Tumgik
tocadovictor · 6 months
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Morte, Vida e Ócio
É aproximadamente cinco da tarde de um sábado de Novembro do ano de 2023. Estou escutando Document do R.E.M. e achei que era um bom momento para publicar um texto que tive dificuldade de editar. Não necessariamente pelo tópico sensível, mas sim por uma estranha inércia que me impediu de terminar o processo durante a segunda parte das minhas férias. A primeira metade foi revisada e editada por mim durante o período de uma semana. A segunda metade está mantida como esboçada. Sem edições por minha parte. Tenho a sensação de que editá-la agora eliminaria uma parte importante do sentido disso tudo. Talvez eu também não tenha corrigido os erros ortográficos. Escrevi isso tudo em julho, logo após a morte do meu tio. Descreve minha primeira experiência com o luto--senti que seria um desserviço deixá-lo engavetado por mais tempo.
Dedico este texto à memória do meu tio Roberto. Uma pessoa muito especial que está deixando saudades. E também ao meu finado amigo Valter, que trabalhou comigo durante um dos períodos mais difíceis da minha vida, e trouxe alegria ao meu dia a dia com seu jeito engraçado e cuidado atencioso.
Estas pessoas passam pela minha mente de vez em quando.
E ficam.
Eram 8 horas da manhã de uma quinta-feira. Comum como as anteriores até então. Um dia de trabalho sem muitos detalhes. Já estava no finzinho do primeiro semestre escolar. Não haviam alunos na escola. Passei o dia estudando e ajudando com a organização das pastas do arquivo morto da secretaria. É um escola antiga, com uma quantidade tão antiga de prontuários e um número acima do normal de alunos que passaram por lá. Estavamos colocando as fichas daqueles que nasceram antes de 1960 em um lugar separado dos demais. Por um erro de logística, e uma decisão sem nexo de uma diretora que passou por lá (e que obviamente não trabalhou no local por tempo suficiente para ver as consequências), estamos a poucos passos de não termos mais espaços para armazenar tantos documentos. Essa foi uma tentativa de evitar o pouco-evitável. Virtualmente inevitável, Talvez com um pouco de orçamento, e um lugar a mais para guardar uma boa quantidade de folhas mofadas e pedaços de história, tudo possa ser resolvido. Por enquanto estamos improvisando. Poderia ter sido um dia de marasmo sem igual, mas a presença dos meus colegas de trabalho tornaram as coisas mais leves e menos enfadonhas. Foi bem tranquilo e sem complicações. A hora passou como tinha que passar—por mais lento que possa parecer quando não estamos no conforto da nossa casa e no prazer de uma atividade que gostamos, isto é, qualquer outra coisa que não seja ficar à toa ou se estressar de graça. Lembro que nesse mesmo dia eu também usei um pouco do conhecimento que tenho em computação—ensinado pelo meu pai, durante aqueles diversas ocasiões onde o nosso computador parava de “dar imagem” por conta de uma de nossas memórias RAM que estava com defeito—para consertar uma das maquinas do trampo. Não é muito comum que eu tome a iniciativa desse jeito, mas estava sem muito o que fazer e com um computador inutilizado bem na minha frente (quando poderia estar lendo alguma coisa, ou estudando com mais qualidade). Então o que eu fiz foi bem simples: peguei uma borrachinha branca que estava alí perto, em cima de umas das mesas, e passei no contato das memórias. Limpei um pouco da poeira do gabinete—tomando cuidado pra não quebrar alguma coisa—e quando liguei… Voilà! Pegou de primeira. Não tive tempo de usar ele, mas me senti bem de aplicar algum conhecimento que aprendi na infância. O expediente passou, então, sem pressa e sem loucura. Meu celular descarregou durante esse meio-tempo. Deu meu horário. Sai, e andei em direção ao ponto de ônibus. Tive que passar a viagem até em casa sem escutar as minhas músicas, como costumo fazer. Me aborreci de início, mas não me prendi a isso por muito tempo. Li um livro que meu amigo me emprestou, durante o trajeto, e também peguei a minha Bíblia de bolso para ler durante no trem—a penúltima etapa antes do virar das chaves no portão, e o tirar dos sapatos na área de fora. Estava lendo o Salmo 119. Meditei um pouco no que estava escrito. Espiei pela janela do trem na esperança de estar perto de minha estação. Cheguei e desci as escadas do terminal.  Peguei o ônibus como todas as outras vezes. Foi chato não ter nada para escutar. ME conformei com o som do ambiente. Por algum motivo eu me senti bem em ser forçado a escutar o mundo em minha volta. Desci no mesmo ponto de sempre. Atravessei a mesma rua. Olhei para o mesmo céu cinza e sem estrelas de São Paulo. Escuro. Silencioso. Mudo. Mascarado por luzes que escondem sua real beleza. E com pouquíssimas estrelas. Olho para a lua. Chego em casa. Abro o portão. Passo para dentro. Escuto a voz do meu pai, e nesse momento o martelo desceu pela primeira vez. Entrei pela porta e me aproximei da janela. Minha tia. Minha avó. Meu pai. Todos reunidos ao som da notícia:
Meu tio morreu.
Foram longos e curtos meses. Onze, lutando contra a leucemia. Não pensei que chegaria a esse ponto. No começo estavamos apenas com a suspeita da doença. Seria apenas mais um obstáculo no caminho da vida. Contornado como todos os outros até então.  E mesmo que fosse o caso, a esperança de sua recuperação era como uma certeza para nós. Ao menos para mim, era. Sempre estive otimista diante da recuperação. Ela era uma questão de tempo. Isso no mundo da mente, é claro. A realidade é um pouco diferente. Foi algo sério, e quando veio a confirmação de seu diagnóstico, ficamos atônitos. O tempo passou. Oramos por você, e aguardamos ansiosamente por sua melhora. Pedimos para que as coisas pudessem se resolver, e para que você voltasse a ter o seu típico vigor, que nos enchia de alegria e tornava as nossas vidas mais divertidas. A expectativa pelo retorno à normalidade ocupou os nossos pensamentos durante esses meses. De vez em quando eu pensava no seu quadro de saúde, e continuava na expectativa, com uma esperança viva. E assim seguiu. Perguntava por você—sobre como você estava e se havia alguma novidade. Isso mais para o final, eu admito, pois no o começo eu achei que não era nada demais. Achei que a suspeita continuaria sendo uma suspeita. E mesmo com o diagnóstico certo, logo tudo iria se resolver. Assim foi, e o tempo passou novamente.
Meu amor por você, tio, permaneceu vivo à distância. Você fez parte dos meus pensamentos por um bons momentos desse período da minha trajetória—e ainda faz. Infelizmente não pude ter ver presencialmente no dia do seu aniversário. Nem eu, nem meu pai. Durante as últimas semanas, começamos a receber notícias mais frequentes sobre o seu estado. Elas subiam e desciam. Iam e vinham e nos deixavam atentos. Orei por você, e me esforcei para não ser desleixado em minhas preces. Pedi a Deus para que você pudesse ser curado dessa doença, e que pudessemos o ver com saúde novamente. Um pouco antes da pandemia, você veio aqui em casa visitar o meu avô. Eu estava voltando da escola quando te encontrei de surpresa na frente do portão de casa. Lembro que você quase tropeçou na elevação que tem na calçada da frente. Então nós entramos, você ficou na sala, e eu fui cumprir o meu ócio lá no quarto do computador. 2019. Foi a última vez que te vi em vida. 
Por um bom tempo do tratamento, estivemos na espectativa de você conseguir fazer o transplante de medula. Até que fez, e a cirurgia foi um sucesso. Aguardamos, então, o seu corpo reagir para que você pudesse se recuperar.
Não foi o que aconteceu.
A hora havia chegado. Fugiu completamente do nosso controle, e escapou por pouco da nossa compreensão. Ficamos mais atônitos do que quando recebemos a notícia da doença. Um soco no estômago, e um chute na cara. A digestão começou rápida, só que aí ficou lenta. Se fosse mais súbita, teria descido uma nuvem negra em cima da minha cabeça. Então eu parei por um minuto e pensei: “Deus sabe o que faz” e também parei por outro minuto e pensei “O que está acontecendo, afinal?”. Sim, Deus sabe o que faz. E não posso tomar essa situação toda como um prejuízo. Seria ingênuo de minha parte ignorar que isso tudo fosse impossível. Veio na minha mente a música do Kero Kero Bonito—Only If I’d Known—que fala sobre as diversas possibilidades que passam diante dos nossos olhos, até que o sujeito da canção chega na conclusão de que não há porque se preocupar, já que sentimos todas as linhas do tempo de uma vez só. Isso é apenas uma divagação engraçadinha. Não é assim que funciona. A linha do tempo é apenas uma só, e ela está repleta de surpresas surpreendente repletas de possibilidades imprevisíveis e eletrizantes—ou você com o choque, ou vira um condutor dele. E agora a pergunta para mim mesmo: porque não haveria de ser assim? Para todas as coisas há um tempo, e cada resultado tem um momento apropriado de se manifestar. Eu sei muito bem que poderia ter sido diferente. Que o nosso Senhor poderia ter curado meu tio. Ter tirado ele dessa, e mantido a alegria de sua presença em nossas vidas por mais um tempo. Tive fé, e ainda tenho, que todas as coisas são possíveis para o Senhor, meu Deus e pai.
Também sei que ele é soberano, e que todas as coisas cooperam para o bem dos que o ama, por mais terríveis que elas possam parecer aos olhos de seres temporais como nós. Só não pensei que fosse ser assim tão repentinamente. Sem tempo para me preparar para a notícia como eu gostaria. E quem pode se preparar para o telefonema? Para a fala desajeitada? Situação ingrata? Sentimento inexistente? Nota de rodapé? Clausula não esclarecida, anexada à escritura do relicário frágil e corruptível conhecido como nosso corpo. Este mesmo templo que costumamos limpar no exterior, enquanto ninhos de barata se formam por dentro. Os ratos comem as estranhas dos desatentos. E existem também outros que chamam este veículo de “ser” e colocam mais valor nele do que deveriam. Carne carnuda carnosa e deprimente. Se torna ilusão. Como se houvesse significado em remover os significados. E como se tudo pudesse ser resumido na ausência de sentido, e eventual ausência de responsabilidade. É triste pensar dessa forma, e mais ainda tentar aceitá-la. As peças não se encaixam No meio disso tudo, também em algum momento existiu ‘eu’. E existe um ‘eu’ aqui e agora. E vai existir um ‘eu’ logo após os comerciais. O ‘eu’ do passado desprezava seu veículo, por cuidado de estar indo contra o pecado ao eliminar qualquer apreço pela matéria. Gnosticamente radical!
Foi apenas um fase—durou minha infância inteira e quase toda a minha adolescência. Depois de um tempo de leitura e estudo, descobri o valor deste corpinho que temos, por mais que nossa tendência seja de desprezá-lo, quando caímos em uma espiritualidade rasa e supersticiosa—a mesma com o qual eu fui alimentado por um bom tempo. Mas minha alma também não fica para trás. Não consegue tanta vantagem em relação ao corpo quanto pensa. Antes disso, é apenas uma parte de um todo. O corpo sem a alma é apenas um boneco. A alma sem um corpo não é completa. Somos mais do que o que se vê, e mais do que o que não se vê. O ser humano é engraçado. Nunca vi um bicho que é duas coisas ao mesmo tempo. Mas se o corpo é assim algo tão valioso e incrível, porque eu não sinto nada quando te enxergo deitado em flores, em um sereno descanso? Onde está você? Cadê a vida que vi aqui quase agora? Que de repente se tornou apenas uma sinédoque? Suportei essa situação por muito pouco. De repente, as lágrimas voltaram a correr pelo meus olhos secos, implacáveis até então. Não choro pelas minhas dores. Não choro por dores virtuais. Me sequei há alguns anos após tomar repetidas porradas da vida. Poucas situações me arrancaram as lágrimas. Desde então, esta foi a mais amarga delas. 
Mas minha tristeza não habitou solitária pelo meu coração durante os momentos do velório em que fiquei de pé no canto de fora da sala, ou quando sentava perto do meu avô, enquanto olhava meus familiares, e os seus entes queridos, sentirem a dor da perda e expressarem todo amor por você em lágrimas sinceras. Me senti feliz, apesar da ferida que havia se aberto dentro de mim. Pensei de forma racional. Senti de forma racional. Falei um frase dentro da minha mente de forma igualmente racional. Racionalmente eu segurei as lágrimas enquanto a tristeza aumentava gradualmente conforme as pessoas chegavam. Escutei o silêncio do bonito cemitério e observei seu corpo e as coroas de flores que decoravam o ambiente. Um pessoa muitíssimo querida. As flores chegavam. A visão do crucifixo dourado permeou a minha mente por um pouco de tempo. Fiquei feliz ao lembrar que você está descansando. Tive forças e me mantive de pé em cima da rocha.
Vivi o momento da forma como deveria ser vivido. Ou ao menos como eu o percebi. Me sustentei na única coisa que poderia me trazer algum conforto durante aquele momento. Não me sinto culpado de confessar que senti alegria de ver meus outros familiares durante o triste momento da despedida. De sentir o amor que todos tinham por você, e que todos tem por cada um dos que estavam alí, mesmo que apenas por aquele momento. Falo isso de forma rasa, e peço perdão. Mas eu fiquei feliz de ver todo mundo reunido, mesmo que em um momento inoportuno.
Pensei em muitas coisas enquanto estava presente naquela cena. Me senti mais disposto em apreciar a beleza que há na vida e nas coisas boas que produzimos e deixamos. Senti felicidade ao ver os meus primos, netos do meu tio. Logo quando eu cheguei ao lugar, eles estavam brincando em um balanço que havia alí no meio do terreno. Mas não pude deixar de perceber uma de minhas tias chorando pela perda. Coisa complicada que é tudo isso. Não fui trabalhar no dia do funeral. Também não é como se eu pudesse. Estava sendo a primeira vez que eu enfrentava a dor do luto diretamente. Sem fuga. Naquele presente momento eu me senti aéreo, e fico surpreso de não ter tido algum episódio de despersonalização (como eu costumeiramente tenho) durante a cerimônia. Me senti desconectado, mas não fisicamente. Apenas mentalmente. Psicologicamente em um lugar dentro do mim pensando em algumas coisas enquanto tudo acontecia ao meu redor e eu segurava as lágrimas por medo de me expor. Exposição? Em um momento apropriado? Chorar? Chorei. Não pude segurar a todo momento. Eu tive que chorar. E chorei. Me senti bem de poder.
Depois de um tempo nós voltamos para casa. Cada um tornou a fazer as atividades de sempre. As que precisavam ser feitas, e as que fazemos por hábito. Eu vivi o momento, e fui tocar a minha vida. Minha memória anda nebulosa. A única coisa que lembro é de subir para a minha casa, lavar as minhas mãos, tomar um pouco de água, e então desabar em lágrimas. 
Senti dor.
Chorei pela perda e pelo o que ela significava. Tudo o que deu errado desde então. Desde o começo de toda essa série de tropeços descuidados que conhecemos por história. E até então o pecado havia me parecido tão nojento e indigesto como pareceu naquele momento em particular, enquanto eu lavava os pratos da louça e soltava tudo o que mantenho preso por um pouco de tempo que fosse. Estava errado. Estava muito, mas muito, errado. Porque teve que ser assim? Não poderia ter sido diferente? Mas foi assim. E quem sou eu para questionar alguma coisa que seja? Apenas sendo atingido pela força da morte foi que eu pude notar a gravidade da situação. Problemática. Me afetei.
Amanhã eu faço 21 anos. Ainda me expresso de forma errônea. Escrevo coisas que dizem sobre o que eu sinto, mas pouco do que consinto. Não minto em minhas palavras, apenas em minhas frases. Digo o que passa pela minha cabeça e tento tornar as coisas um pouco mais compreensíveis e menos sufocantes quando comparadas à introspecção silenciosa. A tristeza ainda faz parte da minha rotina, e no momento não há muito o que eu possa fazer para mudar isso. Ficar quieto ajuda. É o que faço durante a maior parte do tempo. Falo o necessário. Em alguns momentos tenho liberdade de tagarelar e gastar minha voz sobre as coisas que amo e na qual eu tenho paixão. Nesses momentos eu deixo de ser quem eu realmente sou—quem eu aparento—e passo a ser quem eu gostaria que fosse em outras oportunidades. Gasto as minhas horas sentindo gratidão. Misturo ela com o fascínio. Alguns dias, ela é substituida pela melancolia. Misturo ela com o cansaço. Meu corpo reage em resignação. Hoje é um desses dias. A gratidão minguou. O aprendizado continua, a dor se alastra. Joguei a minha epifania fora, e não sinto vontade de sair de casa. Espero acordar alegre para o meu aniversário.
O dia seguinte ao velório foi o mais doloroso até agora. Achei estranho que todas as coisas pudessem me lembrar de você. Vem com um flash na cabeça. Me senti mal a cada vez que a memória das lembranças e imagem dos momentos que vivemos juntos passavam pela minha mente. Uma flechada no coração combinada com um sentimento de vazio que não se compara a nenhuma outro que penso ter experimentado em algum momento. Agora já nem me lembro mais. Está mudando e se transformando a cada dia que passa. Vou dormir e já volto.
Aqui estou eu. Agora eu tenho 21. Parabéns para mim! Colocando toda essa melancolia e frustração de lado, me sinto compelido a falar mais claramente sobre a situação. Ou pelo menos tentar. Já está perto de fazer uma semana desde que recebi a notícia. Estou um pouco mais conformado, e a dor vai deixando de paralisar tanto quanto antes. Gosto de pensar que estou lidando bem com essa situação. Estou tentando, pelo menos. Os dias deste Julho estão frios e nublados. Não eram as férias que eu gostaria de estar vivendo, mas não é como se eu tivesse controle sobre essas coisas. No momento eu continuo a estudar um pouco aqui, jogar um pouco lá, olhar para a tela de um computador, de vez em quando parar e fazer algumas flexões. Ainda estou triste. Ainda me lembro de você quando penso em qualquer outra coisa. As imagens do velório passam pela minha cabeça e pelos meus sonhos. Só menos do que anteriormente, e me sinto mais feliz de saber que você está descansando. 
Estava escutando Stevie Wonder e pensando em você. Estava conversando com meu avô e pensando em como ele poderia estar diante dessa situação. Sentei na poltrona do meu quarto, liguei o meu Xbox e comecei a jogar Spyro. Liguei para a minha mãe e avisei que não poderia visitar ela,  nessa terça que passou. Coloquei Simon e Garfunkel para tocar e me senti mais deprimido do que já estava. Entrei em uma chamada de voz com meus amigos e me diverti por um momento. Quando apertei o botão de desligar, senti o peso da realidade novamente. Qual o sentido então, de todas essas atividades? Se vamos todos morrer e repetir as mesmas coisas até o dia do fim, porque devemos continuar nessas atividades? Eu me resigno cada vez mais em deixar de me importar como eu antes me importava. Ou como me importo no presente momento, filtrando todas as coisas que poderiam me trazer algum significado—e nenhuma delas consegue bater de frente com a força do tempo e o pensamento último do fim de todas essas coisas. 
Vaidade! É tudo vaidade! É como correr contra o vento! Mas isso também não é novidade para ninguém. Talvez para quem não queira ver. A ignorância traz algum conforto que seja, mas viver no mundo da lua não pode salvar ninguém dos lobisomens—seja lá o que isso signifique. Não tem como fugir da realidade por muito tempo. Talvez em um país como o nosso seja mais fácil. Em uma época onde podemos escapar para nossas distrações com muito mais conforto e facilidade do que há algumas décadas (não precisamos ir muito longe para sermos confrontados com a dura realidade da vida). A tecnologia nos trouxe uma boa série de benefícios, e também fez o ato de dormir em campo de batalha mais simples do que nunca. Não que não fosse assim há centenas e milhares de anos. No fim das contas só mudou a roupagem. Nós ainda gostamos de fingir que está tudo certo e que conseguiremos sair dessa por nosso próprio mérito e com nossas forças—que julgamos sermos nossas, mas quem realmente escolhe quando está fraco ou forte?
Me vi abatido algumas vezes pela condição humana em que vivemos. E como em uma prova de fé, tive que me decidir de uma vez por todas no que eu deveria confiar. Quais prioridades tomar nessa minha vida, que vai passando a cada dia do calendário, que é riscado com um lápis que perde a ponta e o tamanho com cada traço de Kanji que escrevo no papel de um bloquinho de lições, e em um caderno antigo guardado em uma gaveta da minha escrivaninha? Tenho duas opções então: me drogar ou enfrentar tudo isso. Ainda não comecei a fumar cigarros e nem a encher a cara com vinho depois de voltar do serviço, então julgo estar caminhando para a segunda opção. Me apeguei mais a minha religião, nos dias que sucederam uma imensa crise existencial, quando eu olhei para o abismo, e o abismo acenou de volta com um olhar sarcástico. Foi nesse momento de angústia profunda que eu realmente entendi o que significa a esperança.
E que não é qualquer coisa que pode reverter nosso quadro terminal. Realmente entendi o significado do sacrifício de Jesus Cristo na cruz do calvário. Naquela sexta-feira angustiante com cheiro de morte por toda a terra, seguida por um sábado de silêncio mórbido. Mas o domingo logo chegou. E com a Ressureição veio não apenas uma vitória decisiva sobre a desgraça, mas uma viva esperança de retornar ao lugar de onde viemos—e do qual nós sentimos falta todos os dias de nossa vida neste mundão confuso. Acho que a minha conversão só veio de verdade depois desse período estranho. E não abracei isso tudo com uma fé cega e surda, mas tive fome e vontade de entender um pouco de fosse de quem realmente é Deus, e do que aconteceu naquele pequeno lugar no oriente médio, há um pouco menos de dois mil anos, em uma cidade que não significava muita coisa aos olhos dos Romanos, mas que foi palco do evento mais importante de toda a história. É um cenário curioso para a vinda de um “Messias”, e mais curioso ainda foi a forma como sua Salvação se manifestou.
Quem, em sã consciência, poderia cogitar que o Messias seria Deus, e que ele se tornaria plenamente humano, eu que morreria em sacrifício ao invés de trazer julgamento sobre todos aqueles que cruelmente o crucificaram como pária em uma cruz de madeira? Na verdade estas coisas já haviam sido reveladas anteriormente—O Antigo Testamento constantemente aponta para a vinda de Jesus, seu sacrifício e ressureição—mas toda a premissa não deixa de ser no mínimo surreal. Deus morreu. Deus ressuscitou. Deus sofreu e Deus sentiu dor. Aquele que nos deu tudo, e que poderia muito bem tirar, e mais do que isso—nos apagar da existência por conta dos nossos atos—decidiu então tomar parte das nossas dores e pagar o preço dos nossos erros e maldades.
Não posso descrever com clareza o que sinto ao pensar sobre essas coisas. Coloco minha confiança em Deus, e entrego minhas dores e aflições à Jesus. Faço o que posso para não tropeçar em minhas próprias pernas. E continuo a tropeçar aqui e alí. Caio de maduro por ser impulsivo. Cabeça dura e inconsequente. Tímido e reprimido. Mas que sei que Deus ainda me ama, e cuida de mim a cada dia que passa. Por mais que eu seja imperfeito e erre em coisas que não deveria—a essa altura eu já me tornei um profissional em tentar o que não consigo de jeito nenhum, por motivos que não consigo entender—ainda tenho esperança, e me arrependo pelos meus pecados. Ou ao menos tento. Alguns dias são mais cinzas do que os outros. Sinto tristeza e sinto culpa. Sinto uma multidão de coisas e negligencio minhas necessidades espirituais—pois não somos apenas carne e osso, mas sim uma espécie estranha de ser que está preso entre dois mundos completamente distintos—fico mal, e mal pra caramba. Se eu for ficar me guiando apenas pelo o que sinto, vou viver uma vida confusa e desconexa. Sei que não há nada de bom em mim. Como que algo de bom pode vir de alguém que não seja Deus? Eu sou apenas um receptáculo de tudo isso. Pela misericórdia e graça que me foram oferecidas, e que eu escolhi—não por meu querer, pois eu não posso querer nada que seja bom de verdade—abraçar. Estranho dizer dessa forma. Uma escolha feita sob um querer que não é natural de alguém. É misterioso. E eu sou um especialista em gastar minhas energias pensando em coisas que não tenho a capacidade de entender. O que posso fazer? É mais forte do que eu!
A minha própria morte não me causa medo. A morte das pessoas ao meu redor me deixa abatido. Sinto uma tristeza amarga vindo de uma insegurança sem sentido. É o meu coração melancólico pregando uma peça em mim. E o safado ama fazer isso nos momentos onde eu deveria estar mais feliz! Miserável! Que raiva que eu tenho de ser deprimido do jeito que sou. Bem… isso é mentira. Eu até que gosto disso. É o meu charme, por assim dizer. Mas isso não tá certo! Que porcaria de charme é esse em ser um pessimista sem motivos? Eu sou a última pessoa do mundo que deveria esperar o pior em qualquer momento possível. Acho que me deixei levar pelas adversidades da vida. Estou trabalhando nisso, na medida do possível. Peço a Deus em minhas orações para ter forças de seguir em frente e lidar com isso de uma forma melhor. E também para ser alegre. Que motivo eu tenho para ser tão triste? Nenhum que eu possa julgar como válido. Acho que sofrer de depressão não me ajuda muito, mas não posso tomar a doença como justificativa. Ela não me define, no fim das contas. E eu sei muito bem que ser grato pelo que tenho me traz satisfação. Quando penso em todas as coisas que Deus fez por mim, e em toda a criação que tenho o privilégio de não apenas ver, mas fazer parte, me preencho com a felicidade que preciso para tocar o dia ao invés de ficar deitado na minha cama até virar bolor. A vida é um épico. Toda a história tem suas tragédias e reviravoltas. Quando paro para pensar com calma, nossa existência é uma narrativa. Um conto que segue por seus versos e parágrafos, repletos de aprendizado, dor, amor, alegria, tristeza profunda e esperança remediadora. Dois finais nos esperam, no fim. Qual final vamos ver, afinal? Posso dizer apenas pelo meu, mas não pelo dois outros. Espero de todo o coração que os finais felizes preencham a vida das pessoas ao meu redor. Caso contrário, eu teria que chorar mais um bocado até me conformar. 
Fico feliz de poder estar passando tudo isso no conforto da minha casa, ao invés do frenesi dos trens e agitação do trabalho.
São diversos os contratempos que me impedem de agir da forma como eu gostaria. Me sinto culpado de estar desejando aquilo que as pessoas tanto evitam. Não fico assim em todos os momentos, apenas de vez em quando. A frequência diminuiu bastante de um tempo para cá, e isso me traz esperança de não cair no mesmo barranco novamente. Já não sei mais o que pensar em relação a essas coisas que aconteceram—algumas andam acontecendo, e caminham na direção de acontecerem por mais tempo. Estou cansando de muitas coisas. Outras eu ainda consigo aguentar por mais tempo. Fico cada dia mais surdo com as músicas que tanto amo e escuto. Sinto raiva e angústia quando penso nos meus instrumentos. Passo os meus dias estudando, lendo e fazendo o que posso para caminhar na direção certa. Tropeço em pedras que já pisei anteriormente. Este mês de Julho está provando ser tão árduo quando o do ano anterior. O retrasado foi um dos melhores de toda a minha vida. Acho que estou passando por uma estação diferente. Passam as horas, e passam os dias, mas nenhum segundo sequer poder voltar atrás. 
Matemática sinistrissima!
Vivenciar isso está me deixando disposto a mostrar mais afeto às pessoas que amo. Nós realmente sabemos quando será tarde demais para escutar a voz delas, ou sentir sua presença no cômodo da sala, com o intermitente clique dos ponteiros estalando dentro do bonito relógio de parede—que eu deveria comprar para o meu quarto. Minha tristeza em pensar na efemeridade dolorosa desta vida é eclipsada pela beleza que há em ser algo. Algo vivo, ainda por cima. É uma sorte grande, não acha? Poderia ser cínico em dizer que estamos aqui a toa. Isso seria mentir para mim mesmo. Mentir para Deus e mentir para todos ao meu redor. Eu não acredito nisso. É tão irracional quanto pensar que o nada pode trazer alguma coisa que seja. Acredito em coisas melhores e mais sólidas. O difícil é colocar esse assentimento intelectual e espiritual na prática. Oras! Porque as coisas tem que ser tão complicadas? Mas já joguei alguns jogos em baixa dificuldade. Não tem a mesma graça. A vida é um prato de comida gostoso, mas apimentado.
Bem apimentado.
De qualquer forma, estou alegre. E tão triste quanto. 
Qual é a desses opostos?!
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tocadovictor · 11 months
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Disco do Carneiro (Interlúdio)
Pensei em escrever alguma coisa sobre os filmes que assisti, as coisas que li e os assuntos que andei pesquisando. Tive dificuldades de encontrar o tempo para colocar essas coisas na tela e expressar um tanto do que sinto em relação a elas. Sempre passo por esse processo quando quero escrever alguma coisa. Tudo se torna pior quando essa decisão de escrever se torna em uma decisão de publicar. E a decisão de publicar só pode piorar quando é firmada e se torna algo como “eu tenho que terminar aquele esboço para então começa a editá-lo”. Quando a parte da edição chega, dura um pouco mais de algumas horas em um fim de semana, mas logo se sai voando pela janela e não volta até que o próximo projeto tenha início. Às vezes não volta para valer. Isso acontece. Bem—sim—talvez exista uma coisa ou outra que eu consiga terminar caso invista um pouco mais de atenção que o normal, mas, por via das regras, sou o tipo de pessoa que não consegue acabar aquilo que começa. Tenho uma faísca de assunto que acharia interessante de discorrer sobre, mas o fogo é de palha. E aquele montante de páginas abertas no Docs se tornam apenas mais kilobytes de arquivo morto no meu armazenamento em nuvem. Em algumas semanas eu perco a vontade que tive de colocar algo no papel de cristal. Então isso se torna apenas mais um projeto engavetado. Acredito que faça parte do processo, por isso nem me abalo muito. Muito é a palavra-chave. Ainda me abalo o suficiente. Na medida do possível faço com que isso não me afete. Mas todos nós sabemos como que uma obra incompleta se torna um fantasma. Já estou em condições de começar o meu pequeno projeto: um cemitério amador de ideais e textos que não partem para a realidade. Coloquei um álbum do Aphex Twin para ver se consigo parar um pouco e me concentrar em alguma coisa. Qualquer coisa que não seja ficar correndo de um lado para o outro dentro da minha cabeça, pensando nas coisas que eu posso fazer neste fim de semana. Ao invés de maratonar em círculos, decidi que já havia passado da hora de falar sobre alguma coisa—que é o que todas as pessoas fazem quando acham que devem investir tempo escrevendo algo. 
Não tenho nada demais para falar no momento. Se tenho, não consigo entender o quê. Talvez exista algo que valha a pena dissertar sobre, e a questão se torna apenas em revelar então o que está por de trás das cortinas do teatro. No presente momento não consigo pensar em nada, então eu apenas escolho aquilo que vai transitando nos corredores para fazer parte do script. É melhor do que ficar sem fazer coisa alguma. Não exatamente da forma que eu gostaria, mas eu uso de momentos como esse para praticar algo que não consigo dizer com certeza o que é. Qual aspecto? Não faço ideia. É um treino em narrativa? Não sei. Não se cansa de usar as mesmas técnicas em todas as coisas que produz? Nem um pouco. E vou continuar nesse vício por um pouco mais de tempo, pois é a única coisa que realmente sei fazer quando sento a minha bunda nesta cadeira e olho para a tela cegante de um computador, digitando freneticamente, enquanto meus dedos sofrem e meus ouvidos se alertam com alguma canção que estou escutando. Música ajuda a me concentrar em momentos como este. Talvez com esse estímulo eu consiga alguma coisa que faça valer o tempo investido. É mais difícil do que parece, isso eu posso te garantir. Não me importo mais com essa dificuldade, de qualquer forma. Só quando ela dá um complicadinha sinistra de vez em quando.
E como andam as coisas? Andam bem, graças a Deus. Na medida do possível elas funcionam, apesar de achar que alguns elementos se tornaram maçantes. A esse ponto. Fico apenas aqui, e penso um pouco no que anda acontecendo. Novamente eu fico aqui, e penso um pouco no que andou acontecendo. E de novo eu vou e me sento naquela poltrona ali em cima, e penso um pouco nas coisas que parecem acontecer. Fico nessas até cansar. Quando canso, vou tomar na pia da cozinha e tomo um pouco de água (filtrada, morna, em um copo de alumínio). Um copo nunca é o bastante, então encho outro até a metade. Tomo meu um copo e meio de água. Agora eu já estou pronto para fazer alguma outra coisa. E então eu vou, e faço alguma coisa. Quando termino de cogitar fazer alguma coisa, vou e faço outra completamente diferente daquilo que pensei. No fim de tudo, volto para a cadeira do meu computador e pela última vez no dia eu penso nas coisas que poderiam ter acontecido se as coisas atuais não estivessem acontecendo da forma como estão—e do jeito que estão não podem acontecer por muito tempo antes que a vespa selvagem das paliçadas venha e pouse em cima da cortina do meu quarto. Pensar cansa um pouco. Melhor ficar triste. Mas ficar triste é entediante, então é melhor ir para o centro curtir com meus amigos. Mas essa cena não aconteceu, nem vai acontecer. Eu mantenho minha amigável postura de pseudo-abstenho. Tenho meus motivos para isso—pois todos temos motivos para as atitudes que tomamos—e penso também nisso por um tempo. 
Aí eu lembro das coisas que importantes, e de repente nada do que eu pensava estar certo faz o mínimo de sentido. Bate uma vertigem sinistra e meus sentidos se desconectam da minha mente por alguns breves segundos. É como o vulto de movimento de uma foto mal tirada. Em movimento. Quando sinto estar encaixado de novo, um sentimento de alegria invade o meu coração. Digo a mim mesmo que ainda tenho muito a aprender, e me arrependo da postura do dia anterior. Mas volto a ser como era antes ao menor vislumbre de um farol azul à minha vista. Por que as coisas são assim? Sei lá! São e eu sou apenas um guaxinim latino americano que gosta muito de videogames e que está um tanto descontente com as circunstâncias dessa vida. Não reclamo. Já estive pior. Uma coisa que aprendi nesta vida é que reclamar é a pior decisão que você pode tomar em qualquer situação que estiver. Existem formas melhores de resolver um problema. E por mais que eu não saiba, é melhor ser grato por aquilo que tenho. E pelas coisas que acontecem. Senti vontade de comer alguma coisa que não sei o que é. Tipo estranho de fome.
Agora já é outro momento. Estou escutando “She’s Leaving Home” novamente. Ainda penso sobre as coisas que estava pensando anteriormente. Ainda não me senti entediado em estar triste, mas imagino que essa situação mude em alguns dias. É assim que costuma acontecer, ao menos. O vento vai e volta. Vem aqui por um momento—sinto um frio absurdo, e nem tenho uma blusa corta-vento para me proteger do vendaval—e logo vai embora da mesma forma que veio. Gosto dessa sensação um pouco mais do que deveria, e não sei dizer até que ponto estou certo. Falo como se pudesse existir razão em uma situação como essa. Isso é besteira. Uma perda de tempo pensar nessas coisas (é o que gosto de dizer para mim mesmo quando quero evitar um assunto). Vou pegar mais um pouquinho dessas horas e investir na bolsa de valores. Jogar um bingo e um jogo do bicho nos dias em que eu estiver em casa. Ler um livro aqui que tem algo muito legal a dizer sobre o assunto do momento. Continuar minhas pesquisas sobre algum modelo secreto de PSP que a Sony escondeu do público por anos. Ligar o meu PS2 e me divertir com ports mal feitos de jogos que gosto. Aprender como que se faz um coquetel molotov. Consertar uma TV de Tubo e deixar ela novinha em folha sem que isso implique em tomar um choque de mais de oito mil V (ou W?). Assistir um video ensaio de 6 horas sobre um jogo japonês que ninguém jogou além do maluco do Tim Rogers. Dentro da minha mente, fingir que nada acontece e que as coisas se resolvem naturalmente—como naquela música Ping-Pong do Stereolab.
Ok, agora eu fui insincero. Está tocando “A Day In the Life”. Chegou a minha hora de ficar todo pensativo com uma canção que já escutei dezenas de vezes desde que eu terminei o meu ensino médio e descobri que as coisas mudam muito quando você sai da escola. 
Pior que mudam.
E o que eu estava dizendo anteriormente? Ah sim, foi uma semana difícil…
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tocadovictor · 1 year
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Cons Seat Headrest
Car Seat Headrest é uma grande conspiração musical. 
Começou aproximadamente em 2010 como um projeto musical de Will Toledo. O mesmo tocava todos os instrumentos de suas canções e se encarregava da produção das mesmas. No começo suas músicas pareciam servir mais como experimentos do que canções propriamente ditas, algo que veio a mudar conforme o tempo foi passando. De acordo com Toledo, o nome do projeto foi escolhido para não remeter a nenhuma emoção em particular, assim as pessoas escutariam suas músicas sem concepções prévias de sua sonoridade. O mesmo também faz referência ao fato de que, por um bom tempo, as músicas eram gravadas dentro do carro de Will, com a cabeça do banco de passageiro servindo de capa para algumas de suas gravações—e também aparecendo no videoclipe da música “No Passion”. Parando para pensar, é realmente um nome bem único. Não é bem um nome neutro, mas também não remete a muita coisa. É o encosto para a cabeça de um banco de carro, simplesmente. Talvez não seja um nome tão brilhante, mas acaba por se tornar especial—principalmente após conhecer o background da banda. Suas músicas eram publicadas no site Bandcamp, assim como em outras plataformas como Soundcloud e o site Furaffinity, destinado à sub-cultura furry, composta por fãs de animais antropomórficos. Também foi através desse jeito que o famoso relacionamento do álbum “Twin Fantasy” teve seu início. Ainda é possível acessar o perfil de Will no Furaffinity, apesar de estar restrito apenas para membros registrados no site, e boa parte do seu conteúdo original ter sido privado ou removido pelo menos. Postagens contendo suas canções e algumas breves descrições sobre as mesmas compunham boa parte do perfil. Também haviam alguns desenhos e esboços desenhados por Will.
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Sim, essa foto é meio estranha.
Quando paro para pensar sobre o projeto, percebo que é um bom exemplo de fenômeno da Internet. Uma amostra do poder e liberdade que o acesso aos computadores—e hoje em dia celulares—deram aos usuários para expressarem, exporem e explorarem o que quer que seja, e o que poderiam produzir.Também é o reflexo de duas gerações, em paralelo, que foram criadas com uma exposição constante e não supervisionada da mesma. Will Toledo nunca teria alcançado o patamar em que está sem o auxílio dela, e Car Seat Headrest seria apenas mais um projeto incubado que poderia vir a se tornar um assunto curioso em uma conversa de amigos, ou algo descoberto anos no futuro, como o caso da banda Panchiko. Boa parte  das coisas que saem desse projeto cheiram à internet, e isso é um pouco surreal para mim. Suas letras tem o cheiro dos monitores de tubo brancos e a aura do Windows XP. Todas as vezes que eu escuto o álbum My Back is Killing Me Baby, lembro dos dias inteirinhos que perdia procurando novos jogos em Flash para me divertir. Das animações do Newgrounds e vídeos de humor do Youtube pré-histórico—na época em que os canais podiam colocar wallpapers personalizados em suas páginas iniciais. Muitos vídeos sobre Club Penguin e Pokemon Ruby foram assistidos durante esse período. Pois é. Newgrounds é a associação que fixou na minha mente ao escutar esse álbum. Assim também como os demais álbuns dessa fase inicial da banda me trazem as mais diversas expressões de nostalgia, por mais que tenha conhecido suas músicas há pouco mais de um ano. A estética ainda está lá, intacta. É surreal poder experienciar um pouco todos esses momentos novamente, apenas escutando uma música como “Happy News for Sadness”, que captura perfeitamente, para mim, tudo o que significa esse período. São músicas que soam como a internet. Fluem dela. Carregam seus sentimentos e peculiaridades como em uma cápsula do tempo. É notável também dizer que o projeto passou a ganhar uma atenção após se tornar objeto de “fascínio” pela sessão /mu/ do imageboard 4chan. Car Seat Headrest é um fruto da internet. 
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Eu não consigo descrever o que sinto toda vez que vejo essa capa.
E o que tem de tão interessante nessa banda que fazem os jovens, particularmente aqueles que fazem parte das comunidades Queer e Neuro Divergente obcecados em suas músicas? Ao ponto de seus fãs irem atrás de qualquer vestígio de lost media que possa ser encontrado  em algum snapshot do Wayback Machine?
Diria que todo esse furor vem dos sentimentos que uma mistura de melodias marcantes produzidas em baixa qualidade junto de letras de teor introspectivo, íntimo e embaraçoso—mas legítimos—causam nas pessoas. Ainda mais quando ocorre uma identificação com as situações que estão sendo expressadas nas canções. Não é de se surpreender que a maior parte público do Car Seat Headset consista de pessoas de background parecido com Will.
As letras do projeto são bem escritas. Algumas se saem melhor do que as outras em produzir um efeito de prosa dentro da música. Outras acabam por decepcionar. Boa parte delas possuem sacadas bem pensadas e momentos de destaque que fazem você pensar nelas por um bom tempo após o reprodutor terminar de tocar o álbum. Apesar disso, essas qualidades acabam por se tornarem coadjuvantes para a grande sinceridade que está contida nos relatos e idéias cantados por Will. Seus discos vão expondo a narrativa de sua vida, passando por diversos momentos e situações que entram e saem das ficção. É a interpretação de um universitário cronicamente tímido e com uma notável tendência a ter episódios depressivos—ou ao menos um temperamento melancólico—sobre os eventos que o moldaram ao longo dos anos. Tudo isso é feito como um grande mosaico de histórias e melodias que vão de encontro umas com as outras, produzindo um quadro maior do que realmente é Car Seat Headrest—a arte como fuga. As canções de Will tratam de temas banais e inseguranças típicas de pessoas que viveram essa geração exposta à internet de maneira excessiva, e esse é um dos fatores que mantém tanto a atenção das pessoas ao consumirem sua arte, mas isso é apenas metade do que torna o projeto algo tão marcante. A forma como Will consegue ser sincero sem abandonar suas qualidades artísticas acaba sendo o fator principal. Afinal, suas músicas não são apenas sinceras. Elas são boas. E suas letras também. Algumas são sarcásticas e soam como paródias, como “p.o.w” de “My Back is Killing me Baby”. Uma notória influência de bandas como They Might Be Giants, que serviram de grande inspiração para os discos de Will. Outras são crípticas e criativas, como “Broken Birds (Rest in Pieces)” que constrói diversas imagens em torno do tema de destruição e ruína ao longo de versos desconexos e de natureza ambígua. No meio disso tudo nós temos canções de caráter expositivo como “Nervous Young Inhumans”, com seu famoso monólogo de dois minutos explicando todo o significado da temática do álbum “Twin Fantasy” em um gesto de vulnerabilidade em relação aos ouvintes, e também a pessoa ao qual o álbum foi dedicado. É uma diversidade muito bem vinda. 
São essas as qualidades líricas que tornam Car Seat Headrest um projeto musical tão viciante de se escutar e explorar. Se identificar com algumas de suas situações—um tanto cômicas, um tanto sofríveis—faz parte da brincadeira. Tomar parte de suas tristezas também, de certa forma. 
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Esse cara me lembra alguém...
Ah! Eu também não posso me esquecer do fato de que boa parte dos álbuns foram gravados em baixa fidelidade, o que significa que a produção é um tanto quanto caseira. Isso pode ser um defeito para algumas pessoas, e nesse caso elas podem ignorar toda a discografia que vem antes de “Teens of Denial”, o que é algo ligeiramente comum entre as pessoas que escutam a banda. Para mim, esse fato torna as coisas ainda melhores. Eu gosto de como o improviso dentro da produção musical acaba por ser um charme. Maud Gone, por exemplo, possui um sintetizador sofrível, com um áudio estourado e solo de saxofone quase tão barulhento quanto, e que nitidamente foi gravado com um outro microfone e em outro ambiente. Não preciso nem dizer que essa é uma das minhas músicas favoritas, né? É incrível!
Nunca foi a intenção final de Will que suas músicas fossem gravadas com recursos tão limitados. Tampouco que a qualidade sonora acabasse por ser tão baixa em fidelidade. Mas isso  é o que ele tinha no momento. Algumas de suas músicas acabaram por servir de esboços para ideias futuras que pudessem ser melhor aproveitadas, principalmente se tratando de seus quatro primeiros álbuns, todos numerados de 1 a 4—como uma espécie de teste, ou preguiça em pensar em um nome—com suas músicas sem sentido e melodias bizarras com pedacinhos de ideias aqui e alí. Seu disco mais famoso, Twin Fantasy foi regravado em 2018, sete anos após seu lançamento original no Bandcamp. Sua escrita foi polida e sua sonoridade retrabalhada—agora em estúdio. O álbum anterior a este, Teens of Denial, também foi produzido de maneira profissional, algo que é fruto do contrato de Will com a gravadora Matador Records em 2015. O disco foi lançado em 2016, mas suas músicas datam até 2014, ano do EP “How to Leave Town”, que contém algumas canções 'descartadas' de Teens of Denial. Esta nova fase da banda foi recebida com grande aceitação por partes do fãs antigos, e também acarretou em uma popularidade inédita ao projeto. Observar essa evolução é incrível. Um exemplo de um sonho que foi alcançado após anos de dedicação e esforço. 
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Um longo caminho até aqui.
A combinação desses fatores é o que torna Car Seat Headrest tão marcante, e também são eles que fazem com que pessoas como eu fiquem tão “viciadas” em explorar o que suas músicas têm a oferecer. Você vai encaixando as peças do quebra-cabeça e descobrindo mais detalhes que compõem toda essa experiência. 
Eu gosto da banda por conta disso, mas mais do que isso. O meu caso tem muito mais a ver com catarse. Sim. Catarse é a palavra certa para descrever a minha relação com esse projeto. 
Não é de se estranhar que eu me conectasse tanto com as músicas desse projeto. Olhando agora de um ponto de vista posterior a todas as emoções que foram canalizadas em cima de suas canções, posso perceber que foi um estágio esperado. Quando escutava as músicas do projeto, sentia que estava sendo ouvido. Muitas de suas situações eram familiares, especialmente se tratando dos sentimentos descritos. Eu também sou tímido, e um pouco ansioso socialmente. Também faço parte da subcultura furry, e tive momentos baixos em minha vida. De natureza depressiva, se assim eu posso chamar. É uma sensação ótima, se sentir conectado com um artista de tal forma. Você acaba se projetando em cima de suas situações, e vai criando elos entre o que pertence a você e o que é apenas uma música. Sempre foram apenas algumas músicas. Boas músicas que fizeram com que eu pudesse vomitar todas as amarguras que eu vinha sentindo durante todos esses anos após o meu término de ensino médio. E sempre foi muito bom, essa sensação viciante, destrutiva. Esse fogo que acende e queima. Vai queimando e fazendo você se sentir mais vivo do que nunca. Um pouco mais surdo por consequência de suas inconsequências, e cada vez mais focado naquilo que te abala. Você escuta, escuta e sente intensamente. Isso é tudo ainda pior quando se está no fundo do poço, e não posso dizer que me lembro com exatidão como foi sentir tudo isso. Já parece um pouco distante, o que é engraçado. 
Essa catarse, essa explosão. Todo esse campo de centeio e trigo é molhado pela chuva forte e acompanhado da grande orquestras de trovões que vão passeando pela atmosfera. Você toma essa chuva de bom grado e se sente feliz por estar vivo. Uma felicidade falsa, fingida. No fundo o que há é indignação. Raiva por tudo o que aconteceu e vai acontecendo. E você quer dançar e pular, mas não pode. Tudo o que você pode fazer é continuar a escutar essa música, e usar toda a sua imaginação para projetar sua pessoa e sentimentos em cima de 8 minutos de melodia. Seu corpo permanece onde está. Andando na rua ou deitado em um quarto escuro. Um colchão como em todos os outros dias, e uma troca de situações.
Esse vício em estar no centro dos meus sentimentos foi o que me fez ficar tão vidrado em Car Seat Headrest. Admito que não foi algo inteligente da minha parte, e eventualmente aprendi a me desconectar dessa ruminação. Posso aproveitar a sensação boa de estar conectado com uma música sem que isso intensifique os meus problemas. Acho que essa é a meta ideal que procuro manter firme na minha consciência quando escuto as músicas que eu amo—aquelas que fazem eu não apenas queimar por dentro, mas brilhar e ferver. Explodir em sentimentos sem deixar eles me devorarem. Não é a coisa mais fácil do mundo de sustentar, mas eu tento fazer o que eu posso, e isso já me deixa um pouco mais feliz.
No momento não estou me sentindo mais tão atraído pelas canções dessa banda como já estive há alguns meses. Gosto delas da mesma forma como antes. Ainda acho elas excelentes, e me vejo impressionado escutando os versos de novo e de novo. Difícil de enjoar, vou te falar, viu!.
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Pássaros quebrados, e acentos ignorados.
Car Seat Headrest foi importante para mim, e me sinto alegre de ter descoberto um projeto musical tão legal e interessante como este. Passei um bom tempo enchendo a paciência dos meus amigos sobre ele, e quase sempre vem uma sensação boa e engraçada quando eu visto a camiseta da banda para sair de casa. O quão surreal é saber que um dos seus artistas favoritos também é furry? Bastante. Ainda mais um tão popular! Acabei me tornando o público alvo de algo por motivos um pouco incomuns. Meio cômico. Muito legal, também.
Minha conclusão? Música é uma arte incrível. Ela tem o potencial de remover nossas máscaras mais profundas e derramar um rio em cima do nosso coração quebrado. É uma espécie de combustível superficial para coisas um pouco mais espirituais. Sempre que escuto ela, acabo me sentindo grato a Deus de poder estar vivo. É muito bom estar vivo. Principalmente agora, e principalmente depois de tudo o que aconteceu.
Mas é apenas música, oras!
Agradeço a todos que dispuseram de tempo para ler este texto até o final. Que Deus abençoe a cada um.
Até mais.
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tocadovictor · 1 year
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Resenha de Tugboat do Galaxie 500
Uma pequena review que escrevi para um amigo em uma noite qualquer, e que achei que ficou legal o suficiente para postar aqui. Também serve de pretexto para eu remover a poeira do blog e me sentir menos culpado em deixar aqui abandonado às traças.
Galaxie 500 é uma banda fascinante. Realmente não sei como que um som que soa tão... amador consegue fazer o que faz e deixar um marco tão significativo no gênero de Slowcore. Quanto mais eu escuto as músicas deles, mais eu me surpreendo. As guitarras são a parte que mais se destaca, ao menos das coisas indiscutivelmente positivas dentro das canções. Dave Wareham é um ótimo guitarrista. Também é um vocalista peculiar, para não que dizer que ruim. Os vocais fazem o seu trabalho, e acho que isso que é importante no final do dia. Você pode ter a voz da Adele e cantar com a melhor técnica do mundo, mas se não tem conexão com as letras e melodias que se canta, vira apenas mais um no meio de milhares. Música não é sobre técnica, apesar da mesma ser importante e uma excelente ferramenta para se alcançar resultados grandes. Existe um certo charme em vocais não-ortodoxos como o desta banda. Também acabamos criando um certo carinho em cima da pessoa que canta as músicas que tanto amamos de nossas bandas favoritas. Muitas pessoas não consideram a voz do Jeff Mangum agradável, mas quem seria louco de colocar outra pessoa para cantar In The Aeroplane Over the Sea? Eu não, pelo menos.
Ando escutando Tugboat como se não houvesse amanhã. Alguma coisa nessa música ressoou comigo para valer.
Música é algo extraodinário.
Sem mais delongas, a resenha em si:
"Vou acabar com meus dedos. Sabe porque eu gosto tanto dessa música? Na verdade, nem eu sabia disso. É uma faixa que passei a escutar bastante nas últimas semanas, e que para mim não passava de uma música legal e estranha. Só que os dias foram passando e alguma coisa nela clicou em mim, assim como muitas outras canções que se tornaram minhas favoritas. Esse é o tipo de música que eu mais gosto. Existe um mistério nesse tipo de obsessão. Diferente de canções mais evidentes como Alison do Slowdive e When You Sleep do My Bloddy Valentine, Tugboat é uma faixa que não se importa. Tem tudo para dar errado, para ser só mais uma tentativa no meio de tantas outras tentativas que já ocorreram nessa cena de shoegaze e slowcore. É um vocal estranho e amador que causa estranheza. Um monte de efeitos de guitarra que começam a se enrolar uns nos outros como bêbados dançando em uma noite de sexta-feira—sem contar nesse timbre que mais me dá azia e vertigem do que qualquer outra coisa. A letra é simplória. Simplória, não fala nada demais e soa como uma idiotice. Mas isso não importa. Tugboat é uma canção que te compra pela genuinidade. Fala tudo em poucas palavras e possui um instrumental que transmite a catarse de uma forma introvertida. Não é algo como Little Fury Things do Dinosaur Jr. que já te escraviza logo no primeiro riff. Tugboat vai te seduzindo pela curiosidade e te tranca em um tufão de sentimentos paralelos sobre o que quer que esteja na sua vida naqueles poucos minutos de música. É sobre a resignação de todas as futilidades que distraem a sua mente do que o seu coração grita todos os dias até ficar rouco e desidratado. São coisas que estão lá e vão ficando ali, até que chegam aqui, e vão ficando aqui e aqui, de forma desconfortável. Até que em um certo momento a maquiagem se desbota, e em uma breve lucidez você toma uma escolha. "Eu não quero ficar na sua festa. Eu não quero falar com seus amigos. Eu não quero votar no seu presidente. Eu só quero ser o capitão do seu bote." É apenas um verso, e nada mais. Não precisa de mais nada além disso. Assim como a melodia não precisa de mais nada além de dois ou três acordes, e a bateria não precisa fazer nada fora do comum. É a fusão dessas banalidades em um só momento de claridade que faz com que essa canção se torne algo tão especial e único no meio de centenas de bandas que estão fazendo a mesma coisa nessa festa de ser diferente. O charme do Galaxie 500 é esse. E Tugboat é a música que selou essa essência em um disco de vinil com maestria pura. É a canção que define o grupo. Eu gosto dela."
Originalmente enviada para o meu amigo Sulky, e também publicada em: https://rateyourmusic.com/music-review/ConsultorIvone/galaxie-500/tugboat-king-of-spain-2/182683272
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tocadovictor · 2 years
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Antropomorfismo e minha experiência como furry
Este é um texto que eu venho querendo escrever há um tempo. Por conta de uma série de problemas pessoais, não pude me concentrar em produzi-lo—ou pelo menos as ideias não pareciam fazer sentido quando postas sobre a tela do computador—aproveitei um pouco de tempo que eu tive durante um feriado prolongado para fazer a primeira parte dele. A segunda parte foi produzida durante o curso de alguns fins de semanas. Irei falar um pouco sobre antropomorfismo e a minha experiência pessoal com esse conceito. Desde o significado até como eu descobri a furry fandom e me tornei parte dela. Sem mais delongas, vamos lá.
Antropomorfismo é uma forma de expressão que atribui características humanas a objetos ou seres diversos. Geralmente é observado na arte através de animais que falam, possuem corpos humanoides, andam de forma bípede e interagem entre si como pessoas. O antropomorfismo pode ser datado desde o início da humanidade, com um dos maiores exemplos na antiguidade sendo as fábulas de Esopo, que utilizava os animais para ilustrar suas histórias. “A Cigarra e a Formiga” e “A Lebre e a Tartaruga” são duas de suas maiores obras, e permanecem sendo contadas até os dias de hoje. Um expoente popular do antropomorfismo na cultura popular se dá também pelos desenhos animados, através de filmes como “Zootopia”, “Robin Hood” , “Os Sem Florestas” e diversas outras obras que carregam a semelhança de possuir animais antropomórficos. Em suma, o antropomorfismo é uma forma que as pessoas encontram para ilustrar seus pensamentos e sentimentos em objetos inumanos, e parece ser uma característica inata de nossas culturas—considerando sua presença quase universal ao redor do mundo. No fim das contas tudo pode ser antropomorfizado, mas o foco do texto é a antropomorfização de animais, mais especificamente sua expressão através da comunidade “Furry”.
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Animais que agem que nem pessoas—como pode isso ser algo tão legal?
Agora vem a parte do texto onde eu tenho que decidir sobre o que falar primeiro: minha experiência pessoal com a comunidade furry, ou o que é furry em si. Por desencargo de consciência, vou escolher a segunda opção.
Furry é um termo em inglês que pode ser basicamente traduzido como “peludo”. Dentro do contexto da cultura popular e da internet, é usado para descrever não apenas a comunidade de fãs de antropomorfismo, surgida nos Estados Unidos no início da década de 80, mas também a estética antropomórfica de animais em si. Derivada de convenções de ficção científica que ocorriam na época, a Furry Fandom começou como um encontro pequeno de fãs de obras que continham animais antropomórficos, e foi rapidamente se expandindo ao ponto de ser tornar parte da cultura estadunidense e principalmente da cultura da internet global. Os furries expressam esse interesse de diversas formas, com a mais notável delas sendo o uso de fantasias de “mascotes”, semelhante às de times de futebol. Fora isso a fandom também possui um grande expoente artístico, principalmente se tratando de artes visuais. A comunidade vem crescendo de maneira gradual em vários lugares do mundo, incluindo o Brasil. Essencialmente é isso o que significa furry: gostar dessa estética e ser “fã” dela.
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Furros e suas fantasias engraçadas.
Toda que penso em como percebi que era furry me perco nos meus pensamentos. Algumas dúvidas que vêm na minha cabeça são “quando que esse interesse começou?” ou “porque isso é tão pertinente na forma como me expresso na internet?”. São duas dúvidas que fazem parte dos meus momentos de introspecção. Já houveram ocasiões em que eu procurei explicar isso de maneira clara. Em uma delas eu fiz um texto grandinho contando um pouco a minha trajetória dentro desse hobby. Acho que ficou razoável. Bem, pelo menos eu sinto que pude fazer jus aos meus sentimentos. De qualquer forma, história segue mais ou menos assim:
Eu não sei dizer se sempre tive interesse em antropomorfismo. Não lembro disso ser algo muito marcante na minha infância. Lógico que, como qualquer outra criança, eu gostava de desenhos envolvendo animais que falavam e andavam como gente. Irmão Urso, Os Sem Floresta, O Bicho Vai Pegar, entre outros filmes, fizeram parte da minha infância, mas não lembro de nenhum deles ter me marcado mais do que Os Incríveis e Monstros S.A. por exemplo. Talvez isso tenha começado um pouco mais tarde, já na pré adolescência (ou mais pra frente). Ao menos nessa época eu ainda não tinha muito interesse pela estética em si, como tenho hoje. Para mim era só uma artifício artístico como qualquer outro. Sei que teve um ponto na minha vida em que eu comecei a me interessar mais por personagens um pouco “fora da curva” quando se trata de aparência. Algo como sempre dar preferência a personagens que fossem furries ou outras criaturas como robôs, por exemplo. O que eu lembro é que por volta de 2015 eu havia conhecido a fandom e o termo. Se eu não me engano nessa época eu já havia começado a usar a raposa da Fox Hound como uma espécie de “identidade universal” dentro da internet—junto de algumas outras fotos de perfil de jogos que eu estava obcecado na época, como Mother 3.
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Esse foi meu gravatar por muito tempo...
A partir de 2018 é onde posso dizer que comecei a flertar de vez com o fato de ser furry. Já nessa época pensava em como seria minha fursona e coisas do tipo. Lembro que na minha cabeça o meu personagem seria gato. Um gato cinza ou algo do tipo; talvez uma hiena. Só que mesmo naqueles anos eu ainda não via ser furry como parte da forma que eu me expresso. Para mim isso era só algo que os caras estranhos gostavam, e eu com certeza não era furry—Por mais que fosse main Pip no Paladins, jogasse de Kled no LOL e ainda usasse a foto da raposa do Metal Gear como minha marca registrada. Talvez eu tivesse um pouco de vergonha em ser visto dessa forma, ou talvez pensasse que isso era incompatível comigo, e só um aspecto desconexo de mim. Lembro que em 2019 disse para um amigo que “não entrava na fandom e me identificava como furry por conta de não valer a pena fazer da comunidade”. E realmente, eu não estava muito afim de ser misturado junto da esfera que o termo furry engloba—o incluía pessoas um pouco “bizarras” e outras pouco suportáveis. É um pensamento bem idiota, quando se para pra pensar, mas eu não era lá uma pessoa muito confiante sobre a minha personalidade, ou sobre como as pessoas me viam. Para falar a verdade, eu era um pouco babaca. Acontece. De qualquer forma, ser furry nessa época era apenas algo que eu deveria reprimir, afinal, eu não gostava o suficiente daquela estética para abraçar ela de uma vez, certo?
Negativo.
Hoje em dia enxergo essa atitude como uma resposta contrário ao sentimento de culpa que eu tinha por ser diferente, e também por outras coisas que aconteciam durante essa época. Digo isso um pouco “da boca pra fora”, mas realmente sinto que não fazia sentido eu agir daquela forma, por mais que tivesse um pouco de razão. A fandom pode ser um lugar repleto de pessoas estranhas e tóxicas, só que por acaso eu preciso deixar de gostar das coisas por conta dos outros? Me reprimir porque a comunidade que eu faço parte é demonizada?  Certamente que não. E a história foi seguindo.
O que mudou minha percepção sobre esse assunto e me fez aceitar de vez que eu era furry—assim como sou fã de música e de videogames, por exemplo—foram alguns acontecimentos no meio do ano de 2021. O primeiro deles foi uma série de mini conversas com meus amigos, em especial o Japa, sobre o tópico, onde eles ficavam zuando comigo de forma inocente sobre o fato de eu ser furry. Eu ficava entrando na pilha de forma que não confirmasse nada, mas também não desmentisse. Bem o tipo de coisa de alguém que não quer mandar logo a real, então fica desviando do assunto de forma engraçadinha. Eu ainda faço isso de vez em quando. O outro evento foi eu ter jogado o game Night in the Woods. Esse jogo foi um gatilho extremamente importante para eu começar a pensar em quem eu sou como pessoa. O mês de Julho de 2021 foi o melhor de toda a minha vida. Jogar esse jogo fez parte desse momento. Também foi o mês em que eu decidi apenas abraçar a estética e a fandom.
Nessa época eu estava desempregado; há um ano e meio sem fazer nada depois de ter terminado a escola. Depressivo, com uma baixa auto estima crônica e pouquíssimas esperanças de conseguir um emprego ou algo na vida que pudesse me trazer o mínimo de felicidade. Lutava, usando o pouco de otimismo que eu tinha, para tentar cumprir os meus objetivos de longo prazo. Estudava japonês de forma esporádica, com dias onde eu estava disposto a ficar fluente, correndo atrás de conteúdo e buscando me esforçar para poder aprender, e outros onde tinha certeza de que nunca iria conseguir realizar nenhum dos meus sonhos. De vez em quando também me exercitava para ter um corpo definido, mas isso acabou não acontecendo por falta de disciplina. Night in the Woods não chamou minha atenção por nenhum motivo em particular. Era apenas um jogo que meus amigos tinham jogado e gostado—e também que tinha uma média alta no Backloggd, um site de jogos que eu uso. Normalmente eu deixaria o jogo na minha wishlist e jogaria ele algum dia, mas como ele estava na Gamepass e baixado no meu Xbox, decidi dar uma chance para ele, bem assim do nada. Lembro que não conseguia estender os meus bíceps por conta de uns exercícios que tinha feito no começo daquele mês em um parque aqui perto de casa. Doía bastante quando eu fazia—ou tentava fazer—alguns movimentos, mas era uma dor “prazerosa”, daquelas que você fica feliz por ter, pois sabe que músculos novos e mais resistentes vão crescer no lugar daqueles que você destruiu desnecessariamente por ser um idiota que exagera na hora de malhar. De qualquer forma, em uma noite dessas na pandemia eu fui e joguei o jogo. Depois disso muita coisa mudou.
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Essa gata lazarenta alugou minha mente por meses...
Era como se eu tivesse vendo a minha vida sendo encenada por animais falantes que moravam em uma cidade do centro-oeste dos Estados Unidos. Amei basicamente tudo do jogo (com algumas exceções), desde a gameplay gostosa de jogar que me lembrou um pouco Smash Bros Melee, até à história sensível que abordando importantes relevantes à nossa atualidade, de uma forma orgânica que faz com que você se sinta não apenas lendo diálogos em um jogo, mas fazendo parte das situações ilustradas. Foi uma experiência revigorante e de certa forma espiritual. Algo na vibe relaxante do jogo me cativou de uma forma que eu me senti “despido” diante da tela da televisão. Um jogo não devia ter o direito de me dar “call out” da forma como esse fez, mas aqui estamos—expostos e perplexos. A trilha sonora também contribuiu (e muito) em transformar minha experiência com Night in the Woods em algo extremamente pessoal. Gosto de pensar que foi uma forma que Deus usou para falar comigo. Digo isso porque foi importante para mim ter jogado esse jogo naquele momento, e a forma como esse jogo me afetou é fora do normal. Acho que nunca tinha me sentido tão ''íntimo" em relação a uma mídia como com Night in the Woods. Talvez com Tudo Sobre Lily Chou-Chou e Mother 3. Ainda assim, teve algo nesse jogo que apertou meus botões de forma cirúrgica. Como que pode um jogo ter tantos aspectos que eu amo em videogames juntos em um só pacote? Não faço ideia, mas isso é incrível. Os personagens e suas situações também me cativaram muito. Me identifico demais com a Mae. De certa forma é que nem eu: uma pessoa extrovertida, com uma bagagem de traumas e problemas pessoais mal resolvidos que se sabota por não saber expressar a frustração de forma saudável. Não apenas isso, mas ela também sofre com sintomas que eu também sofro, como dissociação e problemas de raiva. É uma personagem inteligente, sensível, com inúmeras qualidades e defeitos que flutuam de um lado para o outro conforme a situação. Em uma visão um pouco mais superficial—ela é uma pessoa irritante e mimada, mas existem muitos mais aspectos escondidos por trás da máscara que nos é mostrada durante o jogo. De certa forma ela me lembra bastante Holden Caulfield, protagonista do livro O Apanhador no Campo de Centeio, que é um livro que compartilha muitos aspectos e temas com o jogo. Holden age que nem Mae, e também que nem eu—tentando preencher o vazio que tem dentro de si com atitudes impulsivas que talvez tragam algum prazer. No fim das contas não trás, e quem disse que isso nos impede de voltar a repetir os mesmo erros? Os demais personagens também são excelentes, alguns deles tão bons quanto a própria Mae. Bea, Gregg, Angus, Selma, são todos muito bem escritos e elucidados. Cada um deles com suas respectivas facetas e peculiaridades. O fato do jogo ser dividido em duas rotas, cada uma delas composta de “rolês” que você tem com dois personagens do jogo, Gregg e Bea, ajuda e muito pintar esse universo cativante de jovens animais lidando com as dificuldades de uma sociedade opressiva e capitalista até os ossos. O fato dos personagens serem antropomórficos traz um ar um pouco mais “lúdico” para o jogo. Foi muito por causa disso que minha experiência com o jogo foi tão incrível. A antropomorfização de Night in the Woods permite que tópicos sensíveis possam ser abordados sem deixar o clima do jogo pesado. É como se o jogo remetesse à infância do jogador com seu estilo de arte simplificado e personagens fantasiosos. Isso cria um contraste incrível e curioso onde você vê um raposo conversando com uma gata sobre seus traumas de infância sem que as coisas se tornem pesarosas. A antropomorfização serve um propósito—que nesse caso é cumprido com maestria. 
 Toda essa experiência foi fantástica, e depois de ter terminado o jogo duas vezes em menos de 4 dias, parei um pouco para pensar na minha vida. Pensei em como mesmo durante os momentos mais tristes existe esperança, e que o sofrimento não é eterno, por pior que pareça. Aquilo me confortou muito. Também pensei no meu estado naquele momento—em como eu estava mergulhado no meu desespero. Pensei na vida, nas pessoas, na existência, no mundo, nas plantas e tudo o que nos cerca nessa vida. Por um momento eu pude apreciar a beleza de toda a criação, e aquela foi uma oportunidade que eu não esquecerei na minha vida. Enxerguei uma esperança depois de muito tempo afundado na miséria. Não durou muito tempo, mas foi o suficiente para que eu pudesse me fortalecer um pouco e continuar seguindo em frente apesar de tudo. Chega a ser engraçado como Night in the Woods, um jogo que critica religião inúmeras vezes durante o seu curto, foi um combustível para minha fé. Mais ou menos uma semana e meia depois eu tive uma experiência que eu acredito ter sido com o Espírito Santo, e foi simplesmente o melhor momento da minha vida. Isso foi no meu aniversário de 19 anos, no dia 12 de julho. Nesse dia eu senti uma felicidade que nunca havia sentido antes, e que até agora nunca voltei a sentir. Foi como se nada pudesse me parar; a vida fazia sentido, e as coisas iriam dar certo. Nada seria capaz de me desmoralizar. Eu estava vivendo o “agora” em sua melhor forma, e com a consciência de que aquilo ia passar. Mesmo assim eu continuava alegre. Por um período de dois ou três meses eu fui alegre, por mais que o vazio ainda me atacasse de vez em quando. Nessa época eu estava lendo bastante a Bíblia, buscando entender um pouco melhor o universo em que vivo, e também procurando resposta para os meus problemas. Depois de ter tido essa experiência eu passei a enxergar as coisas por outros olhos. Meu relacionamento com Deus mudou. Bem, pelo menos a minha percepção do nosso relacionamento mudou. Eu sei que ele me ama profundamente, mas precisei do privilégio de sentir um pouco desse amor para que pudesse internalizar isso. Os dias que ando vivendo vêm sendo difíceis. Quando estou bem tento pensar nesse momento e no quanto Deus me ama. Sei que por mais que eu me abandone, ele não irá me abandonar. Isso me conforta.
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Vai ficar tudo bem.
De qualquer forma, a partir desse ponto eu já me considerava um “furry”, e havia abraçado o hobby assim como abracei a música, por exemplo. Lembro de ficar tão interessado e curioso em relação ao assunto que ia atrás de informação a respeito sem parar. Qual o demográfico dos membros da fandom, como ela surgiu, qual a opinião das pessoas em relação a ela, e etc. Lembro também de ficar intrigado em como isso afetava a minha fé, e acabei encontrando uma comunidade de pessoas que também faziam do contexto em que eu estava. Ser furry é um hobby, e não foge disso. Não há nada de errado em gostar dessa estética, e isso não deve afetar suas crenças e personalidade. Demorei um bom tempo para entender isso, e quando entendi pude aproveitar o que o hobby tem a oferecer par mim. Quem sabe o que tenha chamado tanto a minha atenção na comunidade furry seja o fato dela ser um interesse tão “incomum”. Afinal de contas, existe um outro grupo de fãs que se reúne para falar sobre um conceito? Pelo menos eu não vejo esse tipo de coisa em nenhum outro lugar. Quem sabe os fãs de anime, que gostam de um tipo específico de desenho animado. Ainda assim acho isso menos abstrato e curioso do que os fãs de antropomorfismo.
Gosto de manter a tese de que o antropomorfismo é uma forma de expressão artística que não é apenas incrível, mas uma ferramenta pertinente ao se abordar determinados tópicos. A empatia que temos pelos animais é diferente da que temos pelas pessoas, e é possível utilizar disso para elucidar conceitos e ideias de uma forma bem mais sensível do que com seres humanos. Pode ser através de metáforas, analogia, ou pela quebra de expectativa em ver animais agindo como pessoas. Quando bem utilizado, o antropomorfismo é capaz de colorir obras com cores vivas e cativantes.  Night in the Woods foi o que me fez perceber o quão legal é você utilizar animais para contar histórias, e diversos outros exemplos também podem ser citados. Um deles é Beastars —mangá que estou lendo atualmente— onde o fato dos personagens serem animais é um fator essencial para o desenvolvimento da trama e exploração de tópicos existencialistas como classe social, hierarquia, miscigenação e etc. Tenho certeza que sua história e personagens não seriam tão marcantes e icônicos se não fosse pelo fato deles serem furries. Uma outra forma de expressão interessante em relação ao antropomorfismo é a criação de personagens que representam seus criadores, as chamadas Fursonas.
Fursona é o termo utilizado pela comunidade furry para os personagens criados pelos membros. Normalmente a fursona é uma representação antropomórfica de seu criador, mas esse nem sempre é o caso. Ela pode ser tanto um personagem separado dele, quanto um avatar feito para ser parecido em aparência física e personalidade. A minha fursona é o personagem “Victor”. Eu criei ele baseado em quem eu sou como pessoa, com um físico que se assemelha ao meu e modo de se vestir parecido. Decidi que ele fosse um guaxinim após uma conversa que tive com um amigo. Achei que seria o animal ideal para me representar dentro da comunidade—me identifico muito com a natureza deles, além de terem uma estética bonita, com suas máscaras faciais e rabos listrados. Gosto de utilizar o Victor como uma projeção de quem eu sou como pessoa, incluindo todos os meus problemas e dúvidas. É um meio que encontro para expressar o que sinto, além de ser uma forma para me expressar artisticamente dentro da internet. Bem, ao menos é isso que penso em relação a esse meu personagem. Ele é basicamente um eu virtual em forma de guaxinim, e acho isso muito legal. Ah, também escolhi um guaxinim por ser animal não apenas americano, mas brasileiro. Quem sabe em um universo alternativo minha fursona fosse um lobo guará? É uma possibilidade…
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Pra quem não me conhece, eu sou assim.
O que tiro disso tudo é que poder aceitar esse interesse “incomum” como parte de como eu me expresso como pessoa foi uma boa decisão. Passei muitos anos me odiando como pessoa e criando aversão a certos aspectos de mim, e fazer as pazes com o fato de eu ser fã de antropomorfismo foi um passo importante para uma melhora de vida. Depois de muitos conflitos eu posso finalmente me expressar da forma que eu desejo, sem me importar pelo o que os outros vão pensar a respeito disso, e no final de contas não havia nada de errado em gostar disso. Não fazia sentido eu reprimir isso por medo do que os outros iriam pensar de mim, ou por medo de me envolver com pessoas tóxicas. A parte engraçada é que a minha experiência com a comunidade furry tem sido positiva. Conheci bons amigos dentro dela, e muitas outras pessoas interessantes que também compartilham o mesmo gosto pelos “animais engraçados”, sem que isso seja o único fator de união entre nós. Existem pessoas agradáveis e divertidas dentro da fandom, e eu sou grato e feliz de poder finalmente fazer parte dessa comunidade não como um espectador, mas como um membro. Antropomorfismo é uma forma de expressão incrível, válida e com o poder de tocar o coração das pessoas quando utilizada com maestria. A sua capacidade de ilustrar histórias e metáforas de uma forma lúdica e diferente é inigualável e um meio excelente pelo o qual os artistas podem fazer paralelos com nossos problemas humanos. Beastars é um mangá que me faz pensar, a todo momento, na existência em que me encontro, de uma forma que só uma obra desse estilo poderia. As questões que Legoshi enfrenta devido ao fato de ser um carnívoro de grande porte são análogas às perguntas que eu me fiz durante o fim da minha adolescência, e que ainda faço durante o início da minha vida adulta. Essa é a beleza que me atrai em histórias desse tipo.
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Cheguei a conclusão de que sou viciado em Stop-Motion.
Chega a ser um pouco engraçado estar falando sobre esse tópico com tanta paixão e ímpeto como estou agora. Há alguns anos atrás, eu nunca imaginaria que o fato de eu ser furry ser tornaria algo tão importante dentro da minha vida, e muito menos de que eu teria uma relação saudável com a comunidade. Poder ser quem eu sou é uma sensação maravilhosa e libertadora. Demorou muito tempo para que eu pudesse perceber que era possível sim, manifestar esse meu interesse de uma forma saudável e divertida, sem que isso fosse algo negativo, ou sem me sentir julgado por mim mesmo e pelos outros. Eu gosto de animais antropomórficos e mídias que envolvam eles, e não tem nada de errado nisso. Pode parecer estranho eu estar dando tanta importância a isso tudo, mas é realmente muito bom não estar em conflito com esse aspecto da minha pessoa. De verdade.
A mensagem que quero passar com esse texto é: seja você mesmo. Sim, é uma mensagem clichê que pode não significar muita coisa quando dita por si só, mas é algo que só percebemos a importância quando sentimos essa liberdade em nossas vidas. Fazer as pazes com si mesmo é uma sensação fantástica, e não temos porque reprimir quem somos por causa do que os outros vão pensar. Não deixe que as pessoas aprisionam o que há de legal em você. Você é você, e não há nada de errado nisso. Jogue os seus jogos, assista a seus filmes e leia os seus livros. Suas atitudes falam mais sobre você do que o que você gosta e quem você é. Dê vida a sua originalidade. Seja a melhor versão de si sem matar sua individualidade.
Ufa. Este texto levou mais tempo para ficar pronto do que eu gostaria. Espero que o meu relato pessoal possa ser útil para você, e que minhas palavras recebam positivamente na sua vida. Às vezes sinto que as coisas que escrevo são um pouco vazias e não refletem de verdade o que eu quero dizer, mas acho que consegui expor os pensamentos e sentimentos que queria, desta vez. Espero que esteja tendo um bom dia, e que Deus possa te abençoar. Eu vou indo. Te vejo no próximo texto. Se cuide!
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tocadovictor · 2 years
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Um péssimo dia na vida de ConsultorIvone
Hoje é quinta-feira. Eu acordei há aproximadamente uma hora, por volta das 6:30, após ter despertado de um pesadelo bizarro envolvendo apartamentos que parecem com o meu serviço, estações de metrô com padrões estranhos e um supermercado que mais parecia um purgatório, ou uma sala de tortura psicológica (e não é a primeira vez que esses lugares me aparecem em sonho!). Como o bom insone que sou, levantei da minha cama com a energia de quem descansou ao menos o dobro de horas das quais eu tinha, parti para a cozinha, tomei o meu habitual copo de água, fui ao banheiro para esvaziar minha bexiga e voltei para a cama com a ingênua esperança de conseguir completar as tão sonhadas oito horas de sono—fiquei por uns cinco ou dez minutos procurando adormecer, mas percebendo que isso não ia levar a lugar nenhum, peguei meu celular do chão, tirei o cabo do carregador e decidi que era hora de dar início ao dia.
Os sentimentos de culpa por não ter comparecido no meu curso de japonês por duas aulas seguidas já estavam a bater na porta, então parti para o meu método favorito de lidar com os problemas: escutar música em volumes criminosos. A escolha da vez foi Belle and Sebastian—não poderia cometer o mesmo erro de escutar Velvet Waltz do Built to Spill e correr o risco de andar sobre um espiral descendente de catarse e auto flagelo, típico da maioria das vezes que eu escuto essa música, ou o álbum dela—e sem hesitar muito, coloquei a canção Ease Your Feet in the Sea para tocar.
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“Se você estiver se sentindo sinistro...”
Chega a ser irônico, pois há menos de uma semana eu estava passando por uma situação estressante e paralela aos temas da música. Sábado, dia 4 de junho de 2022 foi uma das piores datas da minha vida. Sinto que não estaria aqui se não fosse pela misericórdia de Deus e a ajuda de um precioso amigo que se dispôs de tempo e paciência para me acalmar em um momento de desespero puro. Bem, acho que é melhor poupar alguns detalhes da história, com algumas exceções que eu gostaria de falar nesse texto. E sim, já se passaram três parágrafos e eu ainda não decidi qual o tema desse post. O que eu posso fazer? Sou apenas um humilde guaxinim com um teclado, um computador e um sonho.
Voltando ao tópico anterior, neste último sábado eu precisei trabalhar pela metade da minha jornada padrão para cobrir um ponto facultativo que ocorreu há algumas semanas. Tinha sido uma semana relativamente aturável—talvez eu tivesse chegado perto de ter um surto e cometido uma besteirinha grave que poderia ter arruinado a minha vida, mas vamos ignorar essa parte—e por mais que eu não estivesse com o mínimo de vontade de pisar dentro do meu trampo em um dia de SÁBADO, precisava estar lá caso quisesse receber o meu salário de forma integral (e não ter que repor horas durante a semana, o que seria um inferno). Não lembro se dormi mal, se aconteceu alguma coisa no dia anterior, o que me lembro é de acordar me sentindo um saco preto lotado de lixo e com um suco de chorume esverdeado escorrendo pelas bordas, mas com muito esforço mental pude me levantar da cama e partir atraso para cumprir o meu dia.
O que foi um erro.
Acho que foi a primeira vez na minha curta vida em que eu pude sentir na pele o significado da palavra “humilhação”. As coisas são sempre diferentes quando experimentamos elas de primeira mão. Foi horrível, degradante—toda a dignidade que eu ainda tinha diante daqueles professores soberbos e funcionários indiferentes foi arrancada à força de mim e jogada no chão para ser pisada por todos. Não foi nem o serviço em si que me incomodou, por mais que eu estivesse me sentindo o Chaplin no filme Tempos Modernos, empacotando máscaras repetidamente em pleno sábado (e me lembrando do fato de que minha chefe havia me feito pagar 4 horas sem motivo em uma ocasião anterior por puro capricho), mas sim a atitude de autoritária e desumana que uma das professoras que estava junto de mim, teve.
Ultimamente eu ando lendo o livro “O Processo” de Franz Kafka, e por um momento que fosse, eu pude me sentir como o personagem principal “K.”: sendo tratado como nada mais do que um objeto, e nada menos do que um empecilho, quiçá uma ferramenta. Chega a ser engraçado, uma pessoa que não possuía nenhuma espécie de autoridade sobre mim, dentro de um contexto onde ambos estávamos exercendo o mesmo serviço, decidiu por si que eu deveria ter a minha humanidade revogada. Eu não era nada mais do que um escravo—alguém contratado para servir e ser humilhado sem possuir o direito de ser tratado como um humano—afinal, como eu poderia ser tratado como um humano? Uma pessoa jovem, ingênua, de um perfil repugnante e que transpira ignorância pelos poros, exercendo um cargo de baixa categoria dentro do sistema educacional. Imagino que na mente dessa senhora tudo isso não passava de um lapso, um incidente no sistema que permitiu que pessoas como eu, de aparência ‘mestiça’, pudessem fazer parte de algo diferente de uma carreira criminal ou um emprego de baixa remuneração com escalas fantasiosas. Possa ser que eu esteja sendo um pouco dramático diante dessa situação, meu estado mental naquele também não ajuda a minimizar tudo isso, mas já não é a primeira vez que eu me sinto subjugado por essa pessoa, ao ponto da mesma ter perguntado anteriormente se eu havia terminado meus estudos (sendo que eu trabalho em um cargo que pede o segundo grau completo), e passar pelo o que eu passei nesse dia foi simplesmente surreal. Em um ato de desespero e indiferença, peguei meus fones de ouvido e coloquei alguns álbuns para tocar como uma forma de lidar com aquela situação. A música é o meu ópio, e eu precisava de uma dose naquele momento. Estava em um nível emocional tão baixo que não podia dizer nada além de “sim” e “não”. A única coisa que eu conseguia pensar conforme ia sendo caçoado, era na morte, e talvez no quão absurdo tudo estava sendo. Mesmo no presente momento eu ainda não consegui processar muito bem o que aconteceu.
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         Uma mentalidade de “jukebox”
Todo esse ocorrido levantou uma série de interrogações na minha cabeça, e algumas conclusões sobre quem somos como humanos. Ainda não consigo entender plenamente como uma pessoa pode tratar um semelhante como se não fosse nada além de um amontoado de carne que anda e fala, mas ter passado por isso abriu meus olhos para um pouco da realidade de nossos relacionamentos. O que me impede de me tornar com eles? De desistir de tudo o que acredito e vestir a roupa de uma lobo voraz, ou de uma raposa traiçoeira? Ambos prontos e dispostos a enfiar uma faca nas costas de quem precisarem, sem se importar com ninguém além deles mesmos. Afinal de contas: que provas nós temos de que as outras pessoas também são humanos? Seria então mais do que lógico aderir a esse comportamento egoísta e utilitário, mas eu me recuso a acreditar nisso. Eu me recuso a me tornar como eles. Me recuso a pisar na cabeça dos meus irmãos e irmãs, por mais que eles pisem em cima de mim, e por mais que eu tenha que sofrer com traumas, agressões verbais e físicas que deixam feridas e cicatrizes para o resto da vida. Eu me recuso a desistir do amor.
Trabalhar em uma escola foi uma das melhores coisas que aconteceram na minha vida, e eu só pude perceber isso após este incidente. Por mais insalubre que o serviço possa ser—o barulho é ensurdecedor; você é tratado como uma ferramenta pelos seus superiores; seus colegas de trabalho estão todos prontos a puxar o seu tapete, tudo corrobora para que você enlouqueça e abandone sua empatia em troca de sobrevivência, mas existe algo que vale a pena lutar: as crianças.
No coração delas não existe maldade, e o amor que elas oferecem, mesmo que você não tenha nada a dar em troca para elas, é um combustível para a alma, e o que me motiva a frequentar todos os dias o ambiente pesado e curiosamente hostil de uma escola infestadas mágoas e intrigas. Não apenas o amor das crianças, como também o amor dos pais e avós por elas. Esse amor ágape que se tem por um filho, e que nos torna capazes de aguentar o insuportável e tentar o impossível em prol do bem estar de alguém. Talvez seja esse o amor que me impediu de me defender das agressões físicas do meu pai nesse último mês, por mais que eu estivesse no meu pleno direito de defesa. Ou o amor que meus amigos têm por mim, por mais intolerável que possa ser o meu comportamento nos momentos de crise—reclamando de tudo e de todos e sugando a energia vital das pessoas em minha volta com meus problemas. É um amor que eu nunca poderia descrever com palavras. Ele foge da minha compreensão; persegue os meus pensamentos durante os dias, e permite com que eu possa suportar o que for sem ceder.
É realmente algo divino, e espero poder me sustentar nesse apoio por mais um tempo.
Eu vou me despedindo. Coloquei a música Reckoner do Radiohead para tocar no meu player. Achei apropriado para a situação. Daqui há meia hora estarei me aprontando para mais um dia de serviço. Mais um dia.
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Que Deus possa lhe abençoar, e agradeço por dispor do seu tempo para ler esse texto e conferir o meu blog.
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tocadovictor · 2 years
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“Você nunca saberá o porquê”
Cheio das mais diversas maravilhas românticas e decepções amorosas capazes de remover qualquer espécie de esperança que uma pessoa poderia ter em manter uma relação de intimidade com um parceiro ou parceira, You Will Never Know Why é um disco que ilustra perfeitamente a dor de escolher amar. Sua capa ilustrando um simples desenho de uma navalha diz muito sobre o conteúdo das letras—frustrações dos mais diversos tipos em um relacionamento instável. A pergunta que o álbum traz também é curiosa: “você nunca saberá o porquê”. É algo abstrato, afinal, o que seria esse “porquê”? E porque isso importaria de alguma forma? Talvez esse seja um dos exemplos de como o álbum consegue expor sua sutileza de forma com que possamos não apenas prestar atenção no conteúdo que está sendo apresentado, mas refletir sobre o mesmo diante da perspectiva de nossas próprias relações passadas e presentes. Manter um bom relacionamento com nossos pares é uma tarefa desgastante e que muitas vezes vem a parecer ingrata. Dificilmente as pessoas mudam, e nossos conflitos de interesse tornam tudo muito mais complicado e alguns casos delicados. Coisas pequenas são capazes de incitar as piores brigas—uma sujeira deixada em cima da mesa de jantar se torna em uma discussão violenta com acusações sendo jogadores por todos os lados como flechas; um copo quebrado tem o potencial de se tornar em uma agressão doméstica. Talvez nem todos os relacionamentos chegam em um nível extremo como este, mas o que é ilustrado nos temas do disco certamente se enquadram nessa categoria.
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                 “Uma navalha”
Mudando um pouco de assunto e falando sobre a música em si, You Will Never Know Why é um disco de Dream Pop que flerta incessantemente com música eletrônica, o que não é nenhuma surpresa quando se leva em conta o background da banda e sonoridade dos discos passados. Ritmo é o foco principal do álbum, faixas como Female Lover e To The Moon ilustram isso perfeitamente com batidas certeiras e potentes acertando seus tímpanos com decisão. Nós temos uma atmosfera “aérea” (se é que isso faz algum sentido) que faz você sentir como se estivesse um sonho ou revivendo uma experiência do passado dentro de sua mente. Não é exatamente o sonho mais confortante, ou uma lembrança agradável, mas é o suficiente para ocupar os seus pensamentos pelo resto do dia e perguntar a si mesmo: “O que poderia ter sido diferente?”. Instrumentos eletrônicos e sintetizadores são usados em todas as faixas com a excelência que a banda já demonstrou em seus materiais anteriores. É uma atmosfera confortável como deitar em sua cama em um sábado de outono enquanto joga em seu Nintendo DS por horas e horas—e destruidora como perceber a negligência que está cometendo com suas obrigações e que os dias de paz como esse logo cessarão.
As letras ilustram situações diversas experienciadas por parceiros em um relacionamento tóxico (ou não), que também se aplicam a relações que envolvem convívio e intimidade. A poesia dos versos funciona bem, e você consegue se imaginar vivendo os cenários descritos. Algo que gosto muito da lírica do álbum, é como ela é direta no que quer descrever, com versos brutais e secos, não se importando nem um pouco de amenizar o que é contado—eu pelo menos nunca vi um álbum que faz referência a violência doméstica de forma tão direta e agoniante como esse. O ápice do disco para mim, tanto em sonoridade quanto em narrativa é a faixa “Milk”, que narra um casal deitado em uma cama, com um deles sofrendo de insônia, e sentindo inveja de seu par por conseguir dormir tranquilamente enquanto o que resta para a primeira personagem é passar o resto da noite acordada enquanto observa seu parceiro adormecer. É ideia de sentimento misto que o álbum quer transmitir, e ele consegue isso com maestria; chega até a ser doloroso escutar esse disco em um dia ruim ou após um atrito com algum amigo, parceiro ou familiar—fica um gosto agridoce na boca.
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    “Os dias passam, os motivos mudam,
             as brigam sempre voltam.”
Particularmente, não acho que exista um álbum que soe como esse disco—pelo menos não com a mesma potência e “impedância”—-You Will Never Know Why é único, poderoso em sua capacidade de expor as dores de relacionar com alguém de forma orgânica e agridoce, assim como se é experienciado no dia a dia. Eu tenho uma relação íntima com esse disco por não apenas me fazer sentir algo flamejante dentro da minha alma com suas músicas de altíssima qualidade e catarses sonoras que me atingem de uma forma indescritível e especial, semelhante e diferente de todos os outros discos que são capazes de fazer eu me sentir assim—vivo—mas por suas letras certeiras e poéticas que atingem o meu coração e espremem as minhas experiências como se espreme as laranjas de um suco. São palavras duras e secas que doem um pouco, como uma farpa no dedo indicador. Palavras capazes de trazer conforto diante do sofrimento constante; dopar o coração com o sentimento de identificação que vem com a arte que conta a história que você passa, e narra os seus traumas como um livro aberto em cima da mesa.
Existe uma navalha disponível, próxima a mim. Essa navalha simboliza o alívio mergulhado em desespero, e você nunca saberá o porquê. 
Porque você iria querer saber, de qualquer forma?
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tocadovictor · 2 years
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Sticker for ghm zine!
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tocadovictor · 2 years
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Fantástico Sr. Raposo e a busca pelo “Eu”
No domingo da semana passada eu decidi rever um dos meus filmes favoritos, O Fantástico Sr. Raposo, com alguns conhecidos de um servidor estrangeiro de Night in the Woods. Foi uma experiência incrível, e mesmo sendo a quarta vez que eu o assisto, a magia do stop-motion repleto de detalhezinhos e do magnífico enredo com seu ritmo frenético ainda me surpreende. Portanto, com uma forma de inaugurar este blog, decidi fazer uma análise desse longa-metragem que foi uma das experiências mais impressionantes e fantásticas que eu já tive com cinema.
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Para aqueles que ainda não assistiram o filme, aqui vai uma pequena sinopse: Fantástico Sr. Raposo conta a história do personagem de mesmo nome que após quase ser capturado no seu antigo “trabalho” como ladrão de fazendas, se vê obrigado a mudar de vida, tornando-se redator de um jornal local. Agora casado e com um filho de 12 anos, se vê diante de uma crise de meia idade e um incessante desejo de se sentir completo, como um animal selvagem e realizado. O filme é baseado no livro de mesmo nome do autor Roald Dahl, contando com algumas adições aqui e ali, como a inclusão de alguns personagens e mudança do final da história. 
Fantástico Sr. Raposo é simplesmente maravilhoso em tudo o que faz. O stop-motion do filme é de cair o queixo; você chega a ficar perplexo com a quantidade de detalhes que foram colocados em cada frame. Sempre tem alguma coisinha a mais para se descobrir no plano de fundo, ou até mesmo nas roupas dos personagens, seus trejeitos e olhares. A animação é fluida e agradável aos olhos, apesar do longa ter sido gravado com a metade de frames de um filme tradicional do gênero. Aliás, a produção do filme em si é surpreendente: foram necessárias aproximadamente 120.000 fotos para que as cenas fossem completas, com 532 bonecos sendo utilizados, 102 deles sendo apenas do Sr. Raposo. Esses números absurdos se devem muito por conta da direção de Wes Anderson, um assumido perfeccionista obcecado por simetria e fanático por cenas que poderiam facilmente serem transformadas em quadros. Sério, você pode tirar print de qualquer cena desse filme e ter um wallpaper novinho em folha para o seu desktop, pode tentar.
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                    Uma bela foto de um belíssimo filme.
É tudo tão bonito que você se sente hipnotizado e louco por mais filmes que possam suprir a repentina necessidade de achar algo tão bonito quanto o que acabou de assistir. Também vai te fazer revê-lo muitas e muitas vezes. Só tem que tomar cuidado para não contrair diabetes, pois é puro eye candy.
Entretanto, isso é apenas a parte externa, e por algum milagre cinematográfico, ou pelo esforço desumano de uma equipe altamente competente (quem sabe um pouco dos dois), a história do filme consegue se igualar à sua beleza visual, o que é surpreendente, considerando que esse é um dos longas mais belos já concebidos. O enredo do filme é magnífico e rico em mensagens belas que se escondem debaixo da velocidade tonteando com o qual a narrativa vai se desenvolvendo; todas elas prontas para serem capturadas pelos espectadores de segunda ou terceira viagem, quem sabe por aqueles um pouco mais atentos que conseguiram não serem pegos pelo encanto dos bonequinhos de animais antropomórficos e suas peripécias malucas, na primeira vez. Diversos pontos e reflexões marcantes são abordados ao longo da trama, alguns deles são mais diretos, e ganham maior destaque ao decorrer do enredo, outros se escondem no meio das súbitas transições e cenas que fazem você pensar que enlouqueceu enquanto assistia um filme infantil sobre animais antropomórficos sobrevivendo em uma guerra contra fazendeiros malucos. O que pode ser verdade, quem sabe?
O mais relevante deles, em minha opinião, é o arco do Sr. Raposo e sua crise de identidade, que também engloba o relacionamento dele com sua família, em especial seu filho Ash.
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    Eu ainda tô de queixo caido com a qualidade desse GIF.
Raposo é um personagem de meia idade que vive uma vida banal em uma toca subterrânea. Ele sente infelicidade diante de sua rotina, reclamando à sua esposa que o ambiente em que eles vivem o faz se sentir pobre. Apesar de seu talento com as palavras, o seu ofício não consegue lhe trazer a realização e prazer que os velhos dias caçando galinhas e aves o traziam. Em uma tentativa de mudar os ares, ele decide então financiar um novo lar: uma casa em forma de árvore em cima de uma colina em um lindo bosque amarelado. Ao mesmo tempo em que Raposo tenta de alguma forma preencher o seu desejo de ser um animal selvagem, seu filho Ash procura alcançar o reconhecimento e respeito de seu pai como um atleta, apesar de sua baixa estatura e jeito desengonçado. Ambos os personagens estão em busca de uma resposta para sua identidade, e refletem esse desejo em hábitos diversos, seja através de fantasias de super-heróis, no caso de Ash, ou discursos longos e bajuladores que transmitem segurança e confiança, no caso do Sr. Raposo.
Por coincidência, ou talvez por um plano deliberado, o novo lar do Raposo se localiza perto de três enormes fazendas, cada uma delas comandadas pelos temíveis fazendeiros Boggis, Bunce e Bean, que antagonizam o personagem durante o filme. Diante disso ele  enxerga uma oportunidade de ouro de voltar às suas raízes de ladrão, e quem sabe alcançar de volta a adrenalina de felicidade que os velhos tempos lhe traziam. Alguns outros personagens são introduzidos durante as cenas em que esses fatos ocorrem, os principais sendo Kylie e Kristopherson. Kylie é um gambá pescador que estava prestando serviço de manutenção na casa do Raposo quando o mesmo foi visitá-la com o corretor de imóveis. Ele serve de ajudante para o Raposo durante seus assaltos e demonstra sofrer de crises dissociativas, simbolizadas pelas pupilas de seus olhos se tornando redemoinhos, como se estivesse sendo hipnotizado. Kristopherson é o sobrinho da esposa do Raposo que vem do outro lado do rio para morar com eles por um tempo, enquanto seu pai está sofrendo de “pneumonia dupla”. Ele é um garoto prodígio e atlético que apesar de ser mais novo que Ash, possui uma estatura significativamente maior. É um dos personagens mais importantes do filme por servir de contraste e afronta a Ash, sendo e tendo tudo o que o personagem mais deseja.
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         Uma lar sobre as colinas, ao invés de sob a terra.
Após algumas reformas na árvore e a compra de toucas ninja, Raposo então passa a maquinar um plano para voltar aos seu velho ofício de forma grandiosa, assaltando as fortificadas e perigosas fazendas de seus vizinhos, ao melhor estilo Metal Gear Solid. Em uma noite, pouco antes de dar início aos roubos, ele faz uma pergunta introspectiva à Kylie: “Quem sou eu?”
“Como que uma raposa pode ser feliz sem uma galinha em seus dentes?”  É o que ele diz logo após. O desejo de viver uma vida selvagem e despreocupada, fazendo aquilo que ele gosta, mesmo que venha a colocar a vida de sua família em perigo nunca abandonou o coração de Raposo. Diante da passagem dos anos e da vida pacata como redator, ele se vê em crise. Qual o sentido de sua vida, afinal? Quem ele é e como pode conciliar seu instinto com suas responsabilidades? Para ele, a resposta parece estar nas noites de caça e nas peças pregadas nos fazendeiros, loucos por um dia por um fim a série de ataques da raposa. Mas todos esses planos saem como tiros pela culatra, por conta de suas ações irresponsáveis Raposo perde seu rabo, seu lar e passa a viver em uma situação ainda mais precária do que anteriormente, em um buraco fundo na terra, sem nenhuma espécie de mobília ou alimento, assim como um fugitivo de guerra.
Os fazendeiros Boggis, Bunce e Bean decidem usar de todos os seus recursos e energia para capturá-lo. Enquanto isso, o relacionamento de Raposo com sua família vai de mal a pior, com sua esposa questionando o porquê dele ter voltado a essa vida de roubos, colocando a vida de todos ao seu redor em risco. A resposta que ele dá para ela é um das frases mais impactantes do filme, e talvez resuma boa parte do pensamento do personagem: “Porque eu sou um animal selvagem”
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      Uma afirmação direta e verdadeira sobre quem ele é.
Raposo passa boa parte do filme alimentando seus hábitos destrutivos e praticando uma espécie de “auto sabotagem” em busca daquilo que traz sentido à sua vida, mesmo que venha a perder tudo o que tem de mais valioso no processo. Seus atos são colocados em xeque à medida que o enredo avança e ele é confrontado pelas consequências deles. Tudo isso sendo ilustrado por cenas incríveis repletas de humor, ação e sensibilidade com os temas abordados.
Os animais passam pelas mais diversas adversidades ao longo do filme— são marginalizados e colocados em situação de refúgio diversas vezes enquanto os fazendeiros lutam incessantemente em busca da cabeça do Raposo. A forma como isso é abordado na animação é curiosa, e de certa forma chega a remeter à uma situação de guerra. A diferença do comportamento das pessoas diante do ambiente e da classe em que se encontram foi algo que eu não esperava nem um pouco ver sendo mostrado em um filme infantil. Aliás, Fantástico Sr. Raposo é tão maduro e divertido em seus temas e piadas que chega a ser difícil de acreditar que o suposto público alvo são as crianças, já que muitas coisas passam despercebidas por elas.
Admito que ter reassistido o longa novamente me deixou um pouco existencial, e me poliu alguns insights que eu tenho sobre o filme. Por exemplo, identidade e ego são temas importantes do filme. No fim do dia os personagens, assim como nós, buscam uma resposta para o mistério de quem são e de como podem se sentir realizados diante desse destino. O que é a vida senão perguntar coisas que não podemos saber a resposta? Ou então correr atrás de uma figura desvanecente,  se afastando no horizonte dos dias? Se existe alguma resposta para a pergunta “Quem sou eu?”, tenho certeza que não virá tão cedo. Possa ser que não venha, e não há nenhum problema nisso. Por um lado é natural que vivamos nossas vidas em busca desses objetivos abstratos e respostas de difícil compreensão; faz parte de quem somos como seres vivos inteligentes e só um pouco conscientes do nosso papel nessa existência imensa e amedrontadora. O homem sente a necessidade de saber quem ele é, de estabelecer isso como um fato empírico e testável, e muitas vezes isso está abaixo de seu nariz. O Raposo é um personagem fascinante e fantástico justamente por transparecer esse aspecto da existência de forma lúdica e tocante, sendo complementado por todos os outros personagens à sua volta. Ele acaba encontrando parte da resposta para sua pergunta ao decorrer do enredo; aceita a sua natureza como um animal selvagem de atitude complicada durante uma das cenas mais emblemáticas do filme, onde é confrontado com seus medos e desejos de uma vez só.
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      No final das contas, todos somos um pouco diferentes.
É engraçado estar dizendo tudo isso sobre este longa, pois quando fui assistir Fantástico Sr. Raposo pela primeira vez, esperava um filme totalmente diferente—algo mais próximo de um filme sério, sensível e de ritmo lento, ao melhor estilo TV Cultura. Acabei sendo surpreendido com uma animação louca e impiedosa, de pacing veloz, cenas rápidas e uma densidade de enredo enorme. No começo eu até fiquei assustado, como se tivesse tomado um pouco mais de 5 latas de energético antes da “sessão”, ou aplicado uma dose de adrenalina diretamente na corrente sanguínea. Ao invés de experienciar uma animação calma de historinha agradável que pudesse suprir o meu então desejo de assistir algo que fosse me impactar pela sensibilidade, acabei experienciando um filme intenso e frenético, repleto de cores e emoções que fizeram com que a minhas sinapses entrassem em pânico e meu cérebro escorresse pelos meus ouvidos.
Eu ainda acho que não consegui pegar todos os pedacinhos que escorreram pelo chão.
Conforme fui assistindo mais vezes, acabei percebendo que Fantástico Sr. Raposo não era apenas exatamente o que eu queria assistir, mas muito mais, mesmo que de um jeito diferente. Nas entrelinhas de toda a insanidade do conflito entre os animais e os fazendeiros está a história de uma pessoa em busca de realização pessoal e um sentido para a vida. Nos frames lindos, dignos de aplausos, existe a história de um filho em busca do reconhecimento de seu pai e de uma resposta para o fato de ser alguém diferente dos demais. Nas loucuras e simetrias existe um subtexto de guerra que trata de forma implícita os conflitos do ser humano e sua existência dentro de um mundo repleto de aflição, crises, dificuldades e muito mais. 
Fantástico Sr. Raposo é um filme que tem muito mais a oferecer do que transparece à primeira vista. Eu amo ele, e poderia ficar horas e horas escrevendo e falando sobre o quão incrível ele consegue ser em oferecer ao telespectador todo esse material puro e inspirador para se refletir, mas nem minha voz e muito menos meus dedos me perdoariam pelo desgaste físico que eu iria causar a eles.
Se você não assistiu esse filme ainda: Corra! Não sabe o que está perdendo!
E se você já assistiu, sabe exatamente do que eu estou falando.
Bem, eu vou encerrando por aqui. Espero que tenham gostado da leitura! Que Deus os abençoe. Fui!
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tocadovictor · 2 years
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it's the remy
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tocadovictor · 2 years
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