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Enquanto tudo isso se passava, minha vida também sofria mudanças. A moça em questão era nossa conterrânea, estudara na Escola de Arte Dramática de Leningrado e trabalhava no teatro de Kalinin, cidade a noroeste de Moscou. Em outras palavras, era uma atriz de Kalinin, que costumava visitar os pais nas férias, e foi nessas circunstâncias que nós nos conhecemos.
O que quero dizer por “nós nos conhecemos”? Eu já tinha ouvido falar de Sônia Vishnevsky, é claro, sabia que ela era sobrinha-neta de Khaim Yagudin, nosso maledicente ex-sargento. Vira-a crescer, sabia que se tornara atriz, por sinal a única da cidade. Nós tínhamos músicos, até um maestro famoso, Artista do Povo da União Soviética, orgulho local, de quem já falei, mas Sônia Vishnevsky era nossa única atriz, e portanto seria difícil ignorar sua existência. Mas uma coisa era saber quem e o que ela era, e outra bem diferente era conhece-la e se tornar seu amigo.
O fato de ser uma atriz profissional já a tornava diferente das outras. Nossos conterrâneos eram trabalhadores comuns, com empregos comuns, e lá estava uma atriz de Kalinin, a antiga cidade de Tver, como era chamada. Bastava chegar, e logo assumia o centro das atenções, principalmente porque costumava sair com um vestido vermelho de alças, expondo os ombros bronzeados, e seu cabelo era cor de cobre, natural, sem tintura. E que corpo! A turma local realmente apreciava mulheres com as coisas certas nos lugares certos. A cidade, famosa por suas moças bonitas, até competia com o burgo de Sunny neste aspecto.
Seus pais se mudaram para Dneprodzerzhinsk, perto de Kharkov, mas ela continuou a vir à nossa cidade, hospedando-se em casa de Khaim Yagudin. Este se envaidecia de ter uma parente tão ilustre – chamava-a de sua pupila e gostava do fato de que sua aparência e comportamento chocassem os cidadãos, aqueles ignorantes e imbecis. Aprovava todas as atitudes de Sônia, e quanto menos apraziam aos outros, mais agradavam a ele. Era justamente por sua habilidade em agredir a opinião pública que ele a considerava sua pupila.
Na verdade, as coisas não eram bem assim. Khaim Yagudin era um criador de escândalos, um arruaceiro de setenta e cinco anos de idade, ao passo que Sônia simplesmente gostava de agitar. Ela passava os dias deitada numa rede na floresta, tomando sol, e à noite nos arrastava para tomar banho no rio. Não tínhamos esse hábito, costumávamos nada no fim da tarde, e durante o dia só nas folgas. Tomar banho de rio à meia noite foi idéia de Sônia – nada fácil para nós, que precisávamos ir trabalhar de manhã, enquanto ela, sem ter o que fazer, passava o dia inteiro dormindo na rede. Fazíamos uma fogueira na beira do rio, assávamos espetinhos de carne de carneiro, os shashlyki – mais uma das invenções de Sônia – e bebíamos. Divertida e afável, Sônia era boa ouvinte, nada a chocava, e até contava piadas que um homem não se atreveria a contar. Se esfriava, pegava o casaco de um dos rapazes, e então, para que ele não sentisse frio, passava o casaco em torno dos dois e ficava ali abraçada com ele. Tinha preferência por companhia masculina, as moças da cidade não serviam para ser amiga dela. Elas eram tímidas e encabuladas – “frangas”, como as chamava -, e só se dava bem com a parteira, Liza Elkin, que também era inteligente, gostava de companhia e era desembaraçada. Sendo uma parteira, Liza dificilmente podia participar de nossas vigílias noturnas, e Sônia ficava rodeada por um séquito de solteiros. Eu não me fazia de rogado, vocês entendem. Querendo que ela gostasse de mim, exibia minha força, bebia muita vodca, carregava Sônia nos braços para dentro da água, mergulhava da viga mais alta da ponte, fazia o salto da andorinha e saltos mortais, e ela ficava fascinada, batendo palmas e beijando-me na frente de todo mundo. Ficávamos deitados na areia, eu de calção de banho e ela de maiô, ambos com vinte e sete anos, eu não mais um garoto e ela não mais uma menininha. O que tinha de acontecer, aconteceu.
Tudo ocorreu sem nenhum constrangimento. Sônia encarava essas coisas com naturalidade, ela me apreciava e deseja, e eu sentia o mesmo por ela. E daí, se eu não era o primeiro? Nem conversamos sobre isso, seu passado não era da minha conta. Ela não poderia ficar esperando que eu aparecesse no horizonte, não é mesmo? Além do mais, eu também não esperei.
Passamos um mês inteiro juntos na cama, não conseguíamos sair de lá, e quanto mais eu emudecia, mais ela falava. Eu era assim e assado, não existia ninguém no mundo igual a mim, o que ela tinha feito para merecer tanta felicidade, e assim por diante. Acreditei nisso tudo, e no momento era tudo verdade, ela gostava de mim e eu gostava dela.
Bem, como vocês podem imaginar, numa cidade pequena como a nossa, quando duas pessoas correm para os braços uma da outra, a relação não permanece em segredo por muito tempo. Aliás, Sônia não fazia a menor questão de guardar segredo. Ela não via nada de vergonhoso em nosso romance, que vergonha poderia haver no amor? Assim sendo, estávamos ambos na boca do povo, mas eu não sabia a que desfecho isso iria levar.
Quanto a Khaim Yagudin, nosso caso amoroso era uma dádiva para ele, especialmente por estar ocorrendo em sua casa. Tenho a impressão de que Khaim achava ser ele, e não nós, que estava afrontando a opinião pública, e se esmerava em bajular a moça de todas as maneiras. Pela manhã, quando Sônia e eu ainda estávamos dormindo, ele usava sua bengala para manter todos quietos dentro da casa, a fim de evitar, Deus o livre, que alguém nos acordasse, embora as batidas de sua bengala já fossem suficientes para nos acordar. Ele mandava a empregada limpar e polir o quarto de Sônia, trocar a roupa de cama e as tolhas. Ele até gostava de lhe levar uma toalha limpa pessoalmente, e havia uma outra coisa que ele gostava de levar, enquanto ela ainda estava na cama: acreditem ou não, era café! Sim, é isso mesmo, café! Só Deus sabe onde ele o conseguia, mas parece que ele achava que era fino servir café para uma dama enquanto ela ainda estava deitada.
- Posso entrar? – perguntava, batendo na porta, ao ouvir que estávamos acordados.
Entrava cerimoniosamente, carregando a bengala em uma das mãos e na outra uma bandeja com um bule de café, uma jarra de leite, um açucareiro e duas xícaras. Depositava a bandeja na mesinha-de-cabeceira, e toda vez indagava:
- Preto ou com leite? – Mas sabia que nós só tomávamos café com leite, pois era impossível tomar aquela água suja sem leite; na melhor das hipóteses era feito de chicória, ou então, puro café de cenoura.
- Com ou sem açúcar?
- Com.
- Uma ou duas pedras?
- Duas.
Ele servia as duas xícaras de café, acrescentava o leite e colocava as pedras de açúcar, as quais, imaginem vocês, ele pegava com uma pinça, não com os dedos. Adorava mostrar que tinha modos refinados.
A seus próprios filhos, bons trabalhadores e agora já adultos, ele desrespeitava e humilhava, pesando-lhes sobre os ombros a vida inteira, ao passo que para Sônia, uma parente distante, terceira prima de segundo grau, que vinha visitá-lo uma vez por ano, ele se desfazia em mesuras. Sônia adulava sua vaidade.
Ela era condescendente com o velho. Se isso gratifica o amor-próprio dele, dizia, deixe que o faça. Pelas costas, ela zombava dele, mas frente a frente, jamais, Deus me livre, ela tinha pena dele e era meiga e atenciosa. Por exemplo, quando chovia ou fazia mau tempo e nós não íamos para o rio, ficávamos em casa e ela o colocava na cabeceira da mesa, transformando-o, por assim dizer, no personagem central.
- Tio Khaim, conte-nos uma história – pedia.
E tio Khaim começava a contas suas histórias do arco-da-velha e Deus sabe o quê, falando do grande herói que havia sido e de como os comandantes da cavalaria e da artilharia lhe prestavam homenagens, como se eles fossem seus amigos do peito e muito íntimos.
Mais que tudo ele gostava de falar em Sua Alteza o Príncipe de Varsóvia, Conde de Erivan, marechal-de-campo Ivan fedorovich Paskevich, o mesmo que combateu os turcos e tomou Erzurum, depois combateu os poloneses e tomou Varsóvia, e depois ainda combateu os húngaros e tomou Budapeste. Ele também falava de Paskevich como se tivessem sido grandes amigos, companheiros de bebida, parceiros na mesa de jogo e colegas de aventuras amorosas.
Tenho certeza de que vocês avaliam a distância existente entre um sargento e um marechal-de-campo, entre Khaim Yagudin e Sua Alteza o Príncipe de Varsóvia, Conde de Erivan, mas a questão não é esta. A questão é que Sua Alteza faleceu em 1856, antes mesmo de Khaim Yagudin ter nascido! Khaim falava nele como se tivesse passado os melhores anos da juventude em companhia do príncipe.
O fato é que o Príncipe Paskevich era outrora proprietário da cidade de Gomel – seu suntuoso palácio continua lá até hoje – e como nossa cidade ficava mais próxima de Gomel que de Chernigov, o distrito inteiro se considerava ligado àquela grande celebridade desde tempos imemoriais, e Khaim Yagudin, mais do que ninguém, sentia-se quase um parente. Havia todo tipo de histórias, lendas, anedotas e contos de fadas sobre Paskevich, e nós todos conhecíamos, mas Khaim Yagudin contava-os como se ele tivesse realmente participado deles. Sabíamos tratar-se de um mentiroso descarado, mas Sônia achava suas narrativas interessantes – ela escutava, ria, mostrava-se impressionada, e quanto mais reagia assim, mais o velho ficava satisfeito.
Certa vez eu disse a Sônia que Paskevich tinha morrido antes de Khaim Yagudin nascer, mas ela respondeu sem preocupação:
- E daí? Ele é um grande contador de histórias.
E assim, ela o deixava mentir e fantasiar à vontade, e ele tinha verdadeira adoração por ela. A única coisa que Sônia não permitia que ele fizesse era impedir que seus filhos e netos se sentassem à mesa, considerando, como ele considerava, que eles não tinham nível para participar daquela sociedade de elite. Khaim não ousava desobedecê-la, submetia-se às suas ordens, e todos sentavam-se à mesa, tendo que ouvir seus disparates. A cidade inteira sabia da nossa relação, a cidade inteira sabia que Khaim Yagudin nos servia café na cama.
A única conclusão que eu podia tirar disso tudo era que nós deveríamos nos casar. Mas quem era eu e quem era ela? Eu, simples sapateiro, na verdade fazendo um curso externo no Instituto de Tecnologia de Leningrado. Por que um instituto de tecnologia? Porque foi nisso que o Instituto da Indústria Cooperativa, onde um havia ingressado, foi transformado em 1939. Pois bem, eu já estava no quarto ano, prestes a me formar engenheiro e me tornar chefe de oficina, mas por enquanto não passava de um sapateiro comum, um remendão, ao passo que ela era uma atriz, e não em qualquer lugar, mas em um dos mais antigos teatros do país, em Kalinin, do nível de Moscou e Leningrado. Quem sabe, ela até poderia se tornar uma Artista do Povo da União Soviética?
Como poderia eu pedi-la em casamento em tais circunstâncias? Se ela ao menos tivesse feito uma insinuação ou uma pergunta indireta sobre o que o futuro nos reservava... mas nada nem coisa alguma. Por que seria? Estaria ela habituada a relações sem compromisso, seria ela tão dedicada à sua arte que tudo o mais não passava de um estorvo? Será que ela não via um lugar para mim em seu futuro? Talvez tivesse outro homem Kalinin? Eu não sabia, mas um fato é um fato, ela não me dava oportunidade de discutir nosso futuro, e eu não podia levantar a questão porque era orgulhoso demais, ela poderia pensar que eu estava tentando entrar em sua vida tão atraente, usá-la para fugir do tédio e da monotonia da nossa cidade. Este não era o caso, eu realmente a amava, mas minha vaidade me impedia de pedi-la em casamento.
Sua partida reforçou minha posição. Era difícil conseguir passagens de trem naquela época, principalmente para um trem direito, como necessitava Sônia. Fui correndo à estação, consegui lhe comprar um bilhete de primeira classe e exultei por ter conseguido. Aquela seria nossa última noite, e eu esperava que nós passássemos juntos, que só eu a levaria à estação, ainda mais que o trem partia às cinco da manhã. Qual o quê! À noite tivemos uma fogueira, shashlyki e banho de rio.
Às duas da madrugada, eu disse:
- Sônia, você precisa arrumas suas malas.
- Eu ainda tenho tempo – disse ela, mostrando-se despreocupada.
Já eram quatro horas quando a levei para casa, e ela de fato arrumou tudo em vinte minutos. A turma toda a acompanhou à estação, ela estava risonha e alegre, o trem chegou, ela deu um beijo de despedida em cada um, inclusive em mim, subiu no comboio, que por ser expresso só ficaria parado dois minutos, e do alto dos degraus, gritou:
- Não fiquem entediados sem mim!
O trem partiu em meio a uma nuvem de vapor, e eu fiquei ali, com um peso no coração.
E peso aumento à medida que o tempo foi passando. Teria sido apenas uma aventura de verão? Para mim era difícil aceitar esta idéia – eu estava realmente apaixonado por ela. Isso jamais tinha me acontecido, ela era meu primeiro amor. Depois de tudo que acontecera entre nós, depois de todas as noites que passamos juntos e tudo que dissemos um ao outro, ela prometeu que voltaria, nem me convidou para ir visitá-la, não pediu que eu lhe escrevesse. Em outras palavras, ela me deixou na mão, e nada mais.
É claro que não dei a perceber o que sentia, e ninguém percebeu, exceto minha mãe. Naturalmente, ela sabia do meu romance com Sônia, mas nunca tocou no assunto comigo, pois na nossa família essas coisas são encaradas com naturalidade e sem hipocrisia, sobretudo considerando-se que eu já beirava os trinta, e embora soubesse muito bem que minha mãe desaprovava minha relação com Sônia, ela não disse: “Graças a Deus, Sônia foi embora”.
Passados um ou dois meses, recebi uma carta de Sônia. Não trazia nada de especial, apenas um “Oi, Borik”, que era como ela me chamava. “Como vai a vida, como vai a turma, penso em todos vocês, amo vocês todos, tenho saudades de vocês todos, mande lembranças a eles, escreva-me.”
Nada de especial, mas não deixava de ser um contato, e ela escrevera seu endereço no envelope. Então não estava tudo acabado, não tinha sido apenas um passatempo ou uma aventura de verão. Levei uma semana para preparar a resposta. Sobre que assunto eu poderia escrever? Ela não se interessava pelo que acontecia na cidade, menos ainda pelo meu trabalho, mas com eu tinha receio de falar nos meus sentimentos, e nem saberia como fazê-lo, apenas escrevi: “Todos estão com saudade de você, e eu mais que todos”.
A resposta demorou, mas acabou chegando. Assim como a anterior, era uma carta sem muitos detalhes, apenas amável, embora um pouco mais substancial e objetiva – ela estava interpretando um papel importante, e por isso pedia desculpas por escrever tão pouco, e também andava muito ocupada tentando conseguir um quarto que lhe fora prometido. De qualquer maneira, era o início de uma correspondência.
Há algo de estranho em se corresponder com uma mulher, e que eu não sei explicar. A separação coloca uma distância entre vocês dois, e ao mesmo tempo os aproxima mais, você sente saudade dela e os mais variados pensamentos passam pela sua cabeça, e então, de repente, você recebe uma carta, e ao lê-la descobre que ela também pensa em você. É sempre bom receber uma carta de um parente ou amigo, mas do que um parente fala em suas cartas? Dos seus problemas. Quando ele lhe escreve? Quando as coisas vão mal. Na minha idade, amigos e conhecidos já não escrevem mais, ou quando escrevem é só para avisar que ainda estão vivos, o que explica a mania de enviar cartões de saudações de todos os tipos. Posso lhes assegurar que recebo cartões quatro vezes por ano, de no mínimo cinquenta pessoas, e não há como escapar, é preciso responder a todos eles. Mas isso foi só um parêntese. O estranho sobre cartas de mulheres é que, quando se fica muito tempo se receber uma, seu coração fica apertado, e quando a carta chega, seu coração dispara. Sônia não escreveu nada de especial, mas quando uma mulher está a mais de seiscentos quilômetros de distância, até as coisas mais insignificantes ganham importância.
Em janeiro de 1940 eu precisei ir a Leningrado para participar de uma reunião do instituto. Escrevi para Sônia contando a respeito, e ela sugeriu que, aproveitando a viagem, eu fosse visitá-la em Kalinin. Assim sendo, ao voltar de Leningrado, parei em Kalinin. Tendo recebido eu telegrama, Sônia foi me esperar na estação – usava casaco e chapéu de pele, suas faces estavam coradas e ela mostrava entusiasmo; beijou-me, mas não como eu esperava, riu e disse:
- Depois, depois... Temos muito tempo.
Eu precisava carimbar minha passagem para o dia seguinte, mas ela estava com pressa de ir para um ensaio, e fiquei sem jeito de mostrar tão previdente – você vai visitar sua amada e a primeira coisa que pensa é na sua passagem. Seria muita falta de tato.
Fomos de bonde até o lugar onde Sônia morava. Ela me deixou lá e correu para o ensaio. Morava num quarto de uma casa velha e frágil, pior do que qualquer casa da nossa cidade, e no entanto, Kalinin era o centro regional. Moscou ficava à direita e Leningrado à esquerda, mas ali estava aquela choupana de camponês. Para se chegar ao cubículo, era preciso passar pelo quarto do proprietário da casa, um velho com sua esposa, ambos bêbados inveterados, vivendo como mendigos. O quarto de Sônia era limpo, isso é verdade, mas fiquei abismado com a desordem. Ela dormia numa cama de armar com colchão de crina, tinha uma mesinha-de-cabeceira, uma pequena mesa de cozinha, suas coisas ficavam guardadas nas malas, e as janelas eram forradas com jornais em lugar de cortinas. Compreendi que ela não possuía uma casa montada, tudo ali era emprestado de alguém para uso temporário. O que é a vida de uma atriz senão perambular de um lado para outro? E contudo, lá na nossa tínhamos uma impressão completamente diferente da vida que ela levava.
Três horas depois ela estava de volta, alegre e animada.
- Nós temos a noite inteira; o que vamos fazer?
- O que você quiser – respondi – A ocasião merece uma comemoração.
- Vou levá-lo para jantar no Seliger.
- Para mim está ótimo. Eu só quero ficar o máximo possível com você.
Ela achou graça.
- Eu também senti sua falta.
O restaurante do hotel Seliger, um lugar muito agradável, e o próprio hotel era novo, uma construção no estilo dos anos 30, os garçons de terno preto e gravata-borboleta, e as garçonetes de touca branca no estilo camponesa; o serviço era excelente, havia vodca, vinho de todos os tipos, um cardápio onde o item principal parecia ser carne em todas as suas variações, como bife grelhado, estrogonofe, bife de panela. Um garçom veio nos atender, pronto para anotar o pedido em seu bloco, e foi muito atencioso para com Sônia; as pessoas das outras mesas também olhavam intensamente para ela, não só porque ela era uma mulher vistosa, mas por ser famosa na cidade.
Bebemos, ao som de um conjunto musical, e eu convidei Sônia para dançar, já que havia outras pessoas dançando, mas ela rebateu:
- Não aqui, neste buraco.
Eu tinha cometido uma gafe, não ficava bem ela se exibir num lugar como aquele.
- Desculpe – falei. – Eu ainda não estou acostumado por aqui.
- Não foi nada – respondeu, dando o assunto por encerrado.
Ela me contou sobre seu trabalho. O teatro era dominado por atrizes antigas que já deveriam ter sido aposentadas, para dar espaço às mais jovens. Mas elas se recusavam a abandonar o teatro e continuavam a interpretar papéis de mocinhas de dezessete anos, apesar de terem passado dos cinquenta. Mas Sônia finalmente havia conseguido um bom papel, e mostraria àquelas velhotas o que era fazer teatro de verdade. Ela estava preocupada com a situação, e eu ouvi com prazer enquanto ela falava. Era tão estranho, inesperado e inacreditável pensar que eu estava ali, sentado ao lado dela.
Demoramos para voltar ao quarto dela. Fomos passear a pé e ela me mostrou a cidade, o Volga e os velhos edifícios.
Pela manhã ela foi buscar água quente no vizinho para fazer chá, que despejou diretamente nos copos, encontrou um pedação de pão na gaveta da mesa e um naco de queijo velho, e este foi o nosso desjejum. Sônia não pareceu achar que era pouco, para ela era normal. Talvez estivesse sem dinheiro, não devia ser fácil viver com salário de atriz.
Usando de tato, falei:
- O quarto é muito bom, mas você precisa passar pelo quarto do dono da casa...
- O quarto não tem nada de bom. É um buraco de rato, mas o teatro paga o aluguel, e ficando num pardieiro desses eu tenho maiores chances de conseguir um lugar descente para morar. Já faz três anos que estou esperando.
Vocês devem estar lembrados de como as coisas eram naquela época. Hoje em dia você escolhe o apartamento que quer, com ou sem varanda, se o bairro lhe convém, em que andar você prefere, se poderá contar ou não com a instalação de um telefone. Naquela época as pessoas esperavam anos, até décadas, só para conseguir um quarto num apartamento comunitário: qualquer quarto, em qualquer lugar, contanto que fosse um quarto.
De repente, Sônia sorriu:
- Venha morar comigo quando eu conseguir meu quarto.
Meu coração chegou a falhar.
- Está falando sério?
- Você não quer?
- Ainda pergunta!
- Querido, você precisa saber que eu sou uma péssima dona de casa.
- A gente dá um jeito nisso, mas por que esperar até você conseguir seu quarto?
- Você viria morar aqui?
- Eu posso morar em qualquer lugar, mas posso arranjar um quarto melhor que este para nós.
Ela segurou meu queixo e deu um leve puxão, cacoete que tinha.
- Borik, você quer que eu fique sem ter um lugar para morar?
- Do que você está falando?
- Tudo bem. Irei visitá-lo no verão e discutiremos esse assunto. Não fique emburrado, Borik, é o melhor que temos a fazer.
Por que era a melhor coisa a fazer, eu não perguntei. Eu estava no sétimo céu, meu sonho havia se realizado, e se tivesse que esperar, esperaria.
Parti com esse estado de espírito e continuei assim até a chegada de Sônia, no verão. Nós nos correspondíamos, mas não com muita regularidade – ela me escrevia contando do seu trabalho na guerra aberta que travava com as veteranas, e suas cartas eram animadas e bem-humoradas. Suas opiniões dependiam de como ela estava se dando com seus colegas no momento. O presidente do comitê local, astuto como raposa, passava a ser um doce de pessoa quando tentava encontrar um quarto para ela; e o diretor, que era um psicopata, tornava-se um gênio se a elogiava no ensaio. Não havia nada de maldoso nela, ela via as coisas da seguinte maneira: se você a tratava bem, você era um anjo; se não a tratava bem, era um filho da puta sem talento. Por sinal, mais tarde eu noite que ela podia beber vodca com o mesmo filho da puta, abraçá-lo e beijá-lo com carinho. Ela não estava sendo hipócrita, acontece que ele era um colega, um companheiro de trabalho, um homem a serviço da arte, e ocorre que até entre aqueles que servem à arte também se encontra um ou outro filho da puta.
Sônia prometeu que viria em junho, mas depois adiou para julho. Isso me deixou aborrecido, pois eu esperava que ela estivesse presente na nossa festa familiar. Que festa? Vou lhes contar.
Areia Pesada - Anatoli Ribakov.
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