Tatunca Nara e a Crônica de Akakor
Parte 9 - Tatunca Nara, um assassino serial chamado Hans Günther Hauck
Por Cláudio Tsuyoshi Suenaga
O encanto do “conto de fadas” de Akakor começou a quebrar no final dos anos 80, quando o Federal Criminal Investigation Office (Escritório de Investigação Criminal Federal) alemão informou que Tatunca Nara era na verdade Hans Günther Hauck, um cidadão alemão nascido em 5 de outubro de 1941 em Coburg que havia fugido do país em 1967 para escapar ao pagamento da pensão alimentícia à ex-esposa e aos três filhos residentes em Nuremberg.
Christa, de quem Tatunca, ou melhor, Hans, havia se divorciado em 1966, foi trazida ao Brasil em 1989 pela revista alemã Der Spiegel e o reconheceu, mas Tatunca negou ser Hans.
Registros de Hans Günther Hauck na Alemanha e no Brasil. Reprodução dos vídeos de Wolfgang Brog e do Fantástico, da Rede Globo.
Em 7 de outubro de 1990, o programa Fantástico, da Rede Globo, em reportagem de Afonso Mônaco e Pedro Bial, denunciava Tatunca Nara como sendo o alemão Hans Günther Hauck, estabelecido na cidade amazonense de Barcelos desde o final da década de 60 como guia turístico e apontado pela Polícia como suspeito dos assassinatos do norte-americano John Charter Reed (1980), do suíço Herbert Wanner (1983) e da sueca Christine Heuser (1987). Os três saíram em expedição com Tatunca e nunca mais retornaram. Em 1984, um grupo de turistas suíços encontrou um crânio humano que análises forenses identificaram como sendo de Wanner.
John Charter Reed (1980), Herbert Wanner (1983) e Christine Heuser (1987): desaparecidos em expedições comandadas por Tatunca Nara, apontado como suspeito de tê-los assassinado.
Em 1991, o ativista pelos direitos humanos e aventureiro alemão Rüdiger Nehberg (“Sir Vival”, 1935-2020), desmontava completamente a fraude de Tatunca em seu livro Der Selbstgemachte Häuptling (The Self-made Chieftain),[1] não deixando dúvidas de que ele era de fato o alemão Hans Günther Hauck que em 1967 havia abandonado a sua família em Nuremberg para instalar-se na selva Amazônia, o que explicava o seu alemão perfeito e o português arrastado com forte sotaque alemão.
Rüdiger Nehberg com sua filha Kirsten.
A ficha criminal de Hans Günther Hauck em Nuremberg revela que ele já usava a alcunha de “Tatunge Nare” em sua terra natal antes de fugir para a Amazônia brasileira, onde após realizar resgates heróicos de militares na selva, caiu nas graças do Exército e foi recrutado como informante pelos órgãos de repressão.
Um relatório da Procuradoria Geral do Estado do Amazonas apontou a ligação de Tatunca Nara com agências de Inteligência do Regime Militar.
Anita Beatriz Katz Nara, sua esposa brasileira que ocupava o posto de secretária de Turismo da Prefeitura de Barcelos e depois se tornou secretária de Assistência Social e Cidadania, confidenciou ao oceanógrafo, explorador e documentarista francês Jacques-Yves Cousteau (1910-1997) que Tatunca havia inventado a história de Akakor para motivar inocentes turistas a financiar suas buscas por pedras preciosas na Serra do Aracá,[2] onde dizia ter encontrado restos de uma antiga muralha.
Jacques-Yves Cousteau
Em 1999, os alemães Hans Barth, Hans Kemmling, Hernrick Trautschold, Hans Augustin, Wolfgang Schmidt, Horst Paul Linke e o guia Tatunca Nara foram flagrados pela Polícia Federal às margens do rio Negro, próximo a vila de Paricatuba, transportando 350 peixes ornamentais e plantas, pelo que foram indiciados por crime de biopirataria e citados no relatório de 2003 da CPITRAFI, a Comissão Parlamentar de Inquérito que investigava o tráfico ilegal de animais e plantas silvestres da fauna e flora brasileiras.
Teria Tatunca Nara engendrado uma da mais fantásticas fábulas de todos os tempos, um épico enormemente enredado, apenas para escapar de pagar a pensão alimentícia à sua ex-esposa? Se sim, devemos reconhecer o quão estimulante e inspirador pode ser uma situação dessas...
Ironicamente, Tatunca havia dito a Brugger que o seu povo “não acredita no divórcio. Se o homem e a mulher insistem, podem voltar a viver separadamente, mas sob a pena de serem exilados se tornarem a casar. Para quem conhece só um homem ou uma mulher a vida pode ser verdadeiramente feliz.” O controle populacional e os métodos anticoncepcionais já eram uma prática entre seu povo: “De acordo com as leis de Lhasa, cada família só pode ter dois filhos. Depois, o grande-sacerdote dá à mulher um remédio que a torna estéril. Deste modo, o Exaltado Filho dos Deuses, na sua sabedoria, evitou a miséria e a fome.”
Incidentalmente, A Crônica de Akakor não é mais do que um remake do mito da Atlântida e de Eldorado, com enxertos de lendas locais (as Amazonas), ficção científica (Duna), deuses astronautas (Däniken), teorias catastrofistas (Velikovsky) e distopias históricas (soldados nazistas), todas costuradas para “unificar” o “verdadeiro e elevado conhecimento dos Deuses que moldou a vida de todos os povos da Terra” do qual podemos apenas “reaprender e redescobrir”.
Tatunca desembaraçou-se de certos entraves e ousou ir muito além de outros autores do gênero, no que foi precursor ao falar de um sistema subterrâneo de túneis cortando a América do Sul e em “prever” o fim do mundo para o final de 2011 (recalculado depois para 2012) ao citar o Chilam Balam (chilam refere-se a um sacerdote que fornecia oráculos), os livros dos sacerdotes maias, segundo o qual a história teria começado em 3113 a.C., o ano zero de seu calendário, e terminaria em 24 de dezembro de 2011 d.C. (recalculado para 12 ou 21 de dezembro de 2012).
Elementos da Crônica de Akakor foram usados, sem os devidos créditos, por Steven Spielberg para permear o seu esdrúxulo Indiana Jones and the Kingdom of the Crystal Skull (Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal), que se referiu a Akakor como “Akator”, apenas trocando o k pelo t. Transcorridos mais da metade do filme, a corrida pelos segredos dos deuses astronautas atinge a apoteose nas pirâmides da cidade perdida de “Akator”, recriadas digitalmente em pleno coração do Amazonas.
Na sequência final, Spielberg faz decolar das pirâmides um gigantesco disco voador que parte não para o espaço, mas para uma dimensão paralela.
O bilionário filme de 2008 teve um orçamento de US$ 185 milhões e rendeu quase US$ 800 milhões apenas nas bilheterias. Se Tatunca Nara enganou o mundo com suas fantasias, pelas quais pagou um alto preço, Spielberg foi quem mais lucrou com elas ao reciclá-las sem ter de pagar nada a Tatunca ou a família de Karl Brugger. Quem enganou quem?
Rumores acerca da morte de Tatunca circularam diversas vezes, mas sabe-se que ele ainda está vivo e reside em um modesto barraco em seu sítio a algumas dezenas de quilômetros de Barcelos, ao longo do rio Negro, onde cultiva diversas plantas frutíferas que comercializa com os comerciantes locais. Sabe-se também que ele tem um “filho adotivo”, um soldado de nome Francisco Alves.
Em 2003, para escapar das penas da Justiça, Tatunca declarou-se “mentalmente instável”, embora continue a oferecer seus serviços como um guia de turismo, devidamente autorizado pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), para todas as partes dispostas, geralmente turistas ou exploradores mal informados e/ou mal intencionados querendo chegar à região montanhosa do rio Padauari, na fronteira com a Venezuela, onde estaria Akakor.
O mito de Eldorado nunca morre, mas todo aquele que o busca, sim, ainda mais se estiver acompanhado de Tatunca Nara.
Tatunca Nara em foto de Karl Brugger.
Notas:
[1] Nehberg, Rüdiger. Der Selbstgemachte Häuptling, Hamburg, Kabel, 1991.
[2] A Serra do Aracá ocupa uma área de 18.187 km², ou 15% dos 122.475,728 km² de área do município de Barcelos, sendo este é o segundo maior município do Brasil, menor em área apenas do que Altamira, com 159.695,938 km².
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