umidade. Eu fui tomar um gole da minha garrafa de água, mas percebi que ela estava vazia — eu bebi tudo? Não tinha como eu ter procurado por tanto tempo assim. Então eu ouvi mais adiante. O murmúrio abafado de uma multidão de pessoas, aquele balbucio de ruídos incompreensíveis que só pode vir de dezenas de vozes falando ao mesmo tempo. O alívio tomou conta de mim e eu comecei a caminhar em direção ao barulho.
A rua para a qual eu estava indo era mais larga do que aquelas que eu acabara de andar e parecia mais iluminada de alguma forma. O melhor de tudo é que eu podia ver um fluxo constante de pessoas caminhando em ambas as direções. Talvez aquele fosse o mercado de rua que o Ethan havia mencionado. Eu tropecei por ele e comecei a olhar em volta. Eu não conseguia ver nenhuma barraca ou loja ou qualquer coisa que pudesse explicar a presença de tantas pessoas, mas eu não tive tempo de realmente pensar sobre isso antes que elas começassem a esbarrar em mim. Não parecia ser de propósito, mas tinha tanta gente, muito mais do que eu tinha pensado, e elas não conseguiam se mover sem me atropelar ou me empurrar.
O fluxo de pessoas me arrastava pra lá e pra cá e eu estava cercada por aquele barulho, aquele murmúrio da multidão. Mas agora que eu estava no meio de todo mundo, eu percebi que não era italiano sendo falado — ou inglês, ou qualquer outra língua que eu reconhecesse. Quanto mais eu ouvia, mais eu percebia que não era uma língua. Não havia palavras, era só barulho. Só um barulho sendo feito pelas pessoas ao meu redor. Aí eu comecei a me concentrar naquelas pessoas. E foi aí que eu comecei a gritar.
Seus rostos eram um borrão, cada um deles — era como se alguém tivesse filmado eles gritando ou tendo uma convulsão e depois reproduzido em uma velocidade cem vezes maior em seus rostos. Nenhum deles tinha cabelo ou quaisquer marcas distintivas e, embora suas roupas fossem diferentes, eram todas versões diferentes das mesmas roupas. Tentei falar com eles ou gritar — gritar com eles —, mas não houve reação. Tentei empurrá-los, socá-los e chutá-los, mas eles me pressionavam com muita força e eu não podia fazer nada exceto ser esbofeteada de um lado para o outro por eles.
Essa multidão de pessoas... não eram pessoas. Era só uma multidão. Uma multidão sem nenhuma pessoa e eu ainda estava completamente sozinha. Foi nesse momento, quando senti meu equilíbrio começar a vacilar e pensei que me perderia para a multidão pra sempre, que as palavras daquele homem esquisito da cafeteria vieram à minha mente. Pense na sua mãe. E foi o que eu fiz. Pensei no rosto dela, no cheiro do perfume dela, nas longas ligações jogando papo fora que fazíamos sempre que tínhamos a chance. Fechei os olhos e recordei com o máximo de detalhes e com o máximo de amor que pude reunir no meu desespero.
Eu não notei quando os corpos ao meu redor pararam de me empurrar ou quando o zumbido da multidão parou. Por fim, eu abri os olhos de novo. Era noite e eu estava em uma rua que eu não reconhecia com um casal italiano de senhores olhando pra mim como se eu tivesse enlouquecido. Demorei mais uma hora para encontrar o caminho de volta para o hostel. E eu me certifiquei de ter sempre pelo menos uma outra pessoa à vista.
Não procurei mais pelo Ethan. Eu já tinha o máximo de resposta que conseguiria encontrar, então deixei a mochila dele no hostel para o caso de ele voltar para buscá-la. Duvido que tenha voltado. Eu interrompi minha viagem depois disso, voltei pela rota mais direta possível e passei um tempo na casa da minha mãe. Eu não viajei mais desde então, mas eu vou ter algum tempo livre logo logo e queria sair de novo. Mas vou ver se encontro um amigo pra vir comigo. Eu acho que pode levar um tempo até eu estar pronta pra viajar sozinha de novo.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento.
Um encontro interessante, embora difícil de investigar devido à sua localização. Sasha organizou uma entrevista complementar com a Sra. Nunis, que relatou que começou a viajar sozinha de novo recentemente e não teve mais problemas. Martin confirmou que, na última década, vários viajantes foram dados como desaparecidos em Gênova, mas, em média, não mais do que o normal para uma cidade daquele tamanho. Não sei direito se isso significa que poucos viajantes desaparecem em Gênova ou que muitos viajantes desaparecem em todos os outros lugares. Tô curioso sobre esse estranho que a Sra. Nunis conheceu na cafeteria. A descrição dela me lembrou Gerard Keay, embora não tenha muitos detalhes. Se for ele mesmo, então deve ter feito esta viagem um pouco depois de ter sido absolvido do assassinato de sua mãe. Fugiu do país por um tempo, talvez? Talvez houvesse rumores de um Leitner em Gênova. Talvez ele estivesse mesmo de férias. Não dá pra saber sem mais informações.
Mas eu tenho certeza da veracidade desse depoimento em uma coisa. O Tim conseguiu entrar em contato com o hostel Manina em Gênova e eles confirmaram que há pouco mais de seis anos eles tinham uma mochila nos achados e perdidos com o nome E. Taylor. Ninguém nunca foi buscá-la.
Fim da gravação.
COMPLEMENTO
Complemento.
A visita do Michael na semana passada tá na minha cabeça. De que confronto ele tava falando e, se existe mesmo, qual é o interesse dele nisso? O que ele é? Ao ouvir a gravação da sua visita, também fiquei surpreso com algo que me passou completamente batido na confusão da chegada dele. Suas palavras eram um aviso de que eu não posso confiar na Sasha. De que ela estava mentindo sobre algo. É claro que ficou evidente na minha investigação que eu não posso confiar em ninguém. Mas, de todos eles, a Sasha parecia ser a menos suspeita.
Não consigo encontrar nenhuma evidência de que ela tenha sequer conhecido a Gertrude. E seu emprego aqui parece a progressão natural de um interesse no paranormal ao longo de sua vida. Ela tem feito seu trabalho com a mesma diligência de antes do incidente com a Prentiss e, de fato, de todos eles, ela parecia ter sido a menos afetada. Dito isto, ela perdeu mesmo a fita que documentava a experiência dela. Ou será que ela tá mentindo sobre seu encontro com o Michael? Deixando coisas de fora? Ou o Michael tá só mexendo com a minha cabeça, como de fato parecia ser o único propósito de sua visita?
Por outro lado, preciso ser mais sutil com as minhas perguntas. Segue uma gravação que consegui fazer de uma pequena reunião que o Elias solicitou.
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Elias: Eu não gosto de precisar ter essas reuniões, John, você sabe que eu não gosto.
Arquivista: Bem, sinto muito se você tá sendo obrigado a fazer isso. Presumo que você tenha recebido outra reclamação?
Elias: Sim.
Arquivista: De quem foi dessa vez? O Dr. Elliot ficou ofendido por eu me recusar a pegar a maçã dele? Fui rude demais com o Michael?
Elias: Quem é Michael? Não, é da sua equipe.
Arquivista: Quê?
Elias: Martin e Tim vieram falar comigo. Aparentemente você anda espionando eles.
Arquivista: Espionando eles? Claro que não... Não, é só que... Eu tava... preocupado com a saúde mental deles depois do ataque da Prentiss, então fiquei um pouco mais de olho neles do que o normal.
Elias: O Tim disse que você tava vigiando a casa dele.
Arquivista: Eu— Isso não é verdade.
Elias: Bem, o que importa é que a sua equipe acha que poderia ser verdade. Olha, eu... eu sei que encontrar o corpo da Gertrude foi difícil pra você, eu entendo, mas você precisa esquecer isso. Não é a saúde mental deles que está em jogo agora.
Arquivista: Tá. Tá. Era só isso?
Elias: Sim.
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Preciso ser mais cuidadoso pros outros não perceberem as minhas investigações. Principalmente se eu tiver mais motivos pra vigiar as casas deles. Mas ainda mais importante: acho que o Elias acabou de ir pro topo da minha lista de suspeitos. O que será que ele tá escondendo? Fim do complemento.
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MAG047 — Uma Porta Nova
Caso #0161002: Depoimento de Helen Richardson a respeito de uma nova porta na casa que ela estava vendendo.
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Aviso de conteúdo: abdução, barulhos altos
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Depoimento de Helen Richardson a respeito de, uh... como você descreveria isso? Srta. Richardson?
HELEN
Hã, quê?
Arquivista: O que você experienciou, como você resumiria?
Helen: Ah, bem, eu tô tentando desenhar um mapa pra você, mas não— mas não funciona.
Arquivista: Certo. Depoimento de Helen Richardson a respeito de uma nova porta na casa que ela estava vendendo. Depoimento gravado diretamente da indivídua em 2 de outubro de 2016. Início do depoimento.
…Srta. Richardson?
Helen: Não tem viradas para a esquerda. Olha! Olha, nenhuma, ele só vai para a direita, não faz nenhum sentido. Não era uma espiral porque sempre dava pra continuar seguindo em frente, quer dizer, eu—
Eu fui praticamente só pra frente, e os caminhos nunca ficavam mais curtos como se você estivesse chegando a um centro, eles só... continuavam. Não faz sentido nenhum! Olha isso.
Arquivista: Ah, Srta. Richardson...
Helen: Olha!
Arquivista: Você tá certa. Esse mapa não faz o menor sentido.
Helen: Depois de algumas voltas...
Arquivista: Ele virou uma confusão de linhas impossíveis, sim. Mas vai ser muito útil para a nossa investigação se você puder começar do início, nos dar algum contexto.
Me diz como começou.
Helen: O que você quer saber? Não tinha uma porta lá. E aí, tinha.
HELEN (DEPOIMENTO)
Eu trabalhava para a Wolverton Kendrick. Ainda trabalho, eu acho — eu não me demiti oficialmente, mas não voltei lá desde o que aconteceu. Nós vendemos propriedades principalmente em torno da área de Wimbledon, às vezes até Colliers Wood. Somos especializados em casas de família bem equipadas para profissionais de sucesso que procuram se mudar para mais longe de Londres. Tivemos muito sucesso, e hoje em dia geralmente temos umas duzentas propriedades no mercado. A maioria são casas familiares mais isoladas ou apartamentos grandes e bem equipados.
Trabalho naquela agência há mais ou menos oito anos e já fiz milhares de visitas para eles, então pode acreditar em mim quando eu digo que não tinha nada de incomum naquela casa na avenida Saint Albans. Quer dizer... talvez o fato de que o proprietário estava vendendo ela por menos de dois milhões? Mesmo assim, ainda não era barata de um jeito suspeito; era só uma casa bonita em uma área agradável, igual a todas as outras casas que eu vendo.
Mas lembrando do caminho até lá, as árvores pareciam mais escuras do que deveriam ser. As outras casas ali eram sinistras, escondidas atrás de seus portões altos e calçadas vazias. Mas eu acho que... isso é só a minha memória mudando pra se encaixar nas coisas que eu sei agora. Na época, eu acho que não senti nada além de irritação por eu estar dois minutos atrasada para a visita.
Sabe o que é engraçado? Mesmo depois de tudo o que aconteceu, eu ainda tenho dificuldade em visualizar a casa na minha cabeça. Ela era tão parecido com todas as outras... Tão... comum.
E não é como se eu já tivesse ido lá antes.
Durante a maior parte das visitas matinais, tudo ocorreu como de costume. Eu tinha a mesma quantidade de banqueiros e executivos fazendo as mesmas perguntas de sempre, ocasionalmente reforçadas por um dentista particular ou um advogado. Andei por aquela casa durante praticamente cinco horas e, no final, eu já tinha estado em todos os cômodos e aberto todos os armários dezenas de vezes. E eu te garanto — eu te juro que aquela porta não estava lá.
Ele… veio… no final do horário de visitas. Era o último horário, e embora ele não tenha me dito seu nome, tenho certeza absoluta de que ele não era o Sr. e a Sra. Adrian Lombardi.
Ele era alto, tinha talvez um e oitenta? E ele tinha longos cabelos cor de palha que caíam sobre os ombros em cachos soltos. Seu rosto era redondo e não parecia ameaçador, embora eu tenha ficado nervosa com a forma que ele estava tão parado quando eu atendi a porta.
Perguntei se ele era o Sr. Lombardi e ele disse que não, mas que o Sr. Lombardi não viria, então ele tinha vindo no lugar dele. Não é incomum que alguns de nossos clientes enviem seus funcionários para fazerem as visitas por eles, por isso aquilo não pareceu estranho, mesmo que isso normalmente fosse organizado com antecedência, sabe? Eu só pensei que não tinha visto algum e-mail.
Eu estiquei a mão para um cumprimento, mas ele apenas olhou para ela e riu, mantendo as mãos firmes ao lado do corpo. Foi quando eu comecei a pensar que algo parecia estar errado, porque sua risada não... soava normal? Eu não sei como descrevê-la, mas não era... não era uma risada humana.
Eu deveria ter parado e saído de lá ou ter chamado a polícia, mas ele já tinha passado por mim e entrado na casa, então eu comecei a repassar o discurso de venda quase como um reflexo. Decidi que, já que ele não parecia estar me ameaçando propositalmente, eu só faria um resumo rápido da casa e sairia de lá o mais rápido possível. Ele era estranho, mas eu pensei que se ele realmente trabalhasse para os Lombardis eu não iria querer ser rude e ter que lidar com uma reclamação mais tarde. Então eu o levei pra dar uma olhada no lugar.
Ele me seguiu. Os olhos dele estavam sempre olhando para onde eu apontava, mas ele não parecia estar prestando atenção em nada, e ele não fazia nenhuma pergunta. Pelo menos não até chegarmos ao segundo andar.
Tínhamos acabado de subir as escadas para o andar superior da casa. Entrei no primeiro quarto e comecei a falar sobre o potencial que ele tinha para ser um quarto de criança ou de estudos. O teto era bem baixo, então pensei em avisá-lo para ter cuidado, mas quando olhei para trás ele não estava lá. Voltei para o corredor e o encontrei olhando para uma porta nova. Ele me perguntou o que tinha atrás dela e eu só fiquei ali, a encarando.
Era uma porta pequena e comum, pintada de amarelo escuro com uma maçaneta preta fosca. E ela não estava ali antes.
Eu já tinha andado por aquele andar milhares de vezes e eu definitivamente não me lembrava de ter aquilo ali. Não foi só que eu não tinha percebido ela, você tem que entender isso — ela *não* estava lá. Não tinha como ela estar lá, eu verifiquei a planta baixa que tinha comigo e obviamente não mostrava nenhuma porta. Era uma parede externa no segundo andar, não tinha como ter nada além dela exceto por um espaço vazio e uma queda significativa, mas eu tinha andado várias vezes pelo lado de fora enquanto mostrava o jardim e não havia absolutamente nenhuma porta visível ali, era só uma porta amarela escura que não tinha como estar ali.
O homem me perguntou mais uma vez o que tinha ali dentro e eu só fiquei lá, olhando para ele com a boca aberta em choque. Eu sinceramente não sei quanto tempo fiquei ali olhando pra ele. Aquele meu cliente esquisito não disse nada e eu já estava quase me esquecendo de que ele estava ali quando finalmente me decidi.
Estendi a mão e segurei a maçaneta. Estava quente. Eu a girei e, assim que o fiz, a porta se abriu. Eu não precisei nem puxar. Abriu devagar mas de forma deliberada, como se estivesse ansiosa para que eu entrasse. E além da soleira, onde deveria haver o ar vazio sobre o jardim, havia um corredor longo e sem janelas.
Estava iluminado por lâmpadas elétricas presas às paredes a cada três metros ou mais, e as paredes eram cobertas por um padrão verde rodopiante. Ao longo do carpete amarelo desbotado havia um tapete preto e grosso que desaparecia enquanto o caminho se curvava gradualmente para a esquerda.
Nas paredes havia algo que a princípio pareciam espelhos, mas eu logo percebi que, enquanto alguns deles eram mesmo espelhos, a maioria eram pinturas ou fotografias desse mesmo corredor de vários ângulos estranhos.
O negócio é que eu não me lembro de passar por aquela porta. Lembro de estar parada lá, olhando pra ela com aquele sentimento de pavor. E aí eu lembro de sentir uma onda de terror quando ouvi a porta se fechar atrás de mim com um clique. Eu me virei de costas mas não tinha maçaneta desse lado, só um espelho enorme e liso. Nele, eu me vi parada naquele corredor estranho e parecia que eu tinha chorado por horas. Eu bati, gritei, me joguei contra aquele rosto indiferente no espelho, e nada aconteceu. Ele nem sequer rachou.
Peguei meu celular. Minha cabeça estava confusa, mas... Eu não sei exatamente o que eu esperava fazer — ligar pra polícia, talvez? Pros meus colegas? Eu acho que eu só estava querendo ver a hora. Eu não fazia ideia de há quanto tempo eu estava lá.
Quando eu desbloqueei o celular, tudo o que tinha na tela era outra imagem do corredor, igual às pinturas na parede.
Então eu comecei a andar pelo corredor. Tipo... Quer dizer, não tinha mais nada que eu pudesse fazer. Ele continuava para frente sem parar, se curvando quase imperceptivelmente para a esquerda. Bem, de vez em quando aparecia um outro corredor virando bruscamente pra direita. No começo, evitei essas bifurcações pensando que se eu andasse o suficiente pelo corredor ele levaria a algum lugar. Mas depois do que pareceram quilômetros, finalmente decidi que virar em uma das curvas... não pioraria as coisas.
Os corredores paralelos eram idênticos. Havia espelhos e pinturas os refletindo por toda parte, e quando me virei, acho que devo ter me perdido? Porque a curva pra esquerda que me levaria de volta para o caminho da porta não estava— não estava mais lá. Era outro longo corredor com bifurcações para a direita.
Mas o papel de parede era de uma cor diferente, eu acho. Definitivamente mudou, mas eu nunca percebia ele mudando, eu simplesmente me tocava que não era mais vermelho enquanto eu estava andando — ou azul ou roxo ou qualquer que fosse a cor no momento. Todas as cores pareciam mudar naquele lugar. Mesmo o carpete amarelo ou o tapete preto... parecia que eu não podia confiar nos meus olhos.
Com base na data da minha reunião e no jornal que eu encontrei depois, acho que fiquei lá por três dias. Era impossível de saber lá dentro, embora eu não lembre de ter dormido ou até mesmo de me sentir cansada? Eu passei muito tempo só entrando em desespero, então talvez eu tenha dormido nesses momentos. Eu não tinha comida e nem água; eu fiquei muito alucinada no final. Estava muito quente lá e isso não ajudou, embora muitas vezes tenha parecido que eu não conseguia parar de tremer, como se estivesse com frio.
Eu estava quase desmaiando de exaustão quando eu vi. Estava bem longe, no final do corredor. Parecia quase humano à distância, mas quando se aproximou, eu percebi que era tudo menos isso.
Seu corpo era magro e flácido e, quando se movia, ele só mudava de posição, como se eu estivesse o observando através de água ondulante. Suas mãos estavam inchadas e partes delas se estendiam em ângulos estranhos. Ele estava se movendo rapidamente em minha direção e, enquanto eu olhava, vi que todas as fotos na parede agora mostravam aquela coisa — embora cada uma a distorcesse de um jeito diferente, como em uma casa de espelhos — mas todas elas mostravam as mãos bulbosas e pontiagudas.
Olhei em volta desesperada, tentando encontrar algum jeito de fugir. A coisa estava se aproximando cada vez mais, e eu podia ouvir aquela risada esquisita de novo. E aí eu vi. Uma moldura espelhada que não mostrava a criatura.
Não tinha porquê pensar que aquilo daria certo, mas eu não via outra escolha além de esperar pela morte, então eu me joguei nesse espelho vazio.
E num piscar de olhos eu estava livre. Senti o ar frio da noite no meu rosto e o asfalto molhado sob as minhas mãos e joelhos. Estava chovendo. Eu fui parar em Dulwich, de todos os lugares. Eu gritei por uns cinco minutos antes que alguém aparecesse pra me ajudar.
Não sei mais o que te dizer. Fiquei hospitalizada por um curto período até eles ficarem convencidos de que a desidratação não me causaria mais nenhum problema. E eu passei muito tempo em casa... sem abrir nenhuma porta.
Finalmente, depois da última crise de pesadelos, decidi vir até vocês pra contar a minha história. Talvez você consiga entender alguma coisa.
ARQUIVISTA
…Talvez. Pode deixar com a gente, nós vamos… fazer algumas investigações e ver o que conseguimos encontrar.
Helen: Então você acredita em mim?
Arquivista: Eu… Sim. Sim, acho que acredito. Mas tem uma coisa. Você diz que não lembra o nome do homem...
Helen: Eu… Eu acho que ele me disse, mas eu...
Arquivista: Não era "Michael", era?
Helen: …Sim! Michael! Era isso. Você conhece ele?
Arquivista: Talvez. Faremos algumas investigações e entraremos em contato com você, Srta. Richardson. Obrigado pela sua atenção.
Helen: Certo, então... vou deixar você cuidar disso.
[...]
Arquivista: Sasha!
Sasha: Desculpe, você me chamou?
Arquivista: Acabei de receber um depoimento de alguém que afirma ter encontrado o seu Michael.
Sasha: Michael? O Michael distorcido?
Arquivista: O próprio. Acho que não regravamos o seu depoimento sobre ele, né?
Sasha: A gente precisava?
Arquivista: Foi uma das fitas que desapareceram durante o ataque.
Sasha: Ah. Posso repetir, se você quiser, mas eu não vi mais ele.
Arquivista: E você não consegue pensar em mais nenhuma informação? Nada que tenha esquecido de mencionar da última vez?
Sasha: Não, acho que não. 
Arquivista: Hum. O que você tá fazendo agora?
Sasha: Reorganizando sua seção de “desacreditados”. Tá uma bagunça. Se me permite dizer, John, sinto que você tem estado um pouco menos cuidadoso com isso desde que voltou.
Arquivista: Ah, justo. Desculpa, eu... me avisa quando você terminar, eu queria muito ter você nesse caso.
Sasha: Certo, farei isso.
[...]
Michael: Você ao menos sabe que eles estão mentindo pra você?
Arquivista: Desculpa, eu não — posso ajudá-lo? Esse lugar está fora dos limites.
Michael: Eu discordo.
Arquivista: Quem deixou você entrar aqui?
Michael: "Deixou"? Acho que não é assim que funciona.
Arquivista: Você é ele. 
Michael: Sim.
Arquivista: Michael.
Michael: Esse é um nome verdadeiro.
Arquivista: Você veio aqui pra me matar?
Michael: Não.
Arquivista: Ah... Por que você... por que você tá aqui?
Michael: Estou apenas recolhendo o que é meu, Arquivista. Aquela que entrou no meu domínio.
Arquivista: A Srta. Richardson? Você é dono daqueles corredores?
Michael: Que pergunta fascinante. Sua mão, de alguma forma, é dona do seu estômago?
Arquivista:  Ah –
Michael: De qualquer forma, não importa — a andarilha teve um breve descanso, mas agora acabou.
Arquivista: Bem, você tá atrasado, ela foi embora!
Michael: Sim... ah... você notou por qual porta ela saiu?
Arquivista: Sim... espera... não, tinha—
Michael: Nunca existiu uma porta ali, Arquivista, sua mente está pergando peças em você.
Arquivista: Solta ela!
Michael: Não?
Arquivista: Traz ela de volta pra cá!
Michael: Você vai me atacar?
Arquivista: Quem é você, inferno?
Michael: Eu não sou um “quem”, Arquivista, eu sou um “o quê”. Um “quem” requer um grau de identidade que eu nunca poderia reter.
Arquivista: Então... Michael não é seu nome verdadeiro?
Michael: Não existe isso de nome verdadeiro.
Arquivista: Do que você tá falando?
Michael: Estou falando de mim mesmo. Não é algo que eu estou acostumado a fazer, então desculpa se não sou muito bom nisso.
Arquivista: Você decidiu aparecer aqui e me esfaquear mesmo assim.
Michael: Eu queria falar com você. Eu intervi pra te salvar antes. Estou interessado no que vai acontecer agora.
Arquivista: É, bem, obrigado por isso, eu acho... E você ainda não me disse por que “interveio” afinal de contas.
Michael: Normalmente eu sou neutro. Mas a perda desse lugar teria desequilibrado a luta cedo demais. Estou ansioso pra ver como ela vai progredir.
Arquivista: Você tá fazendo parecer que existe uma... guerra.
Michael: Então não vou dizer mais nada. Eu não gostaria de manchar sua ignorância tão cedo. Adeus, Arquivista.
Arquivista: Espera! Ah... ah… Michael? Michael! Ah. Fim da gravação.
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