Tumgik
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Nem a morte.
A rua estava deserta, não se via vivalma que pudesse testemunhar a tristeza profunda que ele sentia naquele lugar onde a tinha visto pela última vez e onde ela lhe dissera as palavras que estavam agora nuas, sem que as pudesse vestir na boca. Essas palavras rodavam num loop violentíssimo, dentro da sua cabeça: “Onde quer que esteja”. “Onde quer que esteja.“ "Onde quer que esteja.” “Onde quer que esteja”. Lembrava-se bem de como os olhos dela estavam baços de dor e chorou, desesperadamente, desejando que ela aparecesse naquele instante. Havia,  desde o primeiro cruzar de olhares entre os dois, a sensação de que já se tinham conhecido num passado longínquo, numa outra dimensão ou tempo. O sentimento tão agradável quanto misterioso que os fazia sentirem-se outra vez em casa quando estavam juntos afigurava-se recíproco, decorrendo, apenas, sem que nenhum dos dois tivesse necessidade de o explicar. O amor que viviam havia tido condições para florescer apenas pelo que jorrara dos seus dois corações e das suas mentes emparelhados. O que os unia naquele tempo-espaço era sentido, real, verdadeiro, porque cada um detinha a sua personalidade própria, os seus traços e cores, os seus gostos e a sua forma de pensar o mundo. Amavam-se porque viam o quanto o outro era peculiar, único e, noutra palavra, insubstituível. Tinham tudo o que era preciso para viverem felizes e realizados.
Numa fatídica tarde de janeiro, em pleno inverno, ela estava à sua espera naquela rua, perto do restaurante onde tinham combinado jantar quando surge um fulano para lhe roubar a carteira. Ela, corajosa e forte nas suas convicções, resistiu ao assalto. O ladrão, sem meias medidas, espetou a faca com a qual a havia ameaçado, no ventre. Quando ele chegou já o ladrão tinha fugido e ela estava deitada no chão sobre uma piscina imensa de sangue. Tremendo, pálida, sem forças, olhou-o nos olhos e balbuciou: “Amar-te-ei como até aqui. Onde quer que esteja.”
Seguiu-se às suas palavras aquela que não conhece justiça nem princípio algum. Veio a morte e com ela, a razão pela qual não puderam continuar a viver o seu amor.
Duas notas:
1) Este texto fez-me pensar que a morte priva-nos da vida de quem gostamos mas não os mata. Valha-nos isso, apesar da dor.
2) Foi-me complicado pensar no fim de algo que sinto estar ainda a começar. Consigo ver-nos no futuro, muito felizes. Assim o queiramos e façamos por isso.
#desafio11 #desculpaoatraso #ondequerqueesteja
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Numa outra esfera
Num outro tempo, espaço, universo estivemos juntos. O que nos une não é capaz de ser enclausurado neste presente. A sua dimensão extravasa os limites conhecidos da nossa, actual, mortalidade. É, antes, antigo; fruto do labor paciente de várias existências. Talvez estejamos apenas a viver mais uma das suas (e nossas) múltiplas encarnações. Talvez as outras não tenham sido possíveis ou, tendo sido, não conseguiram diluir o fragor com que se revela nos nossos corações, tão intensa. Será possível amar demais? Tão intensamente que nos abafe? Que faça alguém perder-se de quem é pela simples vontade de amar outro? Sinceramente não sei mas não o sinto plausível. Sinto, contrariamente que um grande amor tudo oblitera menos quem o sente. Quem o sente, eleva-se, transcende-se. Tal como este amor transcende a física e os limites que esta teoriza.
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Acordares
Acordo e, ainda de olhos fechados, sinto a tua presença, o teu buliço. A força do teu despertar agita e anima-me; faz-me crer que a vida que me espera lá fora não me vai pesar já que te posso abraçar quando voltar à segurança do teu porto. Nele escolhi amarar não num dia de tempestade mas de boa ventura. Aquilo que descobri e o que me surpreende todos os dias faz-me querer ficar. Tu e os nossos planos tornaram-se casa e as minhas raízes plantadas aos teus pés, regado sou pela tua luz diariamente. Sei que tenho o barco fundeado ao largo mas não sinto a mínima necessidade de embarcar.
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À Ribeira
Eram oito da manhã de um sábado primaveril. Rita acordara cedo para aproveitar o dia com as suas duas filhas. Mário, o seu companheiro, cardiologista no hospital público da cidade,  ficara a dormir mais um pouco pois estivera de banco a noite toda. Ainda na cama mas já a vislumbrar o sol reluzente pela janela, Rita interrompe o seu amor ressonador do lado.
- Querido, vou levar as pequenitas à Ribeira. Está um dia bonito, quero mostrar-lhes aquele esplendor onde tantas vezes perdi a noção do tempo e me deixei ficar a escrever. Quero que conheçam o local que inspirou o meu livro. O que achas? Vais lá ter connosco mais tarde?
- Sim minha luz. Quando acordar ligo-vos para saber onde estão. Acho óptimo que as leves lá. Vão adorar, garantidamente.
Rita sorriu-lhe e beijou-o apaixonadamente.
-Até já meu querido.
Depois de vestir as duas meninas, deu-lhes o pequeno-almoço, deixou-as ver quinze minutos de desenhos animados enquanto se arranjava e lá sairam. Desciam agora a rua, de mãos dadas, a caminho do carro.
- Meus amores, toca a apertar os cintos. Vamos partir à descoberta dos encantos da Ribeira. Vamos ouvir quais os segredos que o Rio Douro tem para nos contar.
Pelas dez chegaram à Ribeira.  Começaram o percurso a pé,  desde a ponte D. Luís I em direcção à Foz. Estava um dia maravilhoso, podia ver-se com nitidez a margem de Gaia, os pequenos barcos coloridos atracados ao cais bem como os transeuntes e os ciclistas,  uns em cadência de passeio, outros em cadência de treino. À medida que foram passeando de mãos dadas e corações unidos, Rita foi contando as suas lembranças daquele local e de como tinha dali retirado inspiração para escrever o seu romance. Sentia-se misteriosamente em casa. Tudo o que lhes contava e mostrava “in loco” convergia para os detalhes e para a simplicidade daquela ribeira. As casas muito pitorescas, simples, muito portuguesas. Os estendais carregados de roupa, os santos pendurados nas paredes, o cheiro a sopa de legumes e cozido, as portas baixas, as vizinhas reunidas à beira das casas na amena cavaqueira, as mensagens de acolhimento do tipo "sejas bem-vindo se vieres por bem" e "nesta casa há pão e vinho para partilhar.” O Douro corria ali muito tímido, quase que nem davam por ele, mas não estava menos magnífico por isso. Corria simplesmente sereno até se juntar ao mar, fazendo-lhes amigável companhia durante o passeio. Rita apreciava a forma como o prosaico se misturava ali com o distinto gerando uma infinidade de novas possibilidades. Era isso que a maravilhava, aquela mescla surpreendente de conceitos antípodas, tudo o que aquelas pequenas coisas aparentemente insignificantes traziam dentro de si eram oportunidades para encher a alma de paz, faziam-na sentir-se acolhida, bem guardada. A Ribeira era isso mesmo. Um refúgio inspirador, um passeio de pequenas possibilidades de crescimento interior. Observá-las era um deleite verdadeiramente magnífico.  
-Vamos parar aqui nesta esplanada meus amores. Foi aqui, no Bacalhau, que comecei a escrever o " Sétimo". Estão a ver esta janela para o paraíso? Não é fantástica a vista?
-Sim!!! _ Retorquíram em uníssono as princesas.
-Mamã, porque escreveste um livro? _ Perguntou a Vera, a mais curiosa das duas irmãs.
- Meu doce, eu queria acima de tudo deixar no mundo algo meu, um bocadinho de mim que pudesse viver mais do que eu. Queria partilhar com os outros um pedaço da minha criatividade esperando, naturalmente, que ela pudesse de alguma forma tocar a alma de alguém. Achei que me devia desafiar a saber se aquilo que sou penso e imagino tem interesse para os outros.
-Para mim tem mãe.
Rita sorriu e abraçou Vera com uma ternura incomensurável.
- Rita, és mesmo tu? Não acredito. _Ouviu-se.
Era a voz dele. O homem que dois anos antes tinha deixado Rita numa ilha onde o amor, a amizade e a verdade escasseavam. O homem que a tinha partido em mil pedaços e a fizera acreditar que não valia nada. Era a voz dele que agora ouvia e ela, receosa, hesitou alguns segundos antes de se virar.
- Olá. _ cumprimentou-o com frieza.
Não se moveu para lhe beijar a face conseguindo disfarçar o incómodo que aquele reencontro lhe estava a causar.  
-Já não te via há dois anos. Estás boa? Novidades?
Ainda bem que não nos cruzámos antes, pensou Rita.
- É verdade, já passou algum tempo desde que nos separámos. Eu estou melhor do que nunca, muito feliz. Atravesso uma das melhores fases da minha existência. Escrevi um livro, encontrei o amor da minha vida e fui mãe. Aprendi a amar-me devagarinho.    
- Uma árvore já tinhas plantado comigo em Mafra. Bom, vejo que cumpriste o cliché. Não te resta fazer mais nada até morrer. A edição do livro foi paga por ti?
- Não... Vejo que continuas o mesmo crente no meu talento de sempre. E parvo também.
- Some things never change. _disse Nuno, sarcasticamente.
- Eu mudei em boa altura. Deixar-te foi o meu grito do Ipiranga. Ainda bem que consegui curar-me da cegueira que me proporcionaste durante uma década e não percebo porque insistes em falar-me se não tens nada de interessante para me dizer.
- O que poderia eu dizer?
- Desculpa? _Referiu Rita.
- Desculpa por te ter amado como nunca amei ninguém na minha vida?
- O que tu sentiste não foi amor Nuno. Ainda não percebeste que apenas deste amor em micro doses, muito efémeras, porque não te libertas do teu narcisismo e do teu ego?  O verbo amar é transitivo, não é compatível com verbos como depender, subjugar, prender, isolar e ostracizar. Tu usaste todos eles comigo, na primeira pessoa, durante todos os anos que te dediquei e te amei. Amar-te fez-me muito mal. Abriste feridas em partes de mim que ainda não sei se vou conseguir sarar.  Amar é ter prazer em ver o outro voar bem alto e sentir orgulho por tudo o ele consegue e realiza. Amar é criar espaço, tempo e esperança para o outro, não é restringi-lo nem menorizá-lo. É ouvir o mundo inteiro no peito de alguém. No silêncio de alguém. Não é isolar a pessoa amada do mundo inteiro nem substituir os silêncios que se pretendem tranquilizadores por gritos e insultos sem sentido.
- Foda-se Rita. Vejo que continuas uma especialista em espezinhar-me com as tuas palavras de terceira categoria. Não vales nada.
- Querida Rita! _ grita Mário a uns metros de distância.
Nuno afasta-se de Rita e das duas meninas e desata a correr.
- Ainda bem que chegaste meu querido. Salvaste-me uma vez mais. Safaste-me de mais um filme de terror e medo.
- Mãe, quem era aquele senhor que estava a falar contigo?
- Era um fantasma, meu amor. Um fantasma sem importância. Já foi embora, não te preocupes.
Rita olhou Mário com cumplicidade. Pretendia contar-lhe mais tarde o que se havia sucedido mas naquele momento conseguiu apenas sorrir de alívio. Acima de tudo estava agradecida por tudo o que a vida lhe tinha proporcionado. Estava ali, à sua frente, o seu maior tesouro. As duas filhas e o seu companheiro. Com eles, o passado magoava menos. Ganhava legitimidade.
VF
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Coração partido por interposta pessoa
No início não me apercebi. Posso tentar desculpar-me dizendo que foi sem intenção, sem noção, sem vontade. Isso faz de mim ingénuo ou estúpido. A verdade é que soube-me bem ter o ego massajado, que há tanto tempo não o era. Encontrei-a por acaso, uma daquelas coincidências que teimam em coincidir nas alturas em que devem. Na verdade, fui encontrado, mas a procura deveu-se a questões práticas e não pela busca de contacto. Respondi genuinamente sendo eu mesmo, nada mais que isso. Não desminto que a minha curiosidade se aguçou mas, também, não por acção directa. É estranho encontrar um estranho que partilha tanto do que somos e que escasseia no nosso mundo. É bom ter o ego massajado quando se riem das nossas piadas ainda que a piada esteja apenas na interpretação e não no conteúdo. Isso é coincidência. Eu não tinha noção de como as relações crescem. Acho que nunca havia pensado nisso antes. Penso que seja pela curiosidade, aditivada pelas coisas comuns que fazem ver-mo-nos no outro, tipo checklist "got it/ain't got it". Esse processo de avaliação do outro sinto-o como contínuo. Faço-o se a toda a hora. Estou constantemente a descobrir pontos de semelhança/diferença em todos. Se calhar é a minha empatia a trabalhar. Se calhar é a minha vontade de imitar os outros para encontrar o meu lugar. Estranha contradição, eu sei, mas sinto essa necessidade desde que me conheço. Sei que é por imitação que aprendemos a viver em sociedade mas não creio que seja comum ter a consciência disso. Passaram os dias, já não tenho a certeza de ter falado dela. O mais provável é não o ter feito a quem devia, para partilhar a alegria de trocar piadas com desconhecidos. Se não o fiz, foi por medo, por receio do que pudesse despoletar no nosso já extremamente frágil status quo. Atingiu-me como um comboio desgovernado. Tive de lhe dizer imediatamente que me havia apaixonado. Que as nossas conversas me elevaram o espírito e que a curiosidade queimava. Sei que me apaixonei por um ser idealizado, sem grande conhecimento da realidade. Sou ingénuo, sim. Mas isso dá-me tranquilidade para não sofrer por antecipação. Aí, nesse momento correspondido, soube que chegara a hora de avançar com o plano já tantas vezes revisto que habitava os meus pensamentos diários há anos. Era chegada a hora de mostrar a mão e saltar no precipício. O "salto de fé" do Indiana Jones. Não fé nela, mas em mim. Foi muito mais difícil assim. Não foi percebido assim por quem disse que me conhecia. É pena.
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Entrevista a um urinol
Hoje entrevistamos um urinol público. Dedicado a esta nobre profissão desde tenra idade, será hoje um indivíduo realizado? Quais os desafios que enfrenta diariamente? Quais os objectivos futuros desta cativante personagem do dia a dia?
Jornalista: Muito boa tarde, senhor urinol. Elucide-nos quanto à sua nobre arte. Urinol: Boa tarde. O meu nome é Miguel, até há amigos meus que me chamam Mike, naquela de do Mike Tório, só que eu não sou Tório, sou Fernandes, mas eu também não levo a mal. Eu também conheço o Quim Torneiro e ele não é Quim, é Manuel. J: Bem, e quanto à sua profissão? U: Bom, eu sou urinol desde que nasci, basicamente. Sempre fui urinol e sempre serei urinol. É uma arte de família, o meu pai era urinol, o meu avô idem… J: O seu bisavô também… U: Não, por acaso não. Esse senhor era um gandulo, um vadio, sabe? Ganhava a vida como penico. Sempre de um lado para o outro, nunca parava muito tempo no mesmo sítio. Desconfio até que tenho muitos parentes espalhados pelas casas de banho do país. É a ovelha negra da família. J: Percebo. Então e como é que se decidiu a seguir as pisadas dos seus antepassados? U: Olhe, isto não foi bem uma escolha, está a ver? Eu não acordei um dia e decidi ser urinol. Eu já nasci urinol! J: Mas a sua profissão fascina-o, não? Afinal, é completamente devotado a essa missão. U: Tenho a dizer-lhe que não. Se eu quisesse ver trombas o dia todo tinha ido para urologista ou tratador de elefantes ou trabalhar nas Finanças, não é? J: Suponho que sim… U: Pois. Além de serem profissões com mais reconhecimento. Tirando as Finanças, claro. J: Claro. E a sua família, como vê a sua profissão? U: Olhe, não vê muito bem porque eu sou urinol num bar gay e a minha família é toda muito católica, por isso… Tenho é uns primos que trabalham comigo, mas esses também não vêem grande coisa do meu trabalho porque estamos separados por aquelas divisórias de aglomerado forradas a fórmica. Forradas é como quem diz, porque aquilo está num estado que valha-me Deus! É que eu não percebo como é que é possível dar cabo da fórmica enquanto se mi… urina, vá…! J: Pois, é uma boa questão, de facto. E então quais são os seus planos futuros? Existem? U: Bom, lá existir, existem mas eu já quase que abandonei a esperança. J: Então mas porquê? O Miguel ainda é jovem, tem muito tempo para concretizar os seus sonhos. U: Pois, tá bem. Só que o meu sonho era ser urinol numa casa de família. Ter uma vida mais descansada, conhecer toda a gente que me visita… J: Compreendo o seu drama. Não há muitos urinóis em casas. U: Exacto, nem em apartamentos. Que variadas vezes nem banheira têm mas um sacana de um bidé, Ah! Isso é que não pode faltar! Você já viu alguém usar um bidé? Quantas vezes? Não é muito mais útil um urinol? J: Suponho… U: Até porque nós, urinóis, temos o poder de trazer paz ao mundo. J: Paz? Como assim? U: Um urinol pode acabar com as discussões mais violentas no seio das famílias! J: Quais discussões? Sobre heranças? Não estou a ver a relação, desculpe. U: Quantas vezes não se geram discussões piores que o conflito no médio oriente porque alguém se esqueceu da tampa da sanita levantada e ninguém se lembra de quem foi o último a lá ir? Os urinóis nem tampa têm! J: Ah! Pois, faz sentido.
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A culpa de um escritor que não o é só pelas metáforas que não usa
Recordava aquele acidente todos os dias. Por vezes, ao acordar, via o mundo à sua volta tão turvo como naquela manhã de chuva torrencial, extremamente fria, com nevoeiro denso. A manhã apresentava-se tenebrosa e sombria e ele, conduzia cansado já só pensando em chegar a casa rapidamente. A semana de trabalho havia sido muito violenta e ele só desejava chegar aos braços da família, poder finalmente descansar. Lembrava-se daquela manhã todos os dias, uma vez por dia, ora de manhã ora à noite. Lembrava-se nitidamente do nevoeiro fazer a estrada parecer um céu carregado de nuvens avistado nas montanhas e de ver a morte por um canudo, muito perto. Perdera a orientação, a razão e os sentidos. Naquela viagem de regresso a casa, abusou dos limites de velocidade permitida sem sequer equacionar travar nem reduzir a velocidade. Ao invés e apesar de cansado, acelerou mais e mais. A fundo. Acabara por cometeu um erro que lhe viria a custar o resto da vida.
Lembra-se com clareza de acordar do desmaio dentro do carro, conseguir sair dele a muito custo, com o corpo dorido, de dar uns passos até ao carro no qual batera violentamente, ver sangue por todo o lado e os cadáveres de  um pai na casa dos quarenta e da sua filha adorada, uma menina com um coração de pernas longas já sem cor nem vida. O cenário de morte era hediondo, verdadeiramente sórdido.
Voltou a desmaiar, desta feita na estrada, por um longo período de tempo. Quando acordou, já no hospital, dois meses depois de um coma profundo, começou a sentir culpa pois só se lembrava daquela manhã na qual o seu estulto erro roubara a vida a duas pessoas. A culpa era uma enganadora persistente que o aprisionava nas suas garras.
Outras vezes, ao adormecer, revisitava todos os segundos e milionésimos de segundo daquela manhã de pânico e dor. Revisitava o cenário sangrento, o cheiro a morte e o silêncio da perda. Tudo o que se lembrava de si próprio estava ali, naquela manhã, condensado. Eram as únicas memórias que tinha. Sem outra memória nem referências, entregue exclusivamente ao agora e à sua resistência à culpa,  ele era um homem sorumbático à deriva, muito só e triste.  
Certo dia, durante a viagem de regresso a casa de autocarro – nunca mais conduzira desde aquele acidente, decidiu começar a arrumar a tralha do escritório por razão meramente aleatória e desinteressante: só porque sim. No meio das papeladas, dossiers e todos os objectos no escritório encontrou um baú e dentro dele os seus diários de pré-adolescente, adolescente e jovem adulto.  
Começou a lê-los desenfreadamente, pelo caderno preto que tinha escrito em letras vermelhas garrafais “1996”.
“A primeira mentira que disse a mim próprio foi que a minha mãe não tinha sido violada. Que um preto qualquer não a tinha rasgado em mil pedaços, por dentro e por fora, num beco de uma rua qualquer. A minha mãe não foi violada selvaticamente. É uma mulher perfeitamente normal.  (...)”
Continuou, pois, a ler as suas próprias palavras e a tentar estimular o regresso da sua memória e do seu passado. O que mais queria era deixar de sentir o vazio que a sua amnésia provocava. Saber de onde vinha era-lhe fundamental para decidir que caminho seguir, conhecer-se a si próprio e preparar um futuro à sua medida.
Uma homem sem passado é um mistério ambulante volátil, sem identidade nem controlo, capaz de se transformar em qualquer coisa de um minuto para o outro. Por isso o que ele queria era preencher a memória com outra história que não a da manhã do seu acidente. Aniquilar a culpa era libertar-se da sua prisão, dos remorsos e da sua consequente queda para a auto-punição/destruição. Um homem tem de saber de onde veio e como chegou ao seu presente.Continuou a ler-se, horas a fio, cheio de esperança de se encontrar novamente consigo.    
VF
#desafio9 #estecustou #continuavanaboa #esperoquegostes 
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Lugar ao sol.
Ela estava mais nervosa do que nunca. As pernas tremiam e as mãos, suadas, encerravam-se uma na outra com força.  Era a adrenalina em estado puro, a renúncia da razão e da confiança, e os sinais eram evidentes disso mesmo. A sala de espectáculos não estando cheia, tinha nela alguns críticos de música importantes, para além da família e amigos que ela não queria desiludir nem deixar ficar mal. Sempre sentira uma pressão maior a cantar para conhecidos porque era essa gente, os seus, que sabiam que não havia outra coisa tão importante para ela como a música. Conheciam-lhe os segredos, as formas, os trejeitos todos e ela, por muito que tentasse no palco encarnar uma outra personagem para se defender da sua deficiente auto-estima, sabia que se eles lá estivessem tal não seria possível. Estaria mais exposta, mais frágil, mais ela, devia-lhes essa genuinidade. A dez minutos do início da sua actuação recebera no camarim o seu amado que a ajudara a relaxar os músculos e a sossegar a alma mas faltavam agora cinco minutos e ela pedira-lhe alguns momentos sozinha para se focar no que era essencial, afinal, ia dar-se por inteiro à plateia e, no melhor dos cenários, como era sua intenção, deixar um pouco de si no coração e na memória de quem tinha escolhido ouvi-la naquela noite. Já em êxtase, por antecipação, fechou os olhos, respirou fundo e recordou parcelas da sua infância, esses lugares de paz e felicidade gigantes, mágicos, imensamente profícuos e libertadores. As memórias de infância eram lugares onde voltava sempre que sentia a necessidade de ser amada, segura e amparada. Para além disso, começara a cantar muito cedo, aos cinco anos, e nessa altura percebera que tinha sido abençoada com o dom de voar bem alto com a voz para perceber as imperfeições do mundo e aceitar a fragilidade das pessoas. Regressar à infância era, pois, lembrar-se que cantava desde sempre. No regresso à infância recordou-se do espanador que servia de microfone, do xaile da avó que se transformava em peruca de cantora, dos concursos de música e talentos que imaginava e nos quais criava as mais suis generis personagens exagerando os trejeitos mais esquisitos de alguns adultos que com aquela idade ainda não compreendia. Apeteceu-lhe naquele espasmo de recordação fazer novamente corridas de bicicleta e esfolar os joelhos, correr atrás das galinhas da quinta da sua avó e ir colher amoras selvagens para ficar com a roupa tingida de vermelho. Apeteceu-lhe novamente subir a uma árvore para construir uma casa, um refúgio só dela, onde podia sonhar acordada com palcos, plateias e cantar livremente. A infância tinha sido uma janela com vista para a descoberta, para o céu azul de todos os começos, uma oportunidade para se abrir ao mundo convencida que o tinha na mão. O mundo era muito maior do que ela mas isso não lhe metia medo, antes pelo contrário, desafiava-a a crescer, a aproximar-se do seu tamanho.
Do outro lado da porta do camarim ouve-se:
- Falta um minuto para começarmos.
- Ai merda. Merda, merda, merda! “Cum caroço”, isto vai mesmo acontecer.
Todas as contradições ali, condensadas, em ebulição, mas ela, provida da dose certa de optimismo e vontade, abre a porta e segue para as escadas de acesso ao palco.  Pensa que aquela sua pulsão é simples. Vem de tudo o que não pôde, de tudo o que não chegou, de tudo o que lhe falta e que o máximo que pode acontecer-lhe é isso continuar na mesma. Ela só vai tentar, só se vai dar, só quer ser feliz ali, no palco, mais uma vez.
Dá meia dúzia de passos em frente. As luzes acendem-se e o público, maioritariamente família, amigos e alguns críticos de música relevantes, recebem-na com palmas.
#Comumligeiroatraso #sorry #esperoqueaprecies #dousempretudo #tentarnaocusta #soumesmofelizcontigo #cantaranima #avidaebela
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A puta da vidinha
Fazia já um ano que se tinham conhecido. Ele deambulava em palco, no seu casulo rítmico agarrado ao seu baixo. Ela emprestava, pela primeira vez, a sua voz grave e quente, sussurrada, às melodias indie folk wannabe da banda. A sala não estava cheia, o que a ele lhe permitia uma maior descontração (ou distração, como se preferir encarar). Olhava curioso para o gingar das ancas dela, a forma como se meneava ao som da música como que embalada por um mar encarneirado. A dado momento, percebeu que a ondulação do corpo dela se havia sincronizado com as notas que ele produzia. Sentiu-se tão fortemente ligado a ela que acabou por "meter um prego" de tanto que se distraiu. Ela era portuguesa, nascida e criada em Moçambique, não muito longe de Maputo. Branca por fora mas alma e sangue de negra por dentro. Uma branca com a terra enraizada e viva e alegre de África. Uma branca com cheiro a capim, a terra molhada e a fruta madura. Tinha crescido a correr livre pelas hortas e prados, sem hora de partir nem de chegar, livre. Aprendeu a usar todos os sentidos para conhecer o mundo mas, mais que a audição, que lhe desviava olhar e pensamento, era o olfacto que mais mexia com ela. Dir-se-ia que o seu vocabulário olfactivo tinha vários volumes, não podia ser compreendido ou definido por palavras já conhecidas. Apesar de toda a dimensão desse sentido, dado que só se consegue fazer vida do olfacto em laboratórios ou entre quaisquer quatro paredes, o desejo de liberdade levou-a para a música. Pôde assim correr o mundo a cantar, emprestando a voz aos mais diversos projectos e estilos. Com essa escolha conseguia ser verdadeiramente livre e ainda descobrir mais odores. Fascinava-a o cheiro a bafio dos palcos, o das cidades encharcadas, das bebidas nos bares e tascas e o do suor dos amantes, ébrios de paixão e êxtase. Ele, há muito que descobrira como a música alimenta paixões e inflama tesões e, naquele instante, apercebe-se como estava inflamado. Em palco. Vale-lhe que a sala está escura e semi-despida e ela de costas. Acabado o concerto, o convite para um copo e dois dedos de conversa. Surpreso (porquê ele?), tartamundeou um tímido assentimento. Iria, com muito gosto. Não mais a tinha visto, pela boa parte do ano, desde aquele fim de noite, início de manhã, em que acordou com o rebuliço da partida dela, deixando um lugar vazio, morno, na cama dele. A verdade é que, pela boa parte do ano, não mais aquela cama tinha visto outro casal. Soube da vinda dela a Antuérpia por um amigo. Não tinha querido procurá-la ou segui-la, preservando aquela noite como algo místico e inexplicável mas, face à inesperada presença dela tão perto, todo o seu corpo se agitou e incendiou novamente, de paixão. Ela chegou duas horas antes do concerto. Ia emprestar a voz, aquela voz, à música que um amigo ia dedilhar numa velha viola. A sala era pequena (as melhores) e parcamente iluminada. A acústica, típica de uma casa de madeira, e os odores também. Madeira, cera, tabaco e pó. Por muito mundo que conhecesse, aqueles eram sempre a marca de casa. Ele chegou hora e meia antes da hora. Conhecia o dono e pôde entrar e dirigir-se acanhadamente ao camarim dela. Aí, pela porta mal fechada, viu-lhe a silhueta iluminada e a sombra projectada na parede repleta de fotografias. A Ella Fitzgerald gemia num velho gira-discos. A voz dela, aquela voz, murmurava em sintonia. Bateu à porta com os nós dos dedos médio e indicador duas vezes. - Quem chega? - ouve do lado de lá. - Sou eu. - diz, com voz sumida. Ela abre a porta e, com os olhos arregalados e brilhantes, dá dois passos atrás, antes de se lhe atirar ao pescoço e beijá-lo demoradamente. Caíram no chão e deram expressão corpórea e carnal ao desejo que ambos sentiam pela boa parte do ano. Faltam dez minutos para o concerto. Ela tem de se preparar. Ainda a senti-la nos braços e no corpo, pede-lhe que fique depois do concerto. Que fique uma semana, um mês, um ano. - Não quero. Não me dou em gaiolas. As minhas asas são para voar. Não quero definhar presa a ti. Sou livre e vou continuar a ser. Esta noite foi o epílogo da nossa história. Espero que venhas a ser feliz e que a vida te dê o que procuras. - Adeus então. - disse ele com os olhos brilhantes, marejados de lágrimas.
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Será o que tiver de ser.
Chegara de França com a certeza de que apesar dela ter sido uma espiã ao serviço do inimigo também era a mulher que ele amava e esse lugar sagrado tinha sido conquistado por tudo o que haviam vivido juntos. Não era feito de opiniões, do passado de ambos nem de suposições. Era real e tinha sido experenciado por ambos. O amor pode ser um engano, um egoísmo profundo, mas naquele caso era de facto real, feito de cada conversa, cada olhar, cada cuidado, cada toque que ambos haviam trocado com honestidade e transparência. É-me díficil escrever sobre o amor. Penso que ele tem de ser vivido e guardado dentro de quem o vive, que quando existe, é mesmo real, resta apenas vivê-lo e eternizá-lo dentro de nós. As palavras raramente servem, não fazem jus à magnificiência dos sentimentos. Admito que se consigam aproximar mas não serão capazes de transmitir integralmente o que se sente, a intensidade do que se sente. Por isso me parece sempre uma perda de tempo escrever sobre o amor. Mas esta história não é sobre mim, mera narradora de um final de história, ou melhor, de um final que será, no mais optimista dos cenários, um príncipio de um novo capítulo destas três personagens: ele, ela e da sua menina, Luz.
Ele preparava agora o avião que os levaria a um destino onde pudessem viver em paz, ser plenamente felizes. Ela não podia voltar atrás no tempo e apagar a sua traição ao país e de certo modo a ele. Devia ter contado mais cedo tudo o que havia feito, devia ter confiado que isso não teria impedido que o amor entre os dois acontecesse, estava arrependida de não o ter feito mais cedo. Mas a verdade era, como é, sempre, soberana. Ela tinha agido sempre em concomitência com o que sentira por ele e isso chegava-lhe para se perdoar, para seguir em frente. A ele também, o passado estava enterrado e dele tinham apenas retirado o essencial, as devidas lições. Ela, já reformada da cegueira de uma vida de fantasia, lúxurias e falsas expectativas, tinha sentido pela primeira e única vez um amor por ele tão forte, tão acima do que pensara ser possível, que não concebia já uma vida sem ele. Aterrara nele por mero acaso, sem querer nem precisar dele. Escolhia-o, gozando plenamente do seu livre arbítrio, sem saber nem sequer se preocupar com o futuro. Isso logo se veria. Agora restava apenas a certeza de que estava pronta para o perder, se as vissicitudes da vida assim o ditassem tal como estava preparada para o amar. O peso do risco era pouco quando comparado com o que ele lhe dava, todos os dias: alimento da alma, da mente e do coração.
Chegou-se perto do avião, carregando a Luz ao colo, e perguntou:
- Qual é o destino?
Ele olhou-as com ternura e tranquilidade e respondeu:
- O destino é numa terra qualquer porque onde possamos pousar os pés e caminhar juntos. Tu sabes que o meu destino são os nossos sorrisos, as nossas lágrimas e os nossos sonhos por concretizar. Anda. Temos de partir.
Deu-lhe a mão apertando-a firmemente e ajudou-as a subir as escadas de acesso ao avião. Apertaram os cintos, olharam-se com cumplicidade e descolaram, subiram muito acima das nuvens e dos medos.
O final desta história fica por escrever. Para já sabemos que aterraram um no outro e são felizes. Como narradora desta história decido remeter-me à minha insignificância. Há melhor do que deixar a vida ficcional acontecer, algures?
#vivaaficcao #obrigadapelosdesafios #prontaparadescolar  #desafio7
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Depois da tempestade
Esbaforido, depois de ter atravessado a ponte a buzinar, invectivar e ultrapassar tudo e todos (inclusivamente limites de velocidade e semáforos vermelhos), chegou à recepção do hospital, onde uma figura miudinha e ensonada se lhe dirige, sem sequer levantar o olhar. - Qual é a urgência? - perguntou sarcasticamente. - A minha companheira deu entrada neste hospital há cerca de uma hora. Recebi uma chamada de alguém a informar-me. Pode dizer-me em que ala? Lá disse o nome que agora, naquela circunstância lhe custava pronunciar. Estava aterrado. Não havia muitos anos que a tinha conhecido e desde então tinha descoberto tanto sobre o mundo, o amor e a felicidade que a ideia de a não poder abraçar naquele momento e nos momentos seguintes lhe empedernia o peito e lhe esmagava a respiração. - Não consta nas urgências. - disse a figura, sem o mínimo de compaixão e ficou a olhar impávida, como se o assunto tivesse acabado ali. Por acaso, ou destino ou intervenção cósmica, quando desviou o olhar para o lado, a ganhar fôlego para partir para a ignorância e debitar todo o seu vocabulário de impropérios aos ouvidos daquele ser amorfo que se apresentava à sua frente pateticamente, os seus olhos pousaram na figura do doutor Marques. O doutor Marques era uma figura presente na vida dela há já mais de uma década. Estava também na vida dele desde que a conhecera. Correu para ele como se tivesse acabado de ver Deus. - Doutor! - clamou. - Então, por aqui? Passa-se alguma coisa? - Sim doutor, ela foi encontrada na rua, desacordada e disseram-me que tinha sido admitida aqui mas a administrativa não a consegue encontrar, quanto a mim por má vontade e... - Eu vou encontrá-la. Venha comigo. Não vou permitir que ela passe mais um minuto que seja sozinha. Dirigiu-se à recepção, entrou pela porta lateral e arrancou a cadeira de baixo do traseiro da enquistada funcionária. - Ora bem, ela de facto deu entrada nas urgências mas foi transferida para a maternidade. Vamos lá! O coração dele quase lhe saltou pela boca e a cabeça pareceu trespassada por mil agulhas. - Então homem? - berrou-lhe o doutor Marques - Não é hora para mariquices, pá! Ela estava grávida. Tinha-lhe escapado esse facto com o desespero. Agora tinha caído em si. Estava ainda mais atormentado e sentia o sangue secar-lhe nas veias. Cambaleando de dor, seguiu o doutor com as pernas trémulas e a quererem ceder mas, mal entrou no elevador, recompôs-se dizendo para si: "Este não é o momento de ser fraco, é o de ser forte! Tu consegues!" Chegados ao quarto 77 (poderia ser outro?) as lágrimas finalmente brotaram. Nem foi bem brotar, mas surgiram numa enxurrada tal que o deixaram quase cego. No quarto, nos braços dela, repousam tranquilas a Mariana e a Susana. No rosto, um sorriso rasgado e uns olhos brilhantes e cândidos. - Desculpa, não consegui aguentar o último mês. Elas quiseram conhecer-te mais cedo. #desafio7 #naoechagasfreitas #esperoquegostes #eficcao #hapessoasboas
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Casualidades não essenciais.
Ele entrou em casa e o temporal tinha escancarado as janelas. Já era noite e não havia luz. Havia só e apenas aquele silêncio inquietante que ocorre depois de uma agitação violenta de chuva, vento e trovões. Estava tudo fora do sítio. Havia papéis espalhados por toda a parte, peças decorativas tombadas no chão, livros caídos. A casa parecia ter sido assaltada e virada do avesso por alguém muito zangado.
Ao deparar-se com tamanho caos dirigiu-se imediatamente ao pátio para ver se os gatos estavam bem. Encontrou-os dentro da sua casota enroscados uns nos outros,  aninhados. Respirou de alívio. Aquela era parte da bonança, pensou, depois da terrível tempestade que ocorrera durante a tarde. Chegar a casa e perceber que apesar do frio, do caos e da exposição e vulnerabilidade à ira da natureza, a vida da casa estava intacta. Aquela era a primeira casa que construira com a sua amada. Não era a casa dos seus sonhos mas era, inquestionavelmente, a primeira casa de ambos, resistente o suficiente à perturbação atmosférica. A caminho de casa já conseguira falar com o seu filhote e com os seus pais mas ainda faltava ouvir a voz dela para garantir que estava mesmo tudo bem, que o temporal não abalara mesmo nada de importante, que apenas pertubara as coisas facilmente reparáveis e substituíveis. Já tinha tentado ligar-lhe quatro vezes e na última tentativa o telemóvel dava sinal de desligado, indo diretamente para o voicemail.
Sentou-se no sofá e naquela escuridão e silêncio desconcertantes lembrou-se do dia em que a vira ao vivo e a cores pela primeira vez. Lembrou-se de como ela, apesar de estar vestida com calças e top preto, iluminava a sala toda e o fizera sentir uma enorme curiosidade para saber mais sobre quem ela era afinal. Recordar memórias passadas com ela era uma espécie de terapia calmante. Durante o flashback vieram-lhe umas dezenas de músicas à cabeça que poderia dedicar-lhe. Ela adorava receber esses seus presentes diários, a música que ele lhe dava. Ao voltar a ela durante a recordação foi inevitável não rever a forma como os seus olhos brilham quando o vê. Desejou naquele momento sentir a força com que ela o abraçava em bicos dos pés sempre que se reencontravam. Lembrou-se que era muito amado, desejado,  e pediu ao Cosmos que estivesse tudo bem com ela. Nisto o telemóvel começa a tocar. Era um número desconhecido.
-Estou?
- Sim, boa noite. Vi este número na agenda de uma mulher que estava desmaiada no meio da rua. Levei-a para o hospital Garcia de Horta. Conhece-a, porventura?
- Vou já para aí.
Pegou nas chaves do carro, nas chaves de casa e saiu à pressa, rumo à diligência de garantir que nada de mal lhe havia acontecido e que a podia envolver novamente nos seus braços, nos seus afectos e nos seus cuidados.
VF
#estasemanahasuspense #6desafio #elesvaoficarbem #elaadorate #ocosmosestadonossolado
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Esse lugar
Há um lugar onde me sinto em casa. Tostado pelo quente sol de verão, seara acariciada pela brisa primaveril, torna-se húmido pelas chuvas de outono e encrespa-se e torna-se fugidio com o frio invernal. Conheço-o já em todas as estações e em todas elas me sinto bem recebido, acolhido, acarinhado e apaziguado. Não há outro lugar onde me sinta tão “em casa”, que me saiba tanto a porto de chegada e, no entanto, foi-me dado a conhecer fortuitamente. Dirão ser um acaso do destino mas esse lugar não é destino, é caminho. E nesse caminho sou feliz e deixo para trás as minhas imperfeições, limitações e preocupações. Porque esse lugar é forte, retempera o meu espírito e abre os meus olhos e ergue o meu horizonte para lá do imediato e para cá da angústia de não o poder visitar sempre e para sempre. Nesse lugar, eu sou mais que eu. Sou o Eu que tento vir a ser um dia. Quem sabe, nesse lugar. Esse lugar são os braços dela.
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Querido desconhecido
Naquele dia invernoso, frio, ameaçando chuva forte, havia uma brecha solarenga sobre o mar. Ele tinha decidido sair mais cedo do lúgubre escritório que lhe atormentava os dias e assim arejar os pulmões com a salgada brisa marítima. Enquanto caminhava, botas castanhas de couro na areia húmida da baixa-mar, outra brisa o atingiu. Em forma de garrafa. Não sendo inédito, era certamente improvável encontrar uma Brisa maracujá naquela praia, em pleno inverno. Ainda mais inesperado era a garrafa não estar vazia. No interior, protegida das vontades do oceano por uma rolha, uma folha de papel repousava serena e docilmente. Sim, aquela cena típica de filme. Mas, já que a situação se tinha apresentado assim, porque não cumprir o clichê? Soube-lhe bem a areia molhada entre os dedos ao agarrar a garrafa fria. Pensou como é bom estar e sentir-se vivo, desperto. Desarrolhou a garrafa, abanou-a veementemente mas a folha não saía. A nortada recordou-lhe inclementemente que aquele não era o momento nem o lugar certo para descobrir o conteúdo da garrafa ou da mensagem nela contida. Refugiou-se no carro, trancou as portas, usou uns pauzinhos que trazia de recordação do último sushi para libertar, por fim a folha de papel escrita. Uma vez desenrolada, começou a ler as palavras desenhadas com cuidado que alguém lhe teria dedicado. A carta começava assim:
“Olá querido desconhecido. Quero partilhar contigo um sonho que tive esta noite e que tenho de expurgar. Por favor ajuda-me a fazê-lo…”
Quando, por fim, conseguiu pousar a folha de papel que tremia nas suas mãos, após lê-la 7 vezes, esta estava encharcada pelas suas lágrimas. Ironicamente, sofria mais maus tratos agora do que em todo o tempo que passara no oceano, na viagem até às suas mãos. Ele emocionara-se ao reconhecer a autora. Ela esperava-o em casa.
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Let´s do it.
Ela, que não sabia muito bem o que queria fazer da vida porque lhe era fácil apaixonar-se pelo mundo, no geral, desde que isso envolvesse conhecer mais um pouco de humanidade no particular, sabia muito bem o que não queria. E se havia coisa que ela não queria efectivamente era viver presa aos sonhos. Queria ser e estar realmente. Amar, de verdade, plena e livremente o homem com quem decidira viver. Este homem fizera-a perceber a dádiva que é amar intensamente e ser milimetricamente correspondida. No respeito, na admiração, na amizade e na paixão. Ela mudara desde a sua última relação amorosa e estava disposta a dar-lhe tudo o que de mais precioso tinha dentro de si, incondicionalmente. Estava pronta para ele. 
Naquela noite, estava a mais de trezentos quilómetros do seu amor e dormia, depois de um exigente dia de labuta. Às 3:15 da manhã acordou sobressaltada, com o coração prestes a sai-lhe da boca, galgando-lhe velozmente no peito. Libertava suor por todos os poros. Mal conseguia respirar. Levantou-se, meio atordoada, e foi até à cozinha para fazer um chá de hortelã para se acalmar.
Enquanto esperava que a água fervesse pôs-se a debitar para o seu caderno de notas soltas vermelho o sonho que tivera e que lhe havia provocado aquele tumulto todo no corpo:
Meu querido,
Acabei de acordar de um sonho maravilhoso no qual tu entraste como personagem central. Vi-te sentado a ler, no jardim da nossa casa, no Porto, enquanto os nossos três gaiatos brincavam às escondidas e se riam que nem uns perdidos uns com os outros. A tua tranquilidade, a tua postura, a tua expressão facial de pleno deleite e realização encheram-me de esperança e proporcionaram-me uma paz tremenda. Desejei por breves instantes que pudéssemos todos viver eternamente ou então que tivesse o dom de guardar aquele momento num lugar seguro, alheio à amnésia que o tempo a passar e  as novas memórias a acontecer podem provocar. Tu não imaginas o quanto eu te amo, o quanto te quero bem e te desejo. Não raras vezes dou por mim a pensar que não existem palavras suficientemente magnânimas para descrever o que se passa em mim desde que tu estás na minha vida. A luz que me trouxeste é indescritível.  Lembro-me que no sonho senti muito medo de vir a morrer durante o sono e não ter a oportunidade de me despedir de ti, dos nossos,  e de te agradecer tudo o que me dás todos os dias. Eu quero viver muitos mais anos com saúde para poder estar sempre lá, na nossa casa, no teu coração, presente na tua vida, para te dar o meu ombro  e ser o lugar onde podes descansar e carregar baterias para enfrentar o mundo lá fora. O sonho emocionou-me porque é tudo o que eu quero. Quero a nossa casa. Quero partilhar contigo as alegrias, as frustrações, os desânimos, muitas gargalhadas e bestices. Quero ver-te de novo todos os dias, conhecer-te cada vez melhor, desvendar os teus segredos um a um e apaixonar-me todos os dias por ti. Quero-te perto, ainda mais do que já estás apesar desta distância irritante que separa as cidades onde vivemos agora. Desejo ainda que passemos a encontrar em conjunto as soluções mais criativas para aniquilar o tédio e as tristezas. E eu sei que vamos conseguir. Eu sei que vamos ser ainda mais felizes. E sei a melhor parte. Não será um sonho, será real.
Um beijo, 
VF
#estouatremereasorriraomesmotempo
#estaquase
#5ºdesafio
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An unexpected visit
That night there was music; there was laughter; there was happiness; there was wine and the Christmas spirit.
Before dinner, the whole family had gone out to help prepare the Christmas Eve’s supper for the homeless, the misfortuned and the drunk.
After dinner, as their children went off to their bedrooms, promptly followed by the family’s elders, they both felt the urge to take a look outside. They stood hugging at the window, contemplating the snow covered hills, recalling the moment they agreed upon taking everyone to a house up in the mountains for the holidays. It had been their dream of a full house that had brought them the idea in the first place. And how it all had worked out so well, even though the initial scepticism of, well, pretty much everybody. But they’d done it. Once again, all were reminded that, for those two, impossible was just another word in the dictionary.
Suddenly, a light grasping noise could be heard. Trying to pinpoint its origin, they scoured the living room, where they were, the kitchen, the hall and again, the living room. It was then that they noticed the flames in the fireplace dimmingi, which was strange given that there was a lot of wood still left to burn. Could the chimney have clogged up? Bute why? It had been working fine!
The flames finally went extinct and they were ever more curious. Strangely, no fear shadowed their mind or shook their bodies.
As he and she approached the fireplace to investigate, something fell from the chimney causing an enormous cloud of ash. In the mist their though was the same: “why didn’t we clean up the ashes yesterday like it was supposed to?”. It happened frequently that they share thoughts, as most lovers do or people that know each other for a very long time but, to them, it had been happening since they first met, which was strange but neither of them had ever tried to explain or dissect, It was just “their thing”.
- Motherfuckin’, sorry ass, wrinkly old fart! Makin’ a brother do this job, his job nonetheless, in this freezin’ cold holiday night, when what I should be doin’ is bein’ at home with the misses! Sick my ass. I bet he’s sittin’ by the fire, all warm and cozy and fluffy slippers on, bein’ pampered by those washed up green minions, the elves. Ha, the elves. Were they bigger and they could have some real use. A horde of them and them motherfuckers take a whole year slackin’ around ‘til the week before before the deadline and then, guess what happens? Crazy ol’ cracker “Santa Klaus” just bails them sorry asses out. And to add upp to the already fucked up situation, the old fart goes and injures himself! Of course, now who’s left to get the distribution done? In the cold, I might add! The brothers! For sure it couldn’t be those slackin’ midgets. “Uuuhh, they’re so small, so fragile. You wouldn’t want them to be put in peril, would you?”. Damn that old fart, why can’t I just say no to that guy? I must have been an awful reindeer in another life. It’s gotta be karma. Gotta be!
They were stunned. Who was that? The ash cloud was slowly dissipating and they could now see a bright red light glowing in the middle of the room. It was from that direction that the voice they were hearing came.
Now they could also see what looked like an antenna. Thins were getting stranger by the second. Who could it be?
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Amor à distância. Nada casto.
O dia solarengo e quente de verão não permitia à D. Gertrudes estar em casa tal era o calor que se fazia sentir no seu apartamento cheio de mobílias de madeira maciça e bibelôs dos tempos em que correra mundo com o seu falecido marido. Dado o seu desconforto, decidiu sair da toca por umas horas para ir beber uma limonada fresca ao miradouro do Adamastor. Arranjou-se vagarosa e cuidadosamente. Vestiu a combinação bege, o seu vestido mais feminino até ao joelho, cintado, com decote em “V” e padrão com cornucópias cinzentas. Na face colocou o pó de arroz para enganar a palidez e a falta de brilho da sua pele idosa e pintou os lábios de vermelho vivo para dar ao rosto alguma cor.  Lembrou-se que era o dia perfeito para usar o chapéu de palha que estava guardado no armário há mais de uma década e colocou a corrente nos óculos não fossem eles cair durante o passeio. Enrolou o cabelo com uma agulha para penteado aplicando técnica do nó que a sua mãe lhe ensinara, com rabo de cavalo. Ornamentou-se com o colar de madre pérola e brincos de prata muito discretos. Olhou-se ao espelho e respirou fundo. Pensou que já não era a mesma Gertrudes. Mudara. O tempo já se encarregara de lhe limitar as funcionalidades e lhe contrair os músculos. Não obstante essa constactação, encheu-se de coragem para trespassar a porta do lar e ignorar aquelas dores da idade e lá foi apanhar o táxi, tentando não se render ao fatalismo e à resignação que o tempo volvido impunha.
O táxi chegara ao miradouro do Adamastor e Gertrudes, com os ombros tensos e passos encurtados, de bengala em punho e sempre a olhar o chão com medo de cair, encaminha-se então para o quiosque do miradouro de onde a zona ribeirinha de Lisboa pode ser amplamente contemplada. Senta-se e pede a sua limonada ao empregado de mesa.
Aquele momento sabe-lhe que nem ginjas. A coragem compensa, pensou. Agora,  estava ao ar livre arejada, a saborear uma limonada fresca sem açúcar num local onde podia perder-se por alguns instantes na vida dos outros e no som jazzy que um trio de músicos de rua composto por um saxofonista, um contrabaixista clássico e um percussionista tocavam.
Na mesa ao lado da sua estava um homem também velho a ler concentrado, completamente absorto na leitura mas com um semblante muito triste e carregado. Parecia-lhe, a Gertrudes, que nada seria capaz de desviar aquele velho do seu livro e, de outro modo, do seu cabo das tormentas: dos alegados domínios do monstro greco-romano que estava ali representado numa estátua imponente que deu o nome ao miradouro. O homem parecia-lhe ter perdido a esperança no seu porvir, estar cheio de medo de navegar em mares desconhecidos, pensou. As tempestades costumam engolir gente como ele que perdeu a coragem de proseguir e assumir riscos. Os heróis foram pessoas comuns que se desafiaram a feitos sobrehumanos e superaram as suas limitações. Foram além da sua pequenez porque não se conformaram com ela, pensou. É triste ver um homem sucumbir à escuridão da sua própria sombra, sem coragem para dar voz às suas emoções. Sem coragem para vivê-las plenamente.
O homem, guardava-as claramente dentro de livros, vivia-as em silêncio, num profundo egoísmo que só fazia com que se sentisse cada vez pior e mais atormentado pelo monstro castrador que tinha dentro de si.
De súbito, o trio começa a tocar “A Love Supreme”. Gertrudes, já a vibrar com os primeiros acordes, esboça um sorriso vibrante e rasgado. Os seus olhos brilhavam como quando viu Coltrane tocar só para si na praia de Carcavelos. O seu coração enchia-se visivelmente de felicidade e conforto. Gertrudes abanava a cabeça, sentia a música como se ela tivesse sido feita dentro de si, nos recônditos mais secretos do seu amâgo emocional. Há músicas que apesar de não terem sido criadas por nós, de serem de outros, contam a nossa história, as nossas recordações e proporcionam-nos uma tranquilidade celestial, um sentimento de saudade profundos. A música,  é a nossa catexia e  Gertrudes reconhecia nela essa magnitude.
De Gertrudes emanava uma luz intensa e brilhante, a sua entrega àquela música era efetivamente total e genuína. A música era vida para aquela mulher.
O velho da mesa ao lado olhou para Gertrudes e naquele momento viajou para trás no tempo, sessenta e três anos, e viu ali, na mesa ao lado da sua, depois de vários anos fora de Portugal, a rapariga por quem se havia apaixonado, platonicamente, em Carcavelos, no verão de cinquenta e três.
A emoção que sentira naquela tarde, na praia, a observar a forma como a rapariga sentia a música que um negro tocava num saxogone alto, veio à tona. Era ela, tinha a certeza. Não se esquecera daquela expressão angelical, do seu sorriso farto e aberto, da vida que a mulher emanava através da sua expressão corporal. Era o mesmo olhar, aquele olhar onde parecia caber o mundo inteiro, cheio de esperança e optimismo. Aquele olhar era inesquecível.
O velho, Amílcar de seu nome, viu imediatamente os pêlos dos braços levantarem-se, sentiu a pressão arterial subir, o coração a bater forte e aceleradamente, as mãos suadas e um frio excitante no estomâgo.
Amílcar voltou a sentir um arrebatamento puro como nunca mais voltara a sentir na vida. Tinha encontrado a sua paixão misteriosa. A mulher que o fizera sonhar e amar visceralmente à distância, que ao longo dos anos o levara a construir um castelo de volúpia e desejo imenso onde, através de idealizações e fantasias, se via a viver com ela. A mulher que agora estava na mesa ao lado da sua era a mulher dos seus sonhos. Era a mulher casta de dia, secretamente desejada durante a noite.
VF
#4ºdesafio
#umahoradeatraso#desculpa#adormeci
#esperoquegostes
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