Rastreio da Memória
*Texto baseado na música Sonhos - Peninha.
I
Hoje eu acordei com um gosto amargo na boca. Uma queimação na garganta como se eu estivesse sendo partido ao meio. Minha cabeça latejando e a memória confusa, sem lugar. Meus pés pisam o chão e me arrastam pela casa, sinto meu peito pesado como se meu coração estivesse preso a alguma coisa. Flashes aparecem nos meus olhos, como rompantes do passado. Você ainda está aí dentro? Balanço a cabeça na tentativa de afastar esses delírios e sigo meu caminho de autocomplacência por essa casa que não reconheço completamente, esse espaço que parece ter perdido algo e que assim como eu está vagando sem norte, a procura de ter os dedos ou os olhos ou quem sabe até uma lembrança mais uma vez junto a uma pessoa, um sentimento, um lapso de realidade. Uma circunstância. Um acontecimento. Fecho os olhos e sinto tua presença em cada parte desse apartamento bege escamoso. Te vejo cantando na cozinha e dançando na sala. Respiro fundo e sinto teu cheiro saindo do banho. Estico as mãos e por um milésimo de segundo eu posso sentir de novo o macio da tua pele úmida de encontro com a minha pele seca desmontando organicamente cada estrutura do meu corpo. Dedo por dedo eu me enroscava na tua teia. Me amarrando e me emaranhando e desejando nunca mais estar em nenhum outro lugar. Abro os olhos e a realidade cai sobre mim.
Aqui só existem passados agora.
Cada canto desse lugar foi reduzido apenas a histórias que a cada dia que passa ficam mais distantes. Me obrigo a sair do lugar e é como se a casa se arrastasse junto comigo.
Nunca me senti assim antes.
Mas isso não é verdade.
Eu já me senti assim antes. Mas eu gostaria de nunca ter sentido. Nunca ter sentido nada. Nunca ter atravessado aquela rua e muito menos ter entrado naquela loja pra fugir da chuva. Era de muita mais valia ter deixado a água lavar toda nossa história. Queria nunca ter erguido a cabeça e levado meus olhos diretamente aos teus. Aos teus tão magnéticos olhos que me renderam completa e irremediavelmente no primeiro segundo. Eu te olhei e soube que eu seria completamente teu. E assim o foi, por alguma piada cósmica do universo e de alguma forma que eu nunca vou saber explicar, você olhou de volta pra mim.
Foi o dia mais feliz da minha vida.
Você foi a pessoa que me levou aos céus.
Logo eu que sempre vivi com os pés pregados no chão. Você me fez ver novas cores e novas formas.
Você me apresentou o pior tipo de felicidade possível.
Felicidade plena e real.
A gente nunca se recupera quando ela acaba.
E eu nunca imaginei, nem por um segundo de todo nosso tempo juntos que ela um dia fosse acabar. Você me trouxe fé na vida. E eu não fazia ideia do buraco que isso abriria no meu peito. Eu te amei tanto, mais tanto, mais tanto. Eu fui tão feliz com você ao meu lado. A gente construiu essa casa juntos, brigamos pela cor da parede da sala. Você queria amarelo. E eu branco. A gente escolheu juntos cada xícara, cada tapete, cada colher e cada qualquer outra bugiganga. Era como se a cada escolha pro nosso ninho fosse um oportunidade para também nos escolhermos de novo e de novo e de novo..
Eu sempre me rendi a você. A tua existência tão conturbada me fascinava. Tudo em você me fascinava. Eu amava quando te encontrava distraída e pousava meus olhos em você como uma obra de arte. E te observava. Eu poderia passar o resto dos meus dias te observando assim de perto, te olhando, te gravando. E quando você notava a minha presença e voltava os olhos pros meus e sorria largamente eu sentia como se eu estivesse voando, fora de órbita. Completamente absorto em ti. E eu realmente achei que meu mais profundo amor e minha mais completa e plena devoção fossem o suficiente pra te fazer ficar.
Eu queria nunca ter sentido o gosto de absolutamente nada disso.
Eu era o a pessoa mais feliz do mundo. Não existia ninguém que duvidasse disso. Todo mundo notava que eu tava reluzindo. E eu posso jurar que durante aquele tempo o azul foi mais azul. Foi mais bonito. O mundo brilhava onde meus olhos, tão cheios de você, olhavam. E todos os dias ao teu lado pra mim eram assim, uma fantasia de irrestrita felicidade.
Sempre me faltou um pedaço, sempre fui fragmentado. Mas com você, eu transbordava. Nunca faltava nada. Nunca passou pela minha cabeça que pra você pudesse ser diferente. Eu nunca poderia acreditar que a pessoa que me fazia tão vivo pudesse ir embora.
Talvez toda essa felicidade e vivacidade tenham me deixado cego.
Eu repassei nossos dias juntos incontáveis vezes. Segundo por segundo. Obcecadamente procurando onde eu errei. Onde te faltei. Onde eu te perdi. Onde não estive quando você precisou. Qual foi o ponto em que cada tijolo construído ruiu, onde eu caí do paraíso dos teus braços, da tua pele, dos teus cheiros direto pro inferno que é não te ter. Não te tocar. Nem ao menos te olhar.
Eu entrei em casa aquele dia igual entrei naquela loja quando a gente se conheceu. Tava chovendo muito e eu fui correndo pra casa pra te encontrar, cheguei ensopado e levantei a cabeça pra olhar os teus olhos. Só que naquele dia, diferente de todos os outros, seu olhar não veio de encontro ao meu. Você estava sentada na poltrona, olhando pra baixo. As malas ao lado. E quando você finalmente olhou pra mim, seus olhos tinham uma cor diferente. Fosca. Cor de adeus. Eles não brilhavam mais pra mim. Eles não me amavam mais. Você não me amava mais.
A luz tinha ido embora.
Minha luz tinha ido embora.
Você não precisou dizer nada, senti o chão sumir dos meus pés. Minha cabeça cambaleava como se o eixo do planeta tivesse subitamente parado de existir. Meu estômago se revirava nauseado. Não existia mais ar nos meus pulmões. Cada célula do meu corpo já gritava teu nome. Paralisei. Senti meu coração ruir dentro do peito. Tudo foi virando pó. Cada dia, cada segundo, cada milésimo de segundo de tudo o que significou nós foi levado pela tempestade que agora já não existia só lá fora.
Eu queria ter podido parar o tempo naquele momento só pra ter ao menos mais uma fração de instante com você.
Eu vi tuas asas nascerem.
Eu vi tu levantar voo.
Quis tanto ser teu ninho.
Você disse que foi inesperado. Coisa do destino. Como se fosse pra ser. E a cada palavra que saía da tua boca eu sentia meu coração partir de novo e de novo e de novo.
Eu fiquei no escuro.
Sem saber pra onde ir.
Eu não te perguntei nada. Não falei nada. Simplesmente te assisti ir embora.
Eu queria que você ficasse. Eu queria muito que você ficasse.
Queria voltar no tempo e pedir pra você ficar.
Abrir uma fenda no espaço tempo e lutar por você.
Mas eu não o fiz.
Você foi embora.
Da tua presença sobrou só a ausência. Só a saudade.
A falta.
Você respirou fundo, soltou um suspiro alto. Ávido. Levantou em minha direção e pousou uma das mãos no meu rosto.
O calor dos teus dedos naquele dia.
.
A sensação de ser tocado pela última vez por você.
.
Tua mão deixou meu rosto e levantou as malas. A gente se olhou. Sinto muito você disse. E o som da tua voz se despedindo se misturou com o bater da porta e eu não sabia o que batia mais forte nos meus ouvidos. Eu só conseguia sentir. Sentir muito. Sentir demais.
Vi tua presença se dispersar, se tornar longínqua. Caí lenta, ordinária e repentinamente num buraco tão profundo de dor, angústia e analgesia que os dias foram passando e eu já não sabia o que era a temporalidade.
Só existia você.
.
A falta de você.
.
Os dias passaram a ser afundados no meu trabalho banal e as noites regadas a Bourbon, cigarro barato e humilhações sexuais.
Eu te via em cada esquina.
Cada palavra que saía da minha boca era teu nome que eu queria dizer.
Em cada corpo eu procurava o teu. Em cada olhar eu esperava ver o brilho dos teus olhos.
Em cada copo, em cada verso, em cada prosa era você que meu corpo suplicava.
Foram muitos dias e de muita escuridão.
Segui velejando mesmo sem farol. E a luz lentamente foi iluminando novos horizontes.
O arrependimento de perder um amor tem um gosto muito amargo na boca.
E eu te amei muito.
E te odiei muito também.
E ter que seguir em frente...
.
.
.
II
Ontem seus olhos furtivamente interromperam meu caminho e por um instante foi como se nada tivesse acontecido. Como se nada mais existisse no mundo. Como se o tempo se resumisse completa e totalmente aquele segundo. Aquele segundo elusivo. Tangível. Escorregadio. Arenoso. Concreto.
Teus olhos os quais conheci tão profundamente, seu olhar ao qual incontáveis vezes me rendi lasciva e descontrolavelmente , suas piscadas sempre tão compassadas de novo nos meus tão gélidos e profundos olhos, no meu olhar ainda dissimulado e cansado e historiografado e com tantas marcas de tentativas de esquecimento, minhas piscadas sempre tão longas, demoradas, eternizadas, enraizadas.
Você de novo em frente a mim. Tua existência a qual jurei tantas vezes irremediável admiração mais uma vez tão perto de mim.
Eu já não sabia se era real ou se era um delírio.
Vi seus lábios se moverem e quando tua voz tocou meus ouvidos senti um gelo percorrer a minha espinha. Você que me levou a núcleos de existências tão complexas e intrigantes e cruéis e transformadoras. Você que me ensinou a sonhar a flutuar a existir. Você que foi embora e deixou meu peito ainda com tanto amor pra te dar.
O tempo passou e você tava diferente. Tinha mudado o cabelo, comprado roupas novas, parecia mais velha. E eu só conseguia pensar no quanto eu queria ter visto esse tempo passar ao teu lado. Como eu queria tanto ter encontrado teu primeiro fio de cabelo branco. As primeiras rugas. Ter sentido o tédio dos dias na tua presença. Eu queria tudo com você. Cada parte, cada briga, cada risada, cada qualquer coisa. Eu queria muito ter estado ao teu lado.
Você me contou da tua nova vida e das tantas coisas que eu planejava fazer contigo e que você escolheu fazer com outra pessoa.
Ouvi um barulho e a realidade mais uma vez caiu sob mim. Olhei pra você com distância e só vi felicidade.
Pura.
Real.
Vivida.
Você tava feliz.
Você reluzia.
Você brilhava.
.
De uma forma que nunca vi antes.
.
É duro. É árduo. Mesmo depois de todos esses anos e de tantas novas histórias e experimentações, ainda é você a quem meu coração se reverencia.
-Mas não tem revolta não -.
Para além de toda a minha felicidade e suprema satisfação com a tua presença na minha vida. Sempre desejei que você fosse irremediavelmente feliz.
Ao meu lado ou não.
E – Não tem desespero não, você me ensinou milhões de coisas-.
.
Desço as armas e admito minha perda.
Sinto falta do peso dos teus dedos por entre os meus.
.
Vou te guardar num lugar só teu dentro de mim. Um lugar onde o tempo não opera e onde eu sempre posso te encontrar. Te amar foi catastrófico, não sei te dizer se eu teria coragem de viver tudo isso de novo. Mas não me arrependo de absolutamente nada. E como eu poderia o fazer? Te amar me transformou. Me modificou. Me mostrou novas possibilidades, cores, sabores. – E melhor que caminhar vazio – é a ter a certeza de que eu vivi. Me encontrei em ti, me perdi de tu e me transfiz de tantas outras realidades. Deixo aqui um pedaço meu pra você e sigo, por fim, adiante. – Amanhã será um novo dia e certamente eu vou ser mais feliz-.
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Mi abuela, que no era mujer y vieja de balde, me dijo una vez:
-M'hija, si usted supiera que la felicidad vive en una de las casas del pueblo, pero no supiera en cuál, ¿qué haría?
Yo habré tenido diecisiete y me acuerdo que me quedé pensando un rato largo. Cuando abrí la boca para responder, ella me ganó de mano. Era ansiosa Emilia.
-Iría a tocar timbre casa por casa, hasta encontrarla, ¿o no?
-Mhm, y sí-, respondí y se me escapó una carcajada. Siempre me habían parecido fabulosas las cosas con las que me salía la vieja. Le palmeé el brazo y le dije tomá el café, abuela. Después le sonreí un ¿querés un pan con manteca? y comencé a preparárselo antes de que respondiera.
-Y dígame una cosa, m'hija, ¿hace cuánto que está tocando timbre en la misma casa y no la atienden?
Me acuerdo que después de eso, hizo silencio y siguió tomando el café con leche y fue como si todos los vecinos del monoblock se hubiesen tomado el café con leche al mismo tiempo, porque no escuché más nada, como si se hubiera apagado el barrio.
Emilia sabía que yo no quería ser maestra y que no tenía idea de cómo decírselo sin que el corazón se le extinguiera un poco. También sabía que ella no había querido ser muchas cosas cuando tenía mi edad y eso la había llevado lejos de su casa, por eso me dejó ir. Y como ambas odiábamos las despedidas, esa fue la última vez que nos vimos.
Hoy pensé en escribirle una carta para contarle cómo estábamos porque anduve vendiendo las enciclopedias por el Santa Rita hasta tarde.
Quería contarle que hoy, Andrea cumple quince y que Julio fue a ver si don Acosta quería que le corte el pasto, como para juntar algo, como para hacerle una tortita, por lo menos. Para salir del paso, como dice él.
Le hubiese escrito sobre el atardecer en el Santa Rita. Las casitas, que son todas verdes, se van encendiendo de a una, como las luciérnagas entre los yuyos. Yo iba por las vereditas, volviendo de no vender nada, pensando en que ni para la torta le había podido juntar a la gorda y en que ojalá don Acosta haya necesitado que Julio le cortara el pasto.
Me mordía los labios para no llorar, no pude ni decirle buenas noches al chofer del colectivo. Le puse las monedas en la mano y fui a sentarme en el último asiento, apretando el boleto con la misma rabia que sentí cuando el padre de dos nenas que me habían abierto la puerta me dijo que me compraba un librito si le chupaba la pija. Su mujer estaba ahí y no dijo nada, pero me miró y con los ojos me dijo que me escape.
Te juro que toqué todos los timbres, Emilia, pero la felicidad no estaba en ninguna casa. Yo no sé (y quisiera que me cuentes) qué te imaginaste cuando pensaste en la felicidad, la tarde que nos vimos por última vez. Para mí, en este momento, la felicidad tiene forma de una torta de cumpleaños que no pude comprar.
El colectivo me dejó a seis cuadras, pero a esta hora las cuadras son kilométricos corredores oscuros de este lado de la ciudad. Lo único que quiero es llegar a casa, prepararme un mate y ponerme el vestido más lindo que tengo para que la nena no se olvide que hoy es su cumpleaños, aunque no haya torta.
Entré y vi a Julio sentado en el sillón con Andrea y Lucas, esperándome a mí, que no sabía dónde poner mis manos que no traían nada.
Los nenes hicieron la cena, me dijo él, mientras tus nietos me besaban. A Andrea la abracé un poco más y cuando ellos se fueron para la cocina, con Julio nos miramos. Él también tenía ganas de llorar. No estaba don Acosta, me dijo como pudo, y puso los ojos en la tele.
Me maquillé y me puse un vestido que era de mamá y lo mandé a Julio a peinarse y prendí velas y lucecitas de Navidad. A los chicos les encantó y enseguida nos acordamos de la Navidad que te quedaste encerrada en el baño de atrás como una hora y nadie se animaba a ir a golpear la puerta porque pensamos que te había caído mal el vitel toné. Nos cagamos de risa, Emilia. Tu nieta es una guacha, se puso a imitarte cuando saliste re caliente, ¿te acordás? Nos empezaste a echar a todos y el Agustín, que estaba re mamado, te abrazaba y te decía ¡perdón, abuela, mirá si te nos ibas! Julio se quedó sin aire de tanto reírse. Después, Lucas se acordó de cuando lo agarraste tirando huevos por el balcón para ver si salía un pollito y le dijiste que aparte de castigarlo por romper los huevos, lo castigabas por boludo, porque si llegaba a salir un pollito se iba a hacer sorete contra el suelo. Aproveché tanta carcajada para soltar todas las lágrimas.
Hoy me hiciste falta, Emilia.
Cuando nos terminamos los fideos al pesto que hicieron los chicos, brindamos por Andrea y también brindamos por vos y después yo pedí perdón, porque ni para la torta había conseguido. Entonces, Andrea apagó las luces y salió corriendo para la cocina. ¡Casi me infarto de la risa, Emilia! Volvió cantando el feliz cumpleaños, sosteniendo un racimo de bananas con las manos en bandeja, ¡y encima de las bananas había clavado una velita! Los varones cantaron con ella, pero yo no pude, porque no podía parar de reírme. Me levanté y la llené de besos y lágrimas y la abracé fuerte, muy fuerte. La abracé por las dos.
Ella pidió tres deseos, apagó la vela y nos dio una banana a cada uno. Te juro que ninguna torta podía ser más rica que esa banana, Emilia. La puta que hoy me hiciste falta, che. Hoy me hubiese encantado hacerte un café con leche. Hoy me hubiese gustado poder contarte que por fin encontré la casa donde vive la felicidad y que no tengo que tocar el timbre para que me abra la puerta.
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