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ceulajeado · 2 months
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dia desses, atravessando a rua que vai pra onde os coitados não têm vez, com uma garrafa de Santomé quente na mão, comentei com um falso amigo que o fim do amor é como um pai incompreendido que volta bêbado do bar, espanca, chuta, xinga, cospe, depois adormece no chão da sala, e quando acorda, vê o sangue nos dedos, a mulher com o olho roxo e os filhos chorando silenciosamente no canto do quarto, e percebe o que fez, então se levanta, toma um café meio amargo, fuma um cigarro, dá um beijo na testa de todos, diz que vai ficar tudo bem e sai pra trabalhar como se nada tivesse acontecido porque encarar os próprios atos exige uma certa estupidez humana, mas há a esperança de que ele nunca mais vai volte, e até que a superação se torne num singelo vôo de andorinha, suave e tranquilo, a ansiedade e o medo apita ao menor ruído da maçaneta.
de fato, certas coisas nunca vão acabar e certos fins sempre recomeçam, porque o amor sempre volta, o amor sempre volta, e às vezes traz flores, às vezes traz chocolate, às vezes dá um soco na costela antes de sumir, às vezes um chute no estômago. você nunca se esquece de quando foi amado e de como isso foi trágico no final.
de qualquer maneira, amor, quando for embora, tente apenas fechar a porta de casa, sem muito alarde, por favor, minhas costelas já foram quebradas antes.
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ceulajeado · 6 months
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billi caracol disse que vai morrer em três horas
Em três horas.
Em três horas tudo acabará. Foi o que ele disse. E Billi Caracol não mente.
Enquanto assiste a chuva de granizo, ele tem esse semblante de quem pensa sobre quantas vezes esteve na mesma posição, o mesmo solo triste de guitarra soando chiado no rádio, as mesmas pedrinhas de gelo caindo do céu... Como se fosse tudo tão igual.
De repente diz o vambora mais triste do Distrito e pega a pistola. Se a morte ou qualquer outra vagabunda vier antes das três horas restantes, estará preparado. Afinal, para um homem inseguro, poucas coisas não são resolvidas com pólvora e gatilho. 
Franki, por sua vez, está na poltrona, longe, muito longe dali, temendo o temporal que não o permitiu enxergar dez centímetros afora, sentindo aquele cheiro familiar, aquele cheiro familiar de, aquele cheiro familiar de tabaco queimado, e o rádio soava apesar da interferência da chuva — Dei um aperto de saudade no meu tamborim, molhei o pano da cuíca com as minhas lágrimas — porque o sambinha de Clara Nunes sempre combinou com a melancolia celestial —, e Franki argumentava consigo mesmo sobre o que acabara de ouvir da boca do camarada, essa coisa de “todo dia é o mesmo dia”, e depois veio aquilo de “eu vou morrer, vou morrer igual ontem, igual anteontem, e vou acordar amanhã como se nada tivesse acontecido só pra morrer outra vez”. Era um tanto alarmante se quer saber, não parecia ser apenas umas frases filosóficas, abstratas, ambíguas, era como se ele acreditasse naquilo, literalmente acreditasse. E foi inevitável lembrar de quando os dois eram bem mais jovens, os dias eram ensolarados, os corrimões tinham tinta, as escadas cimento, e os militares marchavam na rua com fuzis gigantescos, andando em bando, o barulho doentio daqueles furgões dando partida, e você torcia para que nenhum deles estacionasse na sua frente, na sua casa, na sua vila, porque se acontecesse, significaria morte ou coisa pior, e, sentados na escada do cortiço, Billi Caracol ofereceu um cigarro de palha a Franki, e, pela primeira vez, Franki aceitou, porque os dois eram adolescentes idiotas e ninguém gostava deles, nem mesmo quem deveria gostar, e o Billi Caracol jovem ordenou "engole a fumaça, engole pra valer", e Franki obedeceu, mas em seguida seus olhos começaram a lacrimejar, brilhando ardentemente como se fossem dois pneus molhados, e aí veio aquela tosse desesperada, aquela tosse doentia, os pulmões convulcionando, o peito sem conseguir puxar mais oxigênio.
— Merda, Billi! — gritou Franki Franzino, batendo nas próprias costelas —, você tá tentando me matar? —, e tossia e tossia e tossia.
E Billi Caracol chacoalhou os ombros, afirmando que tava tudo bem, que o corpo de Franki apenas não aceitava um tóxico, era questão de hábito, de insistência.
— ESSA PORRA QUEIMA, BILLI! 
— Então você fez certo, mariquinha.
— Ué, você não sente queimar? — perguntou. 
— Claro que sinto — Billi respondeu.
— Então por que continua fumando?
Billi Caracol respirou fundo, apagou o cigarro de palha na sola do sapato gasto, engoliu a última fumaça e resmungou:
— De qualquer maneira, gente como eu acaba queimando. É bom se acostumar.
E havia aqueles sons, não, não eram sons, eram ruídos, batidas, choros, gemidos, gritos, ais, socorros, berros altos, desesperados, abafados pela porta de madeira, e o Billi Caracol adolescente sorriu enquanto enrolava outro cigarro, sorriu, sim, o que por si só já era esquisito o suficiente, mas sorriu de uma maneira dolorosa e disse minha avó enlouqueceu, mas tudo bem, é coisa de família, esse é nosso inferno, é assim que queimamos.
Naquela tarde, Franki compreendeu algumas coisinhas, quer dizer, aquele menino solitário, caipira, de carranca fechada, que roubava livrinhos de faroeste das bancas e sabia enrolar tabaco, falava tantas paradas incompreensíveis para a mente do pequeno Franki Franzino, mas agora, quase 15 anos depois, Franki finalmente compreendeu: devia ser coisa de família mesmo, porque ricos herdam casas e comércios e cruzeiros e cruzados e terrenos e talentos e fazendas e felicidade, mas, para eles, toda a loucura do mundo, toda a loucura. Toda a loucura do mundo.
E lá estava o velho Billi Caracol, o de agora, o que fala sobre as próximas três horas, e ainda fumante, e ainda difícil, e ainda discreto e nada sorridente.
— Você não tá ouvindo o temporal, Billi? — Franki apontou para a janela, com aquele ar preguiçoso, as pálpebras baixas, a boca entreaberta. 
Billi Caracol, parado na porta, de costas para o camarada, suspirou tão profundamente que seus ombros largos se expandiram mais e quase tocaram as extremidades do pequeno apartamento. Com o chapéu de couro escondendo os olhos escuros, Billi apenas fez sinal afirmativo. Sim, eu ouço a chuva. Abriu a porta que gemeu de luto, a porta, sim, que parecia dizer sinto muito, caubói, sinto muito pelo seu fim de hoje, e gemeu como se nunca mais fosse sentir as mãos frias e pesadas de Billi Caracol, como se todas as aflições internas no peito carrancudo de um homem perdido no imperscrutável lapso de agonia, fosse desaparecer em três horas.
Billi Caracol gargalhou:
— Vou morrer, Franki. Preciso de uma cerveja. Ontem estive sóbrio quando a morte chegou, hoje vai ser diferente.
E saiu dramaticamente. Em busca do bar. 
O bar de sempre.
O Bar Baridade.
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ceulajeado · 9 months
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nunca um pai de família
Assim como Rimbaud, minha linhagem comportou muitos otários malucos e vagabundos em sua maioria. Mas também muitos trabalhadores honestos, pais de família, severamente apegados às suas rotinas infernais, obedientes a um sistema que funciona muito bem quando a ideia é que os pobres sejam miseráveis. Só que eu não. Eu não era trabalhador. Não queria casar muito menos ter filhos. E não por falta de vontade. Deus sabe que eu seria um trouxa fascinado por alguma ideologia, mataria pelo conservadorismo das obrigações. Acordaria todo dia, quando o sol ainda dormisse, tomaria um café escasso e comentaria com a minha mulher como a crise tá acabando com a gente, veja só, o dinheiro não vale mais nada, eu trabalho igual uma mula pra ter grana e me deprime não ter a maldita grana, e ela secaria as mãos no pano de prato, dizendo que me odeia, que eu estraguei a vida dela, e eu direi que a odeio de volta, e, secretamente nos perguntamos porque continuamos com esse casamento desgraçado se um dia nossas crianças crescerão e farão questão de morar bem distante de nós, e quando acontecer, seremos condenados a passar o resto dos anos sendo dois velhos que se odeiam ainda mais. Eu quebraria o copo ao terminar o café, e diria que se soubesse que ela ficaria tão feia, teria comido a irmã mais velha, e aí eu pegaria minha marmita e sairia pra mais um dia, meu corpo pesando pela falta de uma boa noite de sono, já que a cama velha foi comprada numa loja de móveis usados e eu nem quis descobrir porque o colchão tinha tantas manchas brancas. Em pouco tempo, estaria na estação do trem que já vem lotado, rumo ao trabalho, oito horas por dia mais extras, numa loja de departamento, vendendo coisas que nunca poderia comprar, não com esse salário, não com a cesta básica tão cara, e teria que escolher o que é menos agonizante: trabalhar feito maluco por uma miséria no fim do mês e ter que aguentar um gerente que passa a mão nas minhas bolas em troca de me deixar usar a cafeteira do escritório, ou ir pra casa e ter que encarar os olhos da minha mulher, enquanto ela diz que eu sou um fracassado, um molenga, e que só está comigo porque a outra opção é voltar pra casa do pai que a violentou desde os três anos de idade. Ela juraria que ia deixar as crianças comigo, já que nenhum de nós dois consegue amá-las. Essas crianças desgraçadas, eu pensaria, subindo o zíper da calça, sentindo o cheiro do cafezinho, me culpando por ter ficado de pau duro com a mão quentinha do gerente. Já fiz muita coisa terrível e inútil, mas um menino raivoso que destrói os brinquedos aos chutes e matou o Damião e o Anderson, os dois hamster que comprei pra ele, com um barbante no pescoço, e uma garota esquisita que sempre corta os pulsos acidentalmente, vomita tudo o que come na privada e deixa a casa com a mesma atmosfera dos contos de Edgar Allan Poe, foi, de longe, o pior dos meus feitos. E eu pensaria no quanto esses filhos bizarros e essa esposa triste e esse gerente tarado e esse emprego de merda, fazem da minha vida um inferno. Odeio a todos, pensaria. Acordar vivo é torturante, por isso hoje eu vou no bar, de novo, e vou beber em homenagem a injustiça que meu destino é. E então eu descobriria as apostas também, o jogo no bicho e o carteado, e pegaria empréstimo com o agiota pra poder jogar mais. E me endividaria. Iria pra casa, perto das cinco da manhã, chapado e bêbado, sem meus sapatos e com a camisa manchada de sangue, e bateria tanto na minha mulher que ela teria saudades do papai. Depois iria pro quarto do menino, e lhe daria a surra da sua vida. Então eu acordaria a garota, arrastaria seu corpo de peso pena pelos cabelos e a faria ver sua mãe ensanguentada, seu irmão chorando, e quebraria os móveis enquanto ela grita de pânico, mas deixaria ela intacta porque, de todos os covardes coexistindo naquela casa, ela seria a única capaz de me odiar o suficiente pra um dia me matar. E eu a faria desejar isso. E esperaria, até que estivesse pronta.
Mas, infelizmente, tudo o que me resta é ser um otário maluco e vagabundo.
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ceulajeado · 1 year
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existe muito amor lá fora (pt.1)
Cá entre nós, dava pra saber que eu tinha problemas só pela maneira que entrei no bar. Mas é o que diz a voz da rua: serenidade é chaveiro de mocinha que tem saldo positivo na conta bancária. Do lado de cá do abismo, os malditos dormem de exaustão depois de espancar um Cérbero por dia, intoxicado de metanfetamina e viagra. Serenidade? À merda com sua serenidade. 
Tudo bem, calma, pensei, sentindo o cheiro de azedo dos vômitos doentes e a brisa abafada que abraçou minha sobrancelha ensanguentada, tudo bem porque, semelhante a estes imundos largados nas mesas de plástico, tomando Pitú com limão e mel pra bater mais rápido, eu também sou apenas outro submisso de ervas proibidas e escravo de mulheres indomáveis, e talvez tenha um caráter duvidoso e assertivamente nenhum capital e provavelmente sete tipos de demônios boêmios pesando nos calcanhares e pelo menos uma casta de encosto gritando nos meus ouvidos que seu nome é Legião, Legião porque são muitos. 
Me sentei no balcão e pedi uma cerveja. Narciso me olhou torto e não parou de me encarar e palitar os dentes até ver a nota de dez na minha mão. 
Acendi um palheiro. 
Olhei pra trás, pra todos aqueles indigentes falidos, acumuladores de moscas, fingidores de sentimentos, e notei o quanto a falta de liberdade impede a gente de se expressar, mesmo em ambientes lotados de miseráveis mesquinhos. 
Tive um acesso, queria surtar. Surtar livremente, da maneira que Deus nos criou, e viu Deus que era bom. E se Ele acha, quem sou eu pra discordar.
Com as mãos trêmulas e os pensamentos confusos, ajeitei a camisa suja e tirei o excesso de sangue que escorria da sobrancelha pra dentro do olho. 
Eu quis levantar, quis jogar pro alto as mesas de plástico. Pegar a garrafa de cerveja pelo bico e estourá-la na cabeça do primeiro otário bebum que pedisse calma. Calma?, calma, meu filho?, nunca peça calma a um maluco desonesto que vem tentando honestamente se encaixar nesse mundo de merda. E aí eu pegaria os cacos que sobraram e iria pra cima do Narciso: ao diabo com seus modos, eu diria ao velho, todo mundo aqui sabe as imundícies que você faz com a pobre Jojo Miti naquele fundilho azedo e seco e apertado (do bar), chegou a hora de sentir o gosto ardente do assédio rasgando seu traseiro. E quando terminasse com o Narciso e ele tivesse engasgando com bile e restos do pão com mortadela que comeu café da manhã, e sem conseguir falar direito (porque deve ser meio difícil dizer qualquer coisa quando se tem um pedaço de vidro marrom interrompendo o fluxo das cordas vocais), eu caminharia até o palhaço que vem fazendo barulho, tentando tirar as moedas do caça-níquel, tomaria o cigarro daquela orelha ensebada, e gritaria: ABAIXA ESSE TOPETE, VOCÊ NÃO É O JOHN TRAVOLTA!, e então eu enfiaria um soco de direita naquele queixo com um furo no meio que parece uma repartição de bunda peluda. Depois pegaria aquela loira esquisita pela cintura, ergueria seu corpo esguio até que seus olhos de latina desvairada atrás de droga tivesse próximo dos meus, e diria que ela é a mulher mais bonita daquele bar todinho, claro que o fato de ser a única não teria nada a ver com isso, e, parando pra pensar, esse não é dos melhores elogios, mas aí ela não teria tempo para pensar porque eu enfiaria minha língua tão profundamente naquela boca, que sentiria o gosto de seu coração frio e abandonado, de seus rins que falham, de seu pulmão profanado por fumaça, de seu estômago lotado de esperma, e ela nunca mais se esqueceria de mim, e eu diria querida, pare com isso, nada de amor, amor não, amor é pra quem pode, amor é pra quem tem tempo, pra quem não precisa se preocupar com a conta de luz e água, pra quem não foge do agiota, pra quem não tem depressão, pra quem tem saldo positivo no banco. E ela choraria um choro mais alto que os recém-nascidos que nasceram recentemente na maternidade a quinze quilômetros de onde estamos, porque ela entenderia que eu sou um homem ímpar num mundo de pares, um em um milhão, bem, apesar que existem bilhões, e, se você parar pra pensar, apesar das vírgulas, das pausas, dos termos, das orações precárias, dos verbos pobres, dos vícios de linguagem, da repetição, do cansaço, vai entender que, na realidade, ser um em um milhão num mundo de bilhões não significa muita coisa, e ela ali, chorando choros, mas eu diria: calma!, calma mulher, calma, existe muito amor e muita esperança lá fora, só não pra mim, só não pra você...
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ceulajeado · 1 year
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– Billy-Ray Belcourt, A History of My Brief Body
[TEXT ID: "To love someone is firstly to confess: I'm prepared to be devastated by you."]
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ceulajeado · 1 year
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a parte da casta sigilosa de artistas subterrâneos que provocarão um golpe artístico
Estávamos nos calcanhares de São Paulo, sentados num bar esdrúxulo, quase abandonado pela parte útil da sociedade desde o epílogo da Revolução Industrial.  
Mercúrio puxou seu caderno de capa de couro, sem linhas, e decidiu que ia recitar. Bebia dois copos de cerveja e já ficava fora de si.
— “E eu sou parte da casta sigilosa de artistas subterrâneos que provocarão um golpe artístico…” — declamou, o indicador apontando para o teto do bar. Tirou o cigarro do cinzeiro e tragou até o primeiro engasgo. 
Era bem afeiçoado, usava os cabelos pro lado esquerdo e se nomeava como o “poeta da verdade”. Quando quieto, Mercúrio realmente era um. 
Eu o achava péssimo nessa coisa de escrever e ele se achava incrível – um de nós provavelmente estava certo. Toda vez que Mercúrio recitava um verso autoral, me vinha à mente como a contracultura tinha virado maçaneta de banheiro de bar: todo mundo evitava por a mão por puro nojo. 
Com menção a transtornos mentais, vícios e decadência você criava um montante de fezes e chamava de obra-prima revolucionária. Para os contemporâneos, até que era.  
— “...e as Flores do Mal podem, finalmente, tecer a liberdade artística para desabrochar nossa depressão, com a benção dos beijos de uma virgem que refletem o consumismo da sociedade, transbordando a impaciência de Baudelaire sobre os operários que derramam amores e lágrimas nas fábricas monstruosas!” — Mercúrio colocou novamente o cigarro na boca, afastou o caderno e apertou os olhos como se encarasse o final da rua. Depois ergueu a testa em minha direção e sorriu com prepotência. — E aí, Romeu?
— Hum?
— O que você acha?
— Honestamente — rodei o copo nos dedos — essa cerveja aqui me parece congelada.
Ele jogou o caderno na mesa. 
— Perguntei o que acha da minha nova poesia. 
— Ah…
O problema era o moscatel, tinha de ser, ou minha tolerância para o álcool. Eu já não ficava mais tão solto no segundo, terceiro ou quarto copo. Precisava de estímulo pra conseguir fingir interesse, e havia deixado intacta meia garrafa de moscatel debaixo da cama do dormitório. As cervejas demoravam pra fazer efeito. O meio termo entre bêbado e sóbrio não me alegrava. Ou eu vomitava nos pedregulhos da Vila Prudente ou nem saía pra luz do dia.
— Escuta, cara — tentei sorrir, então percebi que seria um trabalho difícil e parei  de tentar — eu não entendi nada do que você escreveu. 
Mercúrio respirou fundo e franziu o cenho como se quisesse criar uma monocelha. 
— É que você não entende nada de arte. 
— Pode ser. 
— Romeu, meu amigo, você é um escritor mediano, isso pra não dizer péssimo. Você sabe, somos camaradas, e se você fosse humilde eu poderia te ensinar algumas coisas.
— Que seja — peguei uma azeitona no prato e tomei outro gole de cerveja.
Naquele tempo, eu morava nos fundos de um açougue e costumava escrever livretos western, pequenos e diretos, pra uma pequena editora underground que vendia exemplares sob encomenda nas bancas de jornal. Só fazia pra não morrer de fome e sóbrio. 
— Já conseguiu terminar o livro do Sami Sam e as Mulheres de Vermelho? — perguntou com desdém.
— Você sabe que não. 
— E o prazo?
— Vence semana que vem. 
— O que você vai fazer?
— Não sei, tô pensando em tentar vender um conto pro concurso no sarau do Teobaldo. Ele paga 20 pila pro vencedor. 
— Teobaldo — Mercúrio cuspiu no chão — você deve tá desesperado mesmo. Não que as aventuras do caubói Sami sejam boas. Na realidade, Romeu, aquelas histórias são excessivamente vergonhosas.
— Mas são tempos de excesso, meu caro. Excesso de miséria, crise e escassez criativa.
— E esse Teobaldo, não gosto muito dele. O cara age como se dominasse a arte da escrita. 
Engraçado como as pessoas não conseguem se enxergar. Os autodeclamados poetas estão cada vez mais soberbos e prepotentes, e falam dos outros da maneira que deviam falar de si mesmos. Mercúrio queria expor as dificuldades da rotina dos operários e as dores dos vagabundos de 1919 de maneira anarquista, e se achava um editor da Plebe, mas escrevia feito o dono de cafezal que acabou de degustar de um belo corte de boi mal passado e um conhaque importado após um crioulo sofrido ter lhe lustrado o couro dos sapatos franceses. 
Não consegue escrever sobre a agonia do parto o infeliz que nunca sofreu um. 
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ceulajeado · 1 year
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“I can’t describe her exactly—except to say that she was beautiful. She was tremendously alive. She was eating gum-drops.”
— F. Scott Fitzgerald, The Beautiful and Damned (1922)
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ceulajeado · 1 year
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vinteumdenovembro
brás. esquinão.
um escort cinza vem fazendo alvoroço, perfurando sinais e profanando a lei a mais de 40 quilômetros por hora no cruzamento. um dos pneus está careca como a maior parte dos avôs adestrados pelo regime militar, mas ele continua correndo. 
são 10 da manhã. as pessoas passam pela rua aos montes e algumas me olham feio porque eu pedi o segundo litro de cerveja e odeio a todos, e a cozinheira frita uma suspeita porção de tilápia e mandiocas por 18 reais. 
sem perceber nem se importar, o escort cinza passa por cima do pé direito de uma velha que ameaçou atravessar a rua na faixa de pedestres no semáforo vermelho.
todos se juntam na encruzilhada quando ela grita, o pé sangrando, o osso aparecendo, o escort desbravando o horizonte numa liberdade invejável. 
fiquei na mesma, desejando as carteiras dos curiosos, detestando suas opiniões e suas mulheres e refletindo sobre como a tragédia repentina instiga a vontade de comer uma linguiça assada com queijo, cebola e pão francês. 
que desumano, diz uma mulher assustada, como ele pôde fugir depois de atropelar uma senhora de idade?
encho meu copo com mais cerveja, acendo um cigarro de menta dentro da lanchonete porque só sobrou eu e algumas vozes ali dentro, e nenhum de nós se importa muito com a fumaça. as chamas do fogão incendeiam o feijão e a cozinheira se senta na calçada com um baseado bolado e uma dose de cachaça amarela. nada mais importa. 
isso foi tão cruel, repete a mulher, que desumano.
engraçado, eu penso, porque cruel é exatamente o que a humanidade é.
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ceulajeado · 1 year
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estrago seu amor em três dias
Nunca entendi a razão de haver tantos orelhões próximos um do outro por aqui. Todos eles com citações que Caio Fernando Abreu nunca disse, números aleatórios de putas ou cartomantes e frases religiosas genéricas. 
Fraldas e políticos precisam ser trocados regularmente (Caio Fernando Abreu), trago seu amor em três dias, 2 garota-surpresa por 45 reais, Jesus te ama. Essas e outras promessas vazias.
Eu tava em horário de almoço no trabalho. Tom ficou de me ligar uma e meia da tarde porque era quando ele estaria no intervalo das aulas também. Passei pra ele o número do orelhão da Rua dos Cavalos onde eu aguardaria pela sua boa vontade de gastar as fichas de telefone. 
Tinha o orelhão da Santa Rita, perto de uma escola militar, e o da Rua dos Trilhos, porém não eram vazios o suficiente. Gente demais passando na calçada me acanhava. 
Era sexta-feira. Acendi um cigarro enquanto esperava. 
Havia esse pequeno armazém com promoção de vinho: uma garrafa de 700ml por 8 contos. Chorei pra dona do lugar fazer por 6, só que ela era boliviana e não conseguimos nos entender. Levei por 10. 
Então o orelhão tocou. 
– Pois? 
– É o Tom.
Conversamos um pouco sobre futilidades. O tempo, a rotina, o café, as notícias, aham, e a política, hein?, pois é, pois é, você sabe, já dizia Caio Fernando Abreu: amores, lençóis, fraldas e políticos precisam ser trocados regularmente, aham, sim, dia 30 de setembro fez um ano que ela morreu, pois é, pois é, jura?, tá dando aula de literatura?, o uniforme tem cores do Brasil?, isso é muito específico, já vi uma dessas escolas militares, na verdade tem uma de frente do meu trabalho, sim, o hino nacional, todo dia, o quê, não me diga, teve que levar sua pasta com documentos pro orelhão?, que Brasil é esse que nem em escola militar a gente tem sossego?, apesar que eu também roubaria as respostas da prova do professor se ele não tivesse na sala.
Nos tratávamos como profissionais. Profissionais de alguma coisa não muito profissional. Era como encontrar outro paciente na sala de espera do psicanalista. Sempre fomos assim. 
Eu só tinha visto Tom uma vez, e foi um desastre. Uma experiência que eu, particularmente, pretendia repetir. Ele nem tanto, era covarde. Combinamos de manter nossa interação somente por correspondência, de modo que ligações eram um avanço. 
Transitamos por muitos assuntos, alguns dos quais eu sequer conseguia entender a conexão dos fatos. Era como comer pavê numa trincheira: doce e explosivo. 
– Viu, é por isso que eu nunca namoraria você – ele disse. 
– E quem disse que eu namoraria você?
– Bom, Rubem Braga falou uma vez que-
– Você baseia todas as suas opiniões no que foi dito por outros idiotas?
Ele suspirou. 
– Todos nós fazemos isso. A diferença é que eu sei a fonte e você prefere agir como se tivesse pensado sozinha numa frase de efeito. 
Eu não levava tão a sério as provocações em partes porque Tom tinha a voz fina e suave, às vezes era como escutar o Gato Félix me chamando pra brigar. E ele era péssimo nessa coisa de debate direto.
Ele riu e perguntou:
– Espera aí, você realmente acha que é autêntica?
– Eu sou quando não dou a bibliografia de tudo que digo. Por exemplo, eu posso pintar um quadro e cortar minha orelha, se eu nunca mencionar Van Gogh você vai me considerar artista. 
– Não diria artista. Talvez maluca... psicótica... suicida... – disse o Gato Félix.
Apoiei o telefone no ombro e peguei outro cigarro. 
– Qual é a diferença?
Uma Brasília quase bateu num Corsa no cruzamento. O falsete agudo de pneus marcou o asfalto. 
Engraçado: alguém realmente paga pra conseguir um amor em três dias?, essas coisas costumavam levar mais tempo antes. Mas se o homem foi à lua e conseguiu criar um telefone pra que eu escute os pensamentos idealistas de um jovem adulto no ápice de sua loucura, que acredita fielmente ser capaz de amar com verdade todas as mulheres alfabetizadas desse mundo, então tudo pode ser feito.
– Você ainda acha que o amor acontece uma única vez?, ou será que eu sou um romântico que não suporta a ideia de ficar sozinho?
– Sim – respondi.
– Sim o quê?
– Minha resposta.
– Tá, mas pra qual das perguntas?
– Eu deixo você escolher. 
Uma mulher muito jovem atravessou a rua com um carrinho de bebê. Um cara de regata branca no Chevette vermelho parou, abaixou o vidro e gritou nossa senhora, eu faria uns dez desse em você. 
Tom era um bom ouvinte. Mas se argumentava mal, costumava ser pior ainda com alegorias. 
– ...sim, tipo, imagina que você entra no trem que vai pra Sé – ele disse –, vai ver muitos lugares mas não é o seu destino. 
– E daí, porra? O que isso tem a ver com a morte?
– A morte é o destino.
– Mas ir pra Sé não é. 
–  É sim. Você vai ter que ir pra lá.
– Não. Eu posso simplesmente descer na São Bento. Destinos são mutáveis. 
– Você não pode. 
– Eu posso sim.
– Não pode. 
– Claro que posso. 
– NÃO, VOCÊ NÃO PODE.
Cocei minha testa atrás de alguma paciência. 
– Escuta, meu filho, sua metáfora não tem a menor lógica. A gente não muda o fato que vai morrer.
– Sim, é por isso que você precisa descer na Sé. É um dest...
– Eu juro por deus que se você disser destino mais uma vez...
– O problema é que você nem se esforçou pra entender. 
– Tá bom, então digamos que você tá no metrô sentido Jabaquara, o final é Jabaquara, isso você não pode alterar. Pode descer na Sé, antes ou depois, mas ele ainda vai pra Jabaquara, e em algum momento você vai precisar voltar pro metrô e, adivinha só: ir pra Jabaquara. Não é seu destino, é somente o fim da linha. 
Tom ficou num silêncio suspeito. 
Uma charrete parou no sinal vermelho e um carteiro de bicicleta assobiou pro motorista do ônibus. 
– Eu posso apenas voltar pra Tucuruvi e nunca ir pra Jabaquara. 
– Mas não muda o final. 
– Que final?
– Jabaquara. 
– Você bebeu? 
– O que isso tem a ver, Tom?
– Tá me dizendo que Tucuruvi é o nascimento?
– Você bebeu?
– Não.
– Deveria. 
Um caminhão de colchões tombou na sarjeta da Santa Rita, bem na esquina da frente. O poste caiu em cima de um Fusca, os fios de energia se embolaram no capô e os retrovisores de uma moto quebraram com o impacto. 
Tive a impressão de ter ouvido a batida pela linha do telefone também.
– Droga – disse Tom –, desculpa o barulhão, aconteceu um acidente. 
O motorista do caminhão gritou um protesto, disse que o bueiro tava sem tampa e agora ele ia ter que arcar com o prejuízo. Sentou no chão, desesperado. Parecia ter dito no meu ouvido. 
– Eita, parece que o bueiro tava sem a tampa.
– Como você sabe disso? — perguntei, atônita.
– Acabou de acontecer aqui na minha frente. 
Parei um segundo, refletindo sobre algumas coisas da vida. Por que o céu é cinza?, por que paguei 10 num vinho que custava 8?, por que o amor viria em 3 dias e não em uma semana?, por que Caio Fernando Abreu e não outro autor aleatório da contracultura?, por que tiraram a tampa do bueiro?, o que as pessoas vão fazer em Jabaquara?, é possível acontecer dois acidentes semelhantes, ao mesmo tempo, entre Guarulhos e o Brás?, quantas escolas militares com uniforme verde e amarelo existem por aí?
– O colégio que você dá aula, fica no Brás? – perguntei.
Ele respondeu um aham confuso e hesitante.
Olhei para trás, lá estava a escola. 
Apertei os olhos e, na outra esquina do caminhão tombado, de frente a uma pastelaria, havia duas pernas e uma pasta de couro debaixo do orelhão. 
– Merda, Tom.
Coloquei o telefone no gancho e sai andando para o lado contrário. Não ia voltar pro trabalho, decidi que tava doente. De qualquer maneira, o vinho não ia me fazer bem mesmo.
Eu menti quando disse que queria encontrá-lo novamente, para algumas relações, a distância e os raros momentos são essenciais. Mas admito que é necessário ter muita coragem pra ser covarde assim.
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